Quando alcancei os dezesseis anos, quis a rebeldia de fazer a primeira tatuagem. Como todas as minhas resoluções daquela época, precisava de autorização mágica, premonição astral ou bênção espiritual. Tudo isso para me desincumbir de assinar qualquer responsabilidade. O primeiro passo, portanto, foi consultar o tarô. Visto o sinal verde dos arcanos maiores, pude passar a pensar no desenho. Novo impasse. O que representaria minha atitude, minha autenticidade, meu caráter único no universo? Foi com as moedas de troco dos audaciosos cigarros mentolados que me ocorreu a genial idéia – faria um ideograma do I Ching. Além do desenho exclusivo e exótico, eu ficaria isenta da decisão pela imagem. De quebra, ostentaria um talismã. Com seis lances de caras e coroas cheguei ao grafite portentoso de “o poder do poderoso”. Junto com a melhor amiga, embriagadas pela transgressão, decidimos a parte do corpo: o arrojo gráfico ficaria sobre o púbis, entre as virilhas. Assim, nem de biquíni o pai iria descobrir.
Subornamos o tatuador com visitas diárias. Armadas de efetiva tietagem, íamos à loja religiosamente. As carolas da galeria furreca onde estava abrigado o estúdio. Por fim, ele cedeu. Levamos nossas economias irmandadas para a realização de nosso primeiro ato para sempre; primeiro ato definitivo; o risco irrevogável dentro da pele. Seria o mistéiro da antiguidade chinesa em traços sóbrios, negros, permanentes.
Por mais de um ano, o segredo dentro da calcinha era minha alegria, um camafeu de distinção. Um orgulho de aparar os pelos, alisar a pele para emoldurar a arte.
Minha amiga acalorava ainda mais com suas palmas pela coragem que ela não tinha. O pódio durou até ler a entrevista de Luana Piovani. Na revista, a lindíssima afirmava que tinha uma tatuagem do tipo ‘só conhece quem merece’. Instalou-se a ruína. Cruel a decepção, o despejo. Como manchas em um vestido que espera o baile. Como tiras arrebentadas da sandália no meio do primeiro encontro. Como ver a rival beijando o garoto com quem você queria ao menos conversar. O sítio ilustre não era mais meu, não me pertencia. Fui exilada de meu corpo.
Minha raiva não chegou ao máximo porque naquele verão tudo ficou muito pior. Era a chegada das tatuagens de henna. Os álbuns exibidos pelas areias carregavam não menos que centenas de ideogramas como sugestão para tatuar e anunciavam com requinte característico: olha o alfabeto japonês!
O grande segredo oriental agora não valia mais que um sanduíche, um milho ou um churros litorâneo. O terror me espiava desde braços, pernas e bundas de banhistas suarentos, gosmentos, comuns.
Diante daquilo não tive dúvida: procurei um profissional para cobrir meu selo de ordinariedade estampado em lugar impróprio. Pedi pelo desenho mais ousado. Fez uma belíssima Fênix, quatro vezes maior que o sombreado anterior para dar boa cobertura. As horas de dor para colorir foram compensadas pelo alívio de estar livre das fotocópias cutâneas.
Em março, eu e minha amiga nos reencontramos. Não sabia por onde começar a contar que tinha traído nosso pacto de eternidade dérmica. Ela não me deixou falar. Emocionada, foi logo erguendo a blusa e revelando que, durante as férias, tinha tomado coragem e pedido pelo desenho mais ousado que houvesse.
Não acredito em karma, mas que los hay, los hay.
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