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sábado, 5 de março de 2011

A Crueldade do Tio Ranzinza [Cultura ZH]

Em novo livro, ainda inédito no Brasil, Philip Roth volta a 1944 e conta uma história que envolve crianças – mas não muda o tom pessimista conhecido de seus leitores



Arte e texto de
Cínthya Verri
Médica




Deixai a esperança, vós que entrais na obra de Philip Roth. O preceito dantesco vale para a recente fase ficcional do americano, que acaba de publicar um novo romance, Nemesis, ainda inédito no Brasil.


Não existe esperança no universo de Roth, mas resignação. Trata-se da difícil conformação do fim, a aceitação de que o homem não pode fazer coisa alguma, além de espernear. Tudo o que ele fizer contra a morte é histeria.

Seus personagens mergulham em difíceis enfrentamentos, emergindo pálidos e mais fracos do que no início da luta. São várias insuficiências, matizes de uma mesma esterilidade emocional: Fantasma Sai de Cena é a impotência sexual; Humilhação é a impotência diante da velhice; Homem Comum é impotência perante uma doença incurável; Indignação é a impotência do ódio; O Animal Agonizante é a impotência no amor.

Roth é conhecido por explorar a natureza do desejo sexual e o autoconhecimento. É a primeira vez que o autor desvenda a própria infância e descreve com riqueza os hábitos americanos da época. Inclusive, o modo de colapsar diante do medo.

Usa como cenário sua cidade natal, Newark, em Nova Jersey, para reproduzir a terrível crise de poliomielite que assolou a região. No verão de 1944, no fim da II Guerra, parecia existir um outro Holocausto civil. Comunidades judaicas morriam em uma câmara de vapor, uma estufa letal que não podia ser evitada, nem mesmo com as medidas sanitárias mais extremas – o vírus seguia paralisando nervos, músculos e a capacidade de mover os pulmões. Quando não matava, deformava permanentemente.

O protagonista dilemático é Eugene Cantor, ou Bucky, professor de Educação Física, encarregado do playground municipal e que cuidava para que as crianças esquecessem o terror e se exercitassem como se nada estivesse acontecendo. O porte atlético impunha solenidade e o caráter puro e reto conquistou rapidamente o respeito dos estudantes – tornou-se o herói máximo no período das férias.

Manter a distração pelo esporte não era tarefa fácil. Quem desfrutava de condição financeira não precisava ficar no centro, alvo imediato da doença, e se dirigia aos acampamentos de verão nas montanhas e serras.

A questão é que Bucky se sente um ídolo de barro, não confia em si, nem nunca confiou. Criado pelos avós, temia herdar resquício genético do pai (ladrão) e ainda carregava o fardo da mãe morta em seu parto.

Gostaria de ter zerado as dívidas e as incertezas com o alistamento militar, mas foi recusado. Tinha que haver um motivo lógico para sua miopia; para que seu corpo não servisse como arma para seu país na guerra; para que estivesse junto às crianças naquele momento. Precisava ser essencial. Portanto, assumiu a responsabilidade por tudo o que acontecia de mais doloroso.

Delírio é quando não temos dúvida. Nemesis, na mitologia, é a deusa da vingança divina. Roth avisa desde o título que questionará a qualidade dos desígnios dos céus.

A saída psicológica diante da absoluta impotência é buscar um crime que justifique o dano. A saga de Bucky consiste em deslizar entre se ver culpado e culpar a deus. E, nesse jogo, confundir-se até acreditar que deus é ele.

Encarna a tese dos rizomas de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Os filósofos apresentam a imagem de um tipo de raiz capaz de se desenvolver e sustentar o alimento mesmo nos solos mais áridos. Quanto mais rígidos os princípios e a moral, a imutabilidade das crenças, a incapacidade de compreender a multiplicidade, menores as chances de adaptação.

É o caso de Bucky. No ambiente hostil, de acontecimentos drásticos, não sobrevive emocionalmente quem não se ajusta, quem não descobre em si um sistema de acomodação mais inteligente do que a onipotência.

Tal tragédia grega, era de se desconfiar que ele seria o maior troféu da poliomielite. O único que não foi por acaso. Justamente porque abandonou o playground para ceder ao romance com sua noiva Márcia. Nenhum motivo nobre, apenas o desejo amoroso.

Ele não possuía o direito de ter prazer numa situação daquelas: alguém assombrado por um sentimento exacerbado de justiça e direito, e que atribuiu um significado mais grave à sua história e antecipou sua condenação ao longo do tempo, tanto como vítima da doença quanto como disseminador. Forçou exílio e arranjou um emprego público medíocre imaginando que esse deveria ser seu castigo: passar pela vida sem vivê-la.

No auge criativo de seus 80 anos, Philip Roth é aquele tio ranzinza que conta a verdade sobre a família no Dia de Ação de Graças. Sinaliza a falsa importância gerada pelo infortúnio. O desejo de poder é tão paralisante quanto o poliovírus, quando consideramos que sabemos mais do que a realidade. A culpa não existe. É uma invenção simplista para alimentar a covardia.

Já que não poderia ser o melhor na alegria, Bucky quis ser o melhor na dor.


Nemesis,
Philip Roth

Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Cultura
p. 5, 05/03/2011
Porto Alegre, Edição N° 16630

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