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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O Capim nosso de cada dia - Crônica Falada no Camarote TVCOM [17.02.10]


Capim Anoni – Eragrostis spp

O capim-anoni veio importado por um agrônomo na década de 50. Chegou aos pastos do Rio Grande do Sul travestido de solução para herbívoros. A planta crescia incrivelmente viçosa e se espalhava magicamente.

Mas o Anoni revelou-se uma praga, um caso de contaminação biológica. A espécie disseminou-se e tomou o espaço das leguminosas e outros vegetais nativos. O gado não consegue pastá-lo, os cavalos ficam enfraquecidos. Não conseguimos arrancar o Anoni com a mão. É aquele capim alto e verde que parece de seda. Não cede.

Vejo que estamos sempre atrás do Anoni. Sempre querendo uma solução fantástica, capaz de nos poupar do esforço característico. Queremos uma bondade parada, um atalho, uma curva rápida para cruzar montanhas. Queremos emagrecer sem passar fome, clarear olheiras em cinco minutos, cumprir faculdades e construir carreiras em dois anos. Queremos peelings que não agridam a pele, massageadores que reduzam a gordura, transformar alimentos congelados em uma explosão de sabores usando um novo forno.

Queremos encarnar a cigarra, nunca a formiga. Almejamos parecer os mais espertos. Sonhamos em superar o trabalho árduo a que os outros se submetem.

Não é apenas a arrogância que nos move em direção aos anonis. É também uma ambição invejosa.

O capim-anoni, em seu ambiente natural, não é um problema. Lá ele divide espaço com combatentes originais. Não sabe se alastrar na terra natal. Guarda as proporções de equilíbrio. Somente translocado é que ele se comporta mal.

O mesmo acontece quando vemos a vida de alguém. Selecionamos os aspectos que queríamos ter: muito dinheiro, uma mulher com seios fartos, o jeito de falar especial ou até o cabelo liso. Pinçamos o objeto, como se fosse possível reproduzir as condições originais.

Assim nascem as anorexias nervosas, as bulimias, os transtornos de ansiedade generalizada. Uma ânsia que não sabemos de quê. É a não aceitação de nossa flora nativa, a contaminação biológica do desejo.

Trazemos vontades anoni também – sonhos da mãe, do pai, do marido, da namorada. Vontades que não são as nossas: uma profissão específica, ter muitos filhos, usar roupas claras, sapatos com salto alto. Muitas vezes não é o que faríamos da nossa existência se decidíssemos por nossa conta.

Enxertar uma característica, assumir uma expectativa alheia é o mesmo que plantar o anoni: devastará o pasto, atropelará espaços e acabaremos desnutridos.

O anoni é nossa tentativa perene de aposentadoria.

Confira a Crônica Falada no Camarote TVCOM: vá para o Bairro das Mídias

O Capim nosso de cada dia - Crônica Falada no Camarote TVCOM [17.02.10]


Capim Anoni – Eragrostis spp

O capim-anoni veio importado por um agrônomo na década de 50. Chegou aos pastos do Rio Grande do Sul travestido de solução para herbívoros. A planta crescia incrivelmente viçosa e se espalhava magicamente.

Mas o Anoni revelou-se uma praga, um caso de contaminação biológica. A espécie disseminou-se e tomou o espaço das leguminosas e outros vegetais nativos. O gado não consegue pastá-lo, os cavalos ficam enfraquecidos. Não conseguimos arrancar o Anoni com a mão. É aquele capim alto e verde que parece de seda. Não cede.

Vejo que estamos sempre atrás do Anoni. Sempre querendo uma solução fantástica, capaz de nos poupar do esforço característico. Queremos uma bondade parada, um atalho, uma curva rápida para cruzar montanhas. Queremos emagrecer sem passar fome, clarear olheiras em cinco minutos, cumprir faculdades e construir carreiras em dois anos. Queremos peelings que não agridam a pele, massageadores que reduzam a gordura, transformar alimentos congelados em uma explosão de sabores usando um novo forno.

Queremos encarnar a cigarra, nunca a formiga. Almejamos parecer os mais espertos. Sonhamos em superar o trabalho árduo a que os outros se submetem.

Não é apenas a arrogância que nos move em direção aos anonis. É também uma ambição invejosa.

O capim-anoni, em seu ambiente natural, não é um problema. Lá ele divide espaço com combatentes originais. Não sabe se alastrar na terra natal. Guarda as proporções de equilíbrio. Somente translocado é que ele se comporta mal.

O mesmo acontece quando vemos a vida de alguém. Selecionamos os aspectos que queríamos ter: muito dinheiro, uma mulher com seios fartos, o jeito de falar especial ou até o cabelo liso. Pinçamos o objeto, como se fosse possível reproduzir as condições originais.

Assim nascem as anorexias nervosas, as bulimias, os transtornos de ansiedade generalizada. Uma ânsia que não sabemos de quê. É a não aceitação de nossa flora nativa, a contaminação biológica do desejo.

Trazemos vontades anoni também – sonhos da mãe, do pai, do marido, da namorada. Vontades que não são as nossas: uma profissão específica, ter muitos filhos, usar roupas claras, sapatos com salto alto. Muitas vezes não é o que faríamos da nossa existência se decidíssemos por nossa conta.

Enxertar uma característica, assumir uma expectativa alheia é o mesmo que plantar o anoni: devastará o pasto, atropelará espaços e acabaremos desnutridos.

O anoni é nossa tentativa perene de aposentadoria.

Confira a Crônica Falada no Camarote TVCOM: vá para o Bairro das Mídias

O Capim nosso de cada dia - Crônica Falada no Camarote TVCOM [17.02.10]


Capim Anoni – Eragrostis spp

O capim-anoni veio importado por um agrônomo na década de 50. Chegou aos pastos do Rio Grande do Sul travestido de solução para herbívoros. A planta crescia incrivelmente viçosa e se espalhava magicamente.

Mas o Anoni revelou-se uma praga, um caso de contaminação biológica. A espécie disseminou-se e tomou o espaço das leguminosas e outros vegetais nativos. O gado não consegue pastá-lo, os cavalos ficam enfraquecidos. Não conseguimos arrancar o Anoni com a mão. É aquele capim alto e verde que parece de seda. Não cede.

Vejo que estamos sempre atrás do Anoni. Sempre querendo uma solução fantástica, capaz de nos poupar do esforço característico. Queremos uma bondade parada, um atalho, uma curva rápida para cruzar montanhas. Queremos emagrecer sem passar fome, clarear olheiras em cinco minutos, cumprir faculdades e construir carreiras em dois anos. Queremos peelings que não agridam a pele, massageadores que reduzam a gordura, transformar alimentos congelados em uma explosão de sabores usando um novo forno.

Queremos encarnar a cigarra, nunca a formiga. Almejamos parecer os mais espertos. Sonhamos em superar o trabalho árduo a que os outros se submetem.

Não é apenas a arrogância que nos move em direção aos anonis. É também uma ambição invejosa.

O capim-anoni, em seu ambiente natural, não é um problema. Lá ele divide espaço com combatentes originais. Não sabe se alastrar na terra natal. Guarda as proporções de equilíbrio. Somente translocado é que ele se comporta mal.

O mesmo acontece quando vemos a vida de alguém. Selecionamos os aspectos que queríamos ter: muito dinheiro, uma mulher com seios fartos, o jeito de falar especial ou até o cabelo liso. Pinçamos o objeto, como se fosse possível reproduzir as condições originais.

Assim nascem as anorexias nervosas, as bulimias, os transtornos de ansiedade generalizada. Uma ânsia que não sabemos de quê. É a não aceitação de nossa flora nativa, a contaminação biológica do desejo.

Trazemos vontades anoni também – sonhos da mãe, do pai, do marido, da namorada. Vontades que não são as nossas: uma profissão específica, ter muitos filhos, usar roupas claras, sapatos com salto alto. Muitas vezes não é o que faríamos da nossa existência se decidíssemos por nossa conta.

Enxertar uma característica, assumir uma expectativa alheia é o mesmo que plantar o anoni: devastará o pasto, atropelará espaços e acabaremos desnutridos.

O anoni é nossa tentativa perene de aposentadoria.

Confira a Crônica Falada no Camarote TVCOM:

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Borbulhas de Amor

EPITÁFIO
Há outras formas
de aquecer um corpo.


- Vamos passar a noite no motel?

Achei legal a ideia, afinal, divido o apartamento com meu irmão. Seria, sem dúvida, mais romântico.

Eu não sei nada sobre motéis. Devo ter freqüentado, no máximo, uns dois. Na vida. Juro. É puro fruto do acaso porque acabei namorando gente que vivia sozinha. Então, não tive o tour iniciático, não herdei problemas com sogros, não girei pela cidade.

Quando ele sugeriu o motel, achei bem diferente. Meio cedo para já querer “diferente”, mas ok. Segurei o pensamento inseguro e fiz o mantra de “é pelo romance”.

Chegamos no motel muito rápido. Estranho para quem sempre pergunta as rotas, os melhores trajetos. Na portaria, nem leu a tabuleta, saiu pedindo suíte 23 ou 33 não-sei-o-quê.

Eu olhava tudo disfarçando a cara de tonta. Não estou acostumada a não saber certas coisas, ainda mais aos trinta anos. Como ia contar que não conhecia nada de nada daquilo?

Para minha surpresa, chegava a me sentir encabulada de estar num motel, tamanha a lacuna que encontrei: vergonha de estar em motel eu devia ter sentido aos quinze anos, não agora.

Havia quartos com e sem Academia do Prazer, a voz anunciou. Na hora repeti rindo baixo, mas ele ouviu.

- A Academia do Prazer daqui é mixa, precisa ver os equipamentos dos motéis da Scharlau.

Acrescentou uma piadinha sobre um tal “JM” que sai nos cartões de crédito da região metropolitana

- Como se isso guardasse segredo, mas TODOS sabem que “JM” são as iniciais do dono dos motéis da região.

Todos sabem? Ia me segurando no assento do carro, rezando pelo botão ejetor. Mas o pesadelo só começava. Lembrei da amiga da adolescência que tinha cartão Vip do Vison Motel e ganhava descontos e pernoites com seu namorado. E eu lá, mentindo que já conhecia e não achava grande coisa.

Falou da batata frita do motel botafogo, da decoração brega no porto dos casais, da decadência do medieval, do bom e honesto A2.

- Hum, sei. É mesmo? Puxa. Quem diria?

Começou a encher a banheira e disse:

- Mas é para depois, tu sabe, né? Depois da hidro não dá para fazer nada.

- É, realmente.

*Gracias, Bob,
pela sugestão
de morte.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Os Pedais de Cinderela


Roy Lichtenstein
In the Car, 1963


Verão excêntrico: a mãe e o pai decidiram ir longe procurar os presentes de Natal, na Ciudad Del Este. Chance de receber o que sonhávamos. Eu e meus irmãos tínhamos o pedido em uníssono: um carrinho de controle remoto.

Em 1983, a companhia de brinquedos Estrela fez um comercial que hipnotizava: Pégasus. O estonteante, maravilhoso, milagroso carro que obedecia aos comandos para direção e sentido de uma criança a trinta metros de distância. Luxuosos modelos da Série Prata e Série Ouro, ditadas pela cor da carroceria. Uma imitação do BMW –M1, lançado em 1978. Alcançava 20km/h e disparava luzes de seta na frente e atrás.

Inspirado na picape Chevy da GM que ardia na tela do Duro na Queda, um ano depois, a empresa lançou o Colossus. Ostentava faróis de milha e quebra-mato empunhado sobre o radiador. Rugia com seus pneus de borracha, capota na caçamba, tração 4X2 e 4X4 acionáveis embaixo do veículo. Em seguida, lançaram o Maximus. Aparência semelhante a de um Buggy, com rodas traseiras maiores que as dianteiras. O fenômeno acelerava até 25Km/h.

Imaginávamos as trilhas, os asfaltos, as pistas de corrida, os momentos de glória: eles prometeram cumprir nossas estrelas cadentes.

Tamanha excitação, antecipamos a noite de vinte e quatro de dezembro para o início da tarde.

Entregaram a primeira caixa para meu irmão mais velho. Ela revelou a cópia fiel da Supermaquina. O K.I.T.T. – robô-carro inspirado no Pontiac Firebird. Com o afamado controle remoto. Não era nem Pégasus, nem Colossus, nem Maximus. Mas, bem bacana: uma viatura lustrosa e negra.

Meu irmão do meio ganhou um Toyota Celic prata. Divino, com rodas elegantes, chispantes e aerofólio. O controle, extraordinário, com alavanca, volante e botões.

Saíram pela porta brindando os olhos.

Chegou minha vez. Uma caixa menor. Um carro estrangeiro mais estreito? Uma moto, será?
Uma Barbie. Isso mesmo, uma Barbie. Uma Barbie sobre uma mobilete. Ela encaixava os pezinhos de anjo pornô nos pedais. E seu controle remoto em uma coleira. Um indecente fio preto ligado a uma caixinha cor-de-rosa que continha os comando “para-frente” e “para-trás”. A Barbie atingia 0,5Km/h.

Eles deduziram que pedia o mesmo presente que os meninos porque não conhecia a charmosa Barbie de controle remoto! A frustração com aquele presente, nunca revelei. Fiquei sentada com a boneca móvel.

- É linda, obrigada. Eu adorei. Não podia imaginar.

Meus irmãos cairiam como abutres sobre minha tristeza se soubessem dela.

A paixão por carros vem de sempre. Dirijo desde os dezesseis. Na minha família, o idioma dos automóveis é a igualdade com os homens. Meu pai diz que a gente conhece o motorista pela ré.

Eu me empenhei para refinar o mandamento. Só não esperava namorar um piloto de Fórmula Ford. Giuliano. Desde menino guiava Kart e vinha sendo promovido de categoria.

Exibia uma única covinha no rosto, do lado direito, quando sorria. Giu: seu apelido deslizava gemido. Giu: com seus olhinhos de mini-amêndoas e o corpão de atleta.

Como se não bastasse o design, havia a transmissão elétrica entre a gente.

Giu posava imponente, uma macheza indisfarçável e deliciosa. Eu me sentia a mais feminina princesinha. Para que eu descesse, abria a porta do carro. A seguir, lustrava a lataria onde apoiou a mão. Mas isso não importava, ainda incidia em cavalheirismo.

O zelo com o carro provocava ciúme: observações constantes, revisões, banhos especiais, palavras carinhosas. Um acessório novo por semana, como presentinhos. Eu participava adivinhando como em um jogo de sete erros.

No meu aniversário, Giu partiu para disputar uma prova. Apareceu na porta de casa, no fim da tarde, perfumado e com troféu para mim. Que mais eu poderia querer?

Queria poder compartir a paixão sobre veículos com ele. Começava o colóquio sobre carros; eu mal armava as figurinhas para troca e ele já desconversava. Enfim confessou que não achava atraente debater o tema comigo, parecia que eu me tornava um amigo, um colega.

Achei que daria conta de não dizer uma palavra a respeito de rodas, afinal, existem outras matérias mais. Assunto encerrado.

Giu assumia o volante com toda naturalidade. Como se tivesse seu nome etiquetado. Melhor dizendo: como se o assento levasse uma plaquinha idêntica a do banheiro. O carro era dividido por gênero: condutor, masculino; espelhinho e porta-luvas, feminino. Simples assim. Cada um sabe seu lugar.

Como exemplo de boa caroneira, passeava a seu lado quando estacionou em faixa dupla e saiu. Enquanto esperava, abriu uma vaguinha. Minha gentileza foi automática. Para evitar multas, coloquei o carro. Ao chegar, o cara ficou muito raivoso. Com cólera. Urrava inspecionando o carro nas beiras. E mais: achou marca branca no pneu e me atribuiu o desenho de cal e barbeiragem.

Como iria desfilar na cidade com aquela marca embaraçosa?

O natal de 86 veio à tona, com seu aviso contido no presente. Aquela Barbie era para ele. Tentei encaixar meus pés como a Cinderela. Mas, de fato, eu vim sem fio.

Os Pedais de Cinderela


Roy Lichtenstein
In the Car, 1963


Verão excêntrico: a mãe e o pai decidiram ir longe procurar os presentes de Natal, na Ciudad Del Este. Chance de receber o que sonhávamos. Eu e meus irmãos tínhamos o pedido em uníssono: um carrinho de controle remoto.

Em 1983, a companhia de brinquedos Estrela fez um comercial que hipnotizava: Pégasus. O estonteante, maravilhoso, milagroso carro que obedecia aos comandos para direção e sentido de uma criança a trinta metros de distância. Luxuosos modelos da Série Prata e Série Ouro, ditadas pela cor da carroceria. Uma imitação do BMW –M1, lançado em 1978. Alcançava 20km/h e disparava luzes de seta na frente e atrás.

Inspirado na picape Chevy da GM que ardia na tela do Duro na Queda, um ano depois, a empresa lançou o Colossus. Ostentava faróis de milha e quebra-mato empunhado sobre o radiador. Rugia com seus pneus de borracha, capota na caçamba, tração 4X2 e 4X4 acionáveis embaixo do veículo. Em seguida, lançaram o Maximus. Aparência semelhante a de um Buggy, com rodas traseiras maiores que as dianteiras. O fenômeno acelerava até 25Km/h.

Imaginávamos as trilhas, os asfaltos, as pistas de corrida, os momentos de glória: eles prometeram cumprir nossas estrelas cadentes.

Tamanha excitação, antecipamos a noite de vinte e quatro de dezembro para o início da tarde.

Entregaram a primeira caixa para meu irmão mais velho. Ela revelou a cópia fiel da Supermaquina. O K.I.T.T. – robô-carro inspirado no Pontiac Firebird. Com o afamado controle remoto. Não era nem Pégasus, nem Colossus, nem Maximus. Mas, bem bacana: uma viatura lustrosa e negra.

Meu irmão do meio ganhou um Toyota Celic prata. Divino, com rodas elegantes, chispantes e aerofólio. O controle, extraordinário, com alavanca, volante e botões.

Saíram pela porta brindando os olhos.

Chegou minha vez. Uma caixa menor. Um carro estrangeiro mais estreito? Uma moto, será?
Uma Barbie. Isso mesmo, uma Barbie. Uma Barbie sobre uma mobilete. Ela encaixava os pezinhos de anjo pornô nos pedais. E seu controle remoto em uma coleira. Um indecente fio preto ligado a uma caixinha cor-de-rosa que continha os comando “para-frente” e “para-trás”. A Barbie atingia 0,5Km/h.

Eles deduziram que pedia o mesmo presente que os meninos porque não conhecia a charmosa Barbie de controle remoto! A frustração com aquele presente, nunca revelei. Fiquei sentada com a boneca móvel.

- É linda, obrigada. Eu adorei. Não podia imaginar.

Meus irmãos cairiam como abutres sobre minha tristeza se soubessem dela.

A paixão por carros vem de sempre. Dirijo desde os dezesseis. Na minha família, o idioma dos automóveis é a igualdade com os homens. Meu pai diz que a gente conhece o motorista pela ré.

Eu me empenhei para refinar o mandamento. Só não esperava namorar um piloto de Fórmula Ford. Giuliano. Desde menino guiava Kart e vinha sendo promovido de categoria.

Exibia uma única covinha no rosto, do lado direito, quando sorria. Giu: seu apelido deslizava gemido. Giu: com seus olhinhos de mini-amêndoas e o corpão de atleta.

Como se não bastasse o design, havia a transmissão elétrica entre a gente.

Giu posava imponente, uma macheza indisfarçável e deliciosa. Eu me sentia a mais feminina princesinha. Para que eu descesse, abria a porta do carro. A seguir, lustrava a lataria onde apoiou a mão. Mas isso não importava, ainda incidia em cavalheirismo.

O zelo com o carro provocava ciúme: observações constantes, revisões, banhos especiais, palavras carinhosas. Um acessório novo por semana, como presentinhos. Eu participava adivinhando como em um jogo de sete erros.

No meu aniversário, Giu partiu para disputar uma prova. Apareceu na porta de casa, no fim da tarde, perfumado e com troféu para mim. Que mais eu poderia querer?

Queria poder compartir a paixão sobre veículos com ele. Começava o colóquio sobre carros; eu mal armava as figurinhas para troca e ele já desconversava. Enfim confessou que não achava atraente debater o tema comigo, parecia que eu me tornava um amigo, um colega.

Achei que daria conta de não dizer uma palavra a respeito de rodas, afinal, existem outras matérias mais. Assunto encerrado.

Giu assumia o volante com toda naturalidade. Como se tivesse seu nome etiquetado. Melhor dizendo: como se o assento levasse uma plaquinha idêntica a do banheiro. O carro era dividido por gênero: condutor, masculino; espelhinho e porta-luvas, feminino. Simples assim. Cada um sabe seu lugar.

Como exemplo de boa caroneira, passeava a seu lado quando estacionou em faixa dupla e saiu. Enquanto esperava, abriu uma vaguinha. Minha gentileza foi automática. Para evitar multas, coloquei o carro. Ao chegar, o cara ficou muito raivoso. Com cólera. Urrava inspecionando o carro nas beiras. E mais: achou marca branca no pneu e me atribuiu o desenho de cal e barbeiragem.

Como iria desfilar na cidade com aquela marca embaraçosa?

O natal de 86 veio à tona, com seu aviso contido no presente. Aquela Barbie era para ele. Tentei encaixar meus pés como a Cinderela. Mas, de fato, eu vim sem fio.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Esse teu olhar

EPITÁFIO
Tinha orgulho de seus olhos
porque mudavam de cor.


- Amor, eu estou tão envergonhada.

Confesso chorando dentro do carro.

Gosto de falar coisas importantes dentro do meu Twingo estacionado, com motor rosnando, ar condicionado zunindo e vidros fumê selados. É como instalar um confessionário moderno, uma namoradeira com vedação sonora, uma câmara acústica. Em nenhum outro lugar me sinto tão resguardada.

Enfim, chorava e confessava minha vergonha por ter mexido no celular dele.

Sim, eu mexi no celular dele. Aconteceu uma única vez, não irá se repetir. É simples: não espero não achar nada. Sempre haverá alguma coisinha naquele blackshitberry dele. Essas coisas estarão em qualquer blackbosta, de qualquer um: (já disse Tom Zé) é somente requentar e usar.

Foi uma madrugada insone, um lapso. Doeu demais. Levei dois dias me contorcendo até explodir:

- Quem é Julia?

- Que Julia?

- Uma de quem tu guarda os olhos no céu da boca. E manda beijo. E chama de mulher maravilhosa. E no aniversário manda os lábios embrulhados para viagem!! (Uááááááá)

- Ah, essa Julia. Amor. A Julia é atriz, minha amiga de São Paulo. Sabe como eu sou carinhoso nas mensagens.

- Eu sei, mas é que...
(uáááááá)(uáááááá)(uáááááá)

Centenas de Uááás depois, passou a tristeza.

Veio o ódio estratosférico. A vontade de esmagar aquela cabeça sedutora dos infernos.

Carinhosos são os meus amigos. Aquilo é ser passado, safado, Canalha! Que ódio.

Morte com uma marretada. O sangue banhando suas pupilas anisocóricas (uma dilatada e outra contraída): que é para ter certeza de que morreu com o cérebro pifado.

E com jabuticabas sortidas nas órbitas.

Felicidade Sintética - Crônica Falada Programa Camarote TVCOM



Temos a capacidade de fabricar felicidade diante de situações indesejáveis. É o caso dos depoimentos no final da novela Viver a Vida, de Manoel Carlos.

É comum, diante de calamidades, sermos capazes de nos dizer melhores depois delas.

Desconfiamos disso, duvidamos de quem se diz mais feliz do que seria sem o "infortúnio".

Uma pesquisa em Harvard, desenvolvida pelo psicólogo Dan Gilbert, mostra que esta felicidade que fabricamos é tão boa e tão duradoura quanto a felicidade que sentimos quando alguma coisa boa de fato acontece.

Confira a crônica falada de Cínthya Verri que foi
exibida na TVCOM dia 10 de fevereiro de 2010:

vá para o Bairro das Mídias

Felicidade Sintética - Crônica Falada Programa Camarote TVCOM



Temos a capacidade de fabricar felicidade diante de situações indesejáveis. É o caso dos depoimentos no final da novela Viver a Vida, de Manoel Carlos.

É comum, diante de calamidades, sermos capazes de nos dizer melhores depois delas.

Desconfiamos disso, duvidamos de quem se diz mais feliz do que seria sem o "infortúnio".

Uma pesquisa em Harvard, desenvolvida pelo psicólogo Dan Gilbert, mostra que esta felicidade que fabricamos é tão boa e tão duradoura quanto a felicidade que sentimos quando alguma coisa boa de fato acontece.

Confira a crônica falada de Cínthya Verri que foi
exibida na TVCOM dia 10 de fevereiro de 2010:

vá para o Bairro das Mídias

Felicidade Sintética - Crônica Falada Programa Camarote TVCOM


Temos a capacidade de fabricar felicidade diante de situações indesejáveis. É o caso dos depoimentos no final da novela Viver a Vida, de Manoel Carlos.

É comum, diante de calamidades, sermos capazes de nos dizer melhores depois delas.

Desconfiamos disso, duvidamos de quem se diz mais feliz do que seria sem o "infortúnio".

Uma pesquisa em Harvard, desenvolvida pelo psicólogo Dan Gilbert, mostra que esta felicidade que fabricamos é tão boa e tão duradoura quanto a felicidade que sentimos quando alguma coisa boa de fato acontece.

Confira a crônica falada de Cínthya Verri que foi
exibida na TVCOM dia 10 de fevereiro de 2010:


domingo, 7 de fevereiro de 2010

Quer uma mãozinha?

EPITÁFIO
Pela última vez, pintou as unhas
de vermelho escarlate.


Meu irmão deixou avisado desde a pré-adolescência que tudo o que um cara espera como sinal de resposta positiva na hora da cantada é o sorriso. Quando a mulher ri, a guarda foi posta de lado.

Por isso, para mim é difícil lidar com a espontaneidade do Fabrício: naturalmente alegre, comunicativo e sedutor. Poucos resistem às brincadeiras, aos gracejos, ao espírito alto e inteligente que ele tem.

Estávamos no Rio, na sorveteria Itália. Calorzinho de cinqüenta graus, a loja estava lotada. Íamos enfileirados, estilo repartição pública. Eu, à direita dele, olhava os sabores na vitrine. Fui lendo as plaquetas, distraída, coco, iogurte natural, doce de leite, passas ao rum, chocolate e menta quando, de repente, explode um hihihi-hahaha do meu lado.

A mocinha morena veio pela esquerda e cutucava o Fabrício para espiar os sabores no freezer. Ele gostou da provocação e pôs as mãos em frente ao vidro para bloquear a visão dela. A engraçadinha, que devia ter comido Palhacitos no café da manhã, ria da piada da semana – que eu pensei que fosse eu.


Morre novamente, dessa vez, perdendo as mãozinhas em duas versões: 
uma sem cenário e outra com a favela fazendo fundo.


Bigodudo para Pedro

Fiz o bigodudo de Viena para celebrar a chegada de Pedro, filho da Neneca e do Fred.






Baseado neste original,
de quem ainda busco a autoria.
Se alguém souber,
escreva pra mim.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Donzelas Modernas - Polêmica com @lauroquadros (05.02.2010)


Em debate com os seguintes convidados. Da esquerda para a direita:

- Ginecologista e Obstetra, ANTÔNIO CELSO KOEHLER AYUB

- Coordenadora do Comitê de Sexualidade da Sociedade de Psicologia do RS, LÚCIA PESCA

- Jornalista e Professor da PUCRS, ANDRÉ PASE

- Secretária executiva da Rede Feminista da Rede de Saúde, TÉLIA NEGRÃO

- Médica e psicoterapeuta, CÍNTHYA VERRI


Confira minha participação no Programa Polêmica da Rádio Gaúcha que foi ao ar nesta manhã. Apresentação do queridíssimo Lauro Quadros (@lauroquadros).


Para pagar os estudos jovem neozelandesa leiloa sua virgindade pela internet.

A virgindade, hoje, é motivo de orgulho ou de constrangimento?

Orgulho - 77%
Constrangimento - 23%
Total: 196 votos

Donzelas Modernas - Polêmica com @lauroquadros (05.02.2010)


Em debate com os seguintes convidados. Da esquerda para a direita:

- Ginecologista e Obstetra, ANTÔNIO CELSO KOEHLER AYUB

- Coordenadora do Comitê de Sexualidade da Sociedade de Psicologia do RS, LÚCIA PESCA

- Jornalista e Professor da PUCRS, ANDRÉ PASE

- Secretária executiva da Rede Feminista da Rede de Saúde, TÉLIA NEGRÃO

- Médica e psicoterapeuta, CÍNTHYA VERRI


Confira minha participação no Programa Polêmica da Rádio Gaúcha que foi ao ar nesta manhã. Apresentação do queridíssimo Lauro Quadros (@lauroquadros).


Para pagar os estudos jovem neozelandesa leiloa sua virgindade pela internet.

A virgindade, hoje, é motivo de orgulho ou de constrangimento?

Orgulho - 77%
Constrangimento - 23%
Total: 196 votos

Donzelas Modernas - Polêmica 05.02.2010


Em debate com os seguintes convidados. Da esquerda para a direita:

- Ginecologista e Obstetra, ANTÔNIO CELSO KOEHLER AYUB

- Coordenadora do Comitê de Sexualidade da Sociedade de Psicologia do RS, LÚCIA PESCA

- Jornalista e Professor da PUCRS, ANDRÉ PASE

- Secretária executiva da Rede Feminista da Rede de Saúde, TÉLIA NEGRÃO

- Médica e psicoterapeuta, CÍNTHYA VERRI


Confira a participação de Cínthya Verri no Programa Polêmica da Rádio Gaúcha que foi ao ar nesta manhã. Apresentação do queridíssimo Lauro Quadros.

Para pagar os estudos jovem neozelandesa leiloa sua virgindade pela internet.

A virgindade, hoje, é motivo de orgulho ou de constrangimento?

Orgulho - 77%
Constrangimento - 23%
Total: 196 votos

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Paranóia Androcentrista - Crônica Falada no Programa Camarote TVCOM


Nesta quarta-feira, Roger não era Katia, decidi não ser Cínthya.

Brincadeiras à parte, afinal, Roger Lerina (@lerina) está ótimo e divertido no Camarote. Katia Suman (@katiasuman) pode curtir as férias em paz. Mas criei uma crônica diferente, sob a óptica da Paola Bulbe.

Paola é a personagem que inventei para um exercício de Blog Literário. Ela tem um blog, o Mundo Fálico. A moça examina tudo de perto porque acredita em uma conspiração mundial androcentrista.

A broma rende assunto, principalmente sobre como agir diante de um amigo, conhecido ou familiar que passa a ter ideias deliroides como a Paola.

Confira a análise feita no programa Camarote TVCOM do videoclipe Beat It, de Michael Jackson.
Ainda, visite a crônica escrita de Paola sobre o tema no http://mundofalico.blogspot.com.

Veja o vídeo no Bairro das Mídias

Paranóia Androcentrista - Crônica Falada no Programa Camarote TVCOM


Nesta quarta-feira, Roger não era Katia, decidi não ser Cínthya.

Brincadeiras à parte, afinal, Roger Lerina (@lerina) está ótimo e divertido no Camarote. Katia Suman (@katiasuman) pode curtir as férias em paz. Mas criei uma crônica diferente, sob a óptica da Paola Bulbe.

Paola é a personagem que inventei para um exercício de Blog Literário. Ela tem um blog, o Mundo Fálico. A moça examina tudo de perto porque acredita em uma conspiração mundial androcentrista.

A broma rende assunto, principalmente sobre como agir diante de um amigo, conhecido ou familiar que passa a ter ideias deliroides como a Paola.

Confira a análise feita no programa Camarote TVCOM do videoclipe Beat It, de Michael Jackson.
Ainda, visite a crônica escrita de Paola sobre o tema no http://mundofalico.blogspot.com.

Veja o vídeo no Bairro das Mídias

Paranóia Androcentrista - Crônica Falada no Programa Camarote TVCOM - 03/02/2010


Nesta quarta-feira, Roger não era Katia, decidi não ser Cínthya.

Brincadeiras à parte, afinal, Roger Lerina (@lerina) está ótimo e divertido no Camarote. Katia Suman (@katiasuman) pode curtir as férias em paz. Mas criei uma crônica diferente, sob a óptica da Paola Bulbe.

Paola é a personagem que inventei para um exercício de Blog Literário. Ela tem um blog, o Mundo Fálico. A moça examina tudo de perto porque acredita em uma conspiração mundial androcentrista.

A broma rende assunto, principalmente sobre como agir diante de um amigo, conhecido ou familiar que passa a ter ideias deliroides como a Paola.

Confira a análise feita no programa Camarote TVCOM do videoclipe Beat It, de Michael Jackson.
Ainda, visite a crônica escrita de Paola sobre o tema no http://mundofalico.blogspot.com.


No fundo, no fundo, somos rasos.

EPITÁFIO
Era todo apaixonado
por lavar seu carro.




Estivemos no Rio de Janeiro e a produção providenciou hospedagem generosa, porém na distante Barra da Tijuca. Desde o aeroporto, os taxistas avisaram seus altos preços para o deslocamento. Tive o estalo:

- Vamos alugar um carro?

Hoje em dia, com GPS, nada há a temer. Diante dos balcões, Bitols insinuou que fôssemos até a Localiza. Achei estranho preferir no desconhecido. Questionei se já tinha alugado carro antes.

- Não, nunca.

- Então por que a Localiza?

- Ah, é mais famosa.

- Não é mais famosa que a Hertz.

- Sei lá. Propaganda talvez.

Acabamos, de qualquer forma, restritos à Localiza porque nenhuma das outras dispunha de veículos no momento. Na hora do cadastro, o balconista, carioca, riu entre os dentes e saiu com a pérola:

- Pois é, Sr. Fabrício, mas temos um cadastro aqui no seu CPF.

- Não pode ser.

O atendente testemunhou o aperto do homem e minha cara de fúria surgindo.

- Mas é beeeeeem antigo – tentou aliviar.

Bitols insistiu na tese do engano até ficar impossível continuar com aquilo, já que o atendente precisava operar dentro do cadastro existente. Até porque, o endereço era aquele, o telefone também e até mesmo o nome da mãe. Números podem ter dígitos trocados, mas nome da mãe é prova dos nove.

Rendeu-se. Fez um ar de “ah, lembrei”, argumentou que foi o seguro, quando bateu o carro, blábláblá.

- Ahã, sei.

Planejei tudo: assim que voltássemos, quando menos esperasse, cortaria os cabos de freio do seu Crossfox amarelo e assistiria ao sol se pondo no Guaíba com gostinho de vingança.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Você tem medo de quê? Brasil na Madrugada - 03/02/2010



O filósofo Roberto Azambuja e a médica e psicoterapeuta Cínthya Verri debatem os medos e as fobias. Eles explicam como superá-las quando se tornam doença e esclarecem as dúvidas mais comuns, além de deixar dicas de como lidar com a ansiedade.

Confira o programa da Rádio Gaúcha Brasil na Madrugada, apresentado pela dulcíssima @SaraBodowsky no Bairro das Mídias:

vá por aqui

Você tem medo de quê? Brasil na Madrugada - 03/02/2010



O filósofo Roberto Azambuja e a médica e psicoterapeuta Cínthya Verri debatem os medos e as fobias. Eles explicam como superá-las quando se tornam doença e esclarecem as dúvidas mais comuns, além de deixar dicas de como lidar com a ansiedade.

Confira o programa da Rádio Gaúcha Brasil na Madrugada, apresentado pela dulcíssima @SaraBodowsky no Bairro das Mídias:

vá por aqui

Você tem medo de quê? Brasil na Madrugada - 03/02/2010



O filósofo Roberto Azambuja e a médica e psicoterapeuta Cínthya Verri debatem os medos e as fobias. Eles explicam como superá-las quando se tornam doença e esclarecem as dúvidas mais comuns, além de deixar dicas de como lidar com a ansiedade.

Confira o programa da dulcíssima @SaraBodowsky



Aqui, a dica de leitura dada no programa:


De Allen Shawn, Bem Que Eu Queria Ir, Notas de uma vida fóbica.

Alguns trechos:

Em geral, o agorafóbico sofre de uma culpa terrível por todas as ocasiões e oportunidades perdidas ou estragadas por suas reações e pelas ausências ou partidas inexplicadas que feriram suas relações.

No que se refere à confrontação dos riscos normais da vida, há decerto muita verdade no velho conselho de voltarmos imediatamente a montar o cavalo que nos derrubou. Uma experiência que rapidamente contradiz um trauma pode ajudar o cérebro a se curar com ainda mais velocidade.

[Segundo Freud] as carícias que recebemos quando bebês e continuamos a buscar em formas mais maduras quando crescemos podem nos ajudar a sobreviver. (Mais recentemente, o psicanalista francês Didier Anzieu escreveu sobre o "eu-pele" (le moi-peau) e a importância de sermos acariciados, dizendo que o afeto físico é um reforço essencial do "eu".)

Quando hábitos de evitação e ansiedade persistem por muito tempo, eles se tornam parte de você, como a dor crônica. O cérebro se acostuma às conexões, e elas se consolidam. O impressionante, no entanto, é que mesmo o cérebro adulto pode construir conexões completamente novas. As antigas podem se desfazer - se a pessoa estiver pronta a desfazê-las - e por fim, com muito trabalho, podem ser substituídas.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Suave Veneno


EPITÁFIO
Ele ainda pensava que a asma
era seu principal problema.


Estamos em época de revisão de livro de crônicas. Nesta fase, Bitols fica frenético. Exige minha releitura, anseia por meu foco total, deseja minhas críticas. Concordei em ajudar, mas só depois de resistir muito. Chorei, acusei, briguei. Depois de me envergonhar de tanto ciúme.

Não gosto de ler textos antigos, é como estar obrigada a chafurdar entre páginas de um diário. Nunca fui de espiar o passado de ninguém. Meu passado, por exemplo, é fossilizado embaixo da terra.

Compelida à tarefa, achei uma pérola onde ele supostamente transa com algumazinha que grita “Ai meu deus”. No final, ele se converte.

Ah, que ódio!

Merece uma morte violenta, contorcido e trêmulo com o veneno que tenho vontade de despejar em seu bourbon.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Retorno do Recalcado

Allen Suton´s Portfolio at Behance
Allen Sutton, Illustration, Graphic Design, Art, Offkilterart
Check out his amazing blog: http://www.offkilterart.blogspot.com


Minha mãe me chamava de relaxada. Ela sabia que eu odiava o termo. Retruquei que me chamasse de qualquer coisa, menos de relaxada. Havia alguma nota na palavra, um estalido, um insulto implícito. “Relaxada” me magoava mais do que ofendia. Mas ela fazia questão de usar o verbete nos piores momentos e principalmente depois do pedido.

Não tive berço, mas campo de concentração. Para me machucar, precisa muita astúcia, arame farpado, corredor polonês. Crueldade é apenas entretenimento. Retribuo asperezas sem nenhum esforço, uma habilidade que vem da infância.

Cresci com a imagem de pessoa desorganizada. Alguém que não sabe fazer pela casa coisa alguma, uma despreparada do lar. O pai também confirmava a impressão da mãe:

- Essa menina não sabe nem pegar uma vassoura direito!

De fato, não sabia que havia jeito para vassoura. Nunca me apeteceram perfeccionismos domésticos. Não foi coisinha passageira da adolescência. Nem birra de criança. Sempre acreditei que o desleixo fosse minha sombra.

Na faculdade e depois, no trabalho, esbanjava disciplina. Assim soube que o desastre estava resumido às tarefas caseiras.

Não tenho religião, menos ainda preferência por santas. Mas a Ivone, essa sim, é minha imaculada senhora da limpeza. Toda a quinta, como para a missa, preparava as oferendas: pão fresco e café, os produtos que pediu na lista de supermercado e os vale-transportes. Não sei o que seria sem ela, porque gosto de encontrar tudo arrumado.

Dificilmente levava alguém para dormir comigo. Topava motel, camping, motor-home, casa da mãe. Qualquer coisa. Meu apartamento era a porta de incêndio: o último caso. O primeiro namorado a freqüentá-la provocou calafrios. Morria de medo que saísse correndo gritando porca ou qualquer coisa assim. Mas eu não ia fingir. Não sou mulher de fazer de conta dotes de boa-moça. Até porque não saberia nem o suficiente para isso.

Mas é que esse moço vinha do interior. Não tinha saída. Os fins de semana reservados para o encontro. Com o convívio, fui descansando a tensão e o medo iniciais. Mais que isso: fui mudando a posição de observação.

Comecei sentando em um palito de dentes no sofá. Palito de dentes? No sofá? Recolhi. Ele parecia escorregado entre as almofadas. Uma distração.

As toalhas de banho repousavam como bandeiras secando nas portas do armário do quarto. As roupas dele faziam montinhos no canto atrás da porta do banheiro. Eu me bati na maçaneta, o vão era muito estreito. A seguir, enganchei e rasguei a manga da camiseta.

Tive vontade de xingá-lo. Uma força súbita de abrir a garganta em algo como: seu relaxado! Mas segurei o Tsunami. Aquela cólera repousava em mim como uma mola. Oito anos de análise servem para a gente pensar no retorno do recalcado. Removi o montículo travador de passagem e segui com a vida.

Na segunda-feira, reuni os copos, todos os seis copos, cinco xícaras, quatro pires, dois pacotes abertos de bolachas, uma meia sem par, CDs fora da caixa, discos de vinil fora da capa, um cobertor. Almofadas nocauteadas, um quadro encostado na parede, um pano de chão sobre uma poça de coca-cola, uma embalagem de Bib´s vazia. A coleção de gibis do Demolidor, a caixa de fotos da infância, uma peruca de Mortícia. Isso na sala.

Cogitei que a Ivone teria que ser fixa. Desse jeito, não dava. Mas nem a Ivone aceitou. Ela ,que não tem boca para nada, desabafou: uma coisa é trabalhar para uma mulher caprichosa como você; a outra é suportar um ímã de lixo.

Caprichosa?

O que uma mãe tira, só outra, a emprestada, devolve.

Enfim elaborada a questão materna de modo doméstico, voltei a fazer análise: dessa vez para seguir o namoro. Afinal, ele não podia ser tão imundo. Tão porco. Devia estar fantasiando coisas, projetando.

Pensava comigo: retorno do recalcado, retorno do recalcado.

Para expulsar os fantasmas e reaver a paz, comprei lingerie, coloquei som árabe e me espiralei em dança do ventre. Quando fui me deitar para o bote da serpente seguindo a flauta, senti em minha coxa a pérola: um cotonete usado, com a cabeça de açúcar queimado, sobre o lençol limpo. No travesseiro, lascas de unhas cortadas. Já era guerra civil, nem mais problema de higiene.

Gritei muito alto:

- Seu relaxado, vai arrumar tudo antes de trepar.

Não é sempre que alcanço o posto de minha mãe.

Retorno do Recalcado

Allen Suton´s Portfolio at Behance
Allen Sutton, Illustration, Graphic Design, Art, Offkilterart
Check out his amazing blog: http://www.offkilterart.blogspot.com


Minha mãe me chamava de relaxada. Ela sabia que eu odiava o termo. Retruquei que me chamasse de qualquer coisa, menos de relaxada. Havia alguma nota na palavra, um estalido, um insulto implícito. “Relaxada” me magoava mais do que ofendia. Mas ela fazia questão de usar o verbete nos piores momentos e principalmente depois do pedido.

Não tive berço, mas campo de concentração. Para me machucar, precisa muita astúcia, arame farpado, corredor polonês. Crueldade é apenas entretenimento. Retribuo asperezas sem nenhum esforço, uma habilidade que vem da infância.

Cresci com a imagem de pessoa desorganizada. Alguém que não sabe fazer pela casa coisa alguma, uma despreparada do lar. O pai também confirmava a impressão da mãe:

- Essa menina não sabe nem pegar uma vassoura direito!

De fato, não sabia que havia jeito para vassoura. Nunca me apeteceram perfeccionismos domésticos. Não foi coisinha passageira da adolescência. Nem birra de criança. Sempre acreditei que o desleixo fosse minha sombra.

Na faculdade e depois, no trabalho, esbanjava disciplina. Assim soube que o desastre estava resumido às tarefas caseiras.

Não tenho religião, menos ainda preferência por santas. Mas a Ivone, essa sim, é minha imaculada senhora da limpeza. Toda a quinta, como para a missa, preparava as oferendas: pão fresco e café, os produtos que pediu na lista de supermercado e os vale-transportes. Não sei o que seria sem ela, porque gosto de encontrar tudo arrumado.

Dificilmente levava alguém para dormir comigo. Topava motel, camping, motor-home, casa da mãe. Qualquer coisa. Meu apartamento era a porta de incêndio: o último caso. O primeiro namorado a freqüentá-la provocou calafrios. Morria de medo que saísse correndo gritando porca ou qualquer coisa assim. Mas eu não ia fingir. Não sou mulher de fazer de conta dotes de boa-moça. Até porque não saberia nem o suficiente para isso.

Mas é que esse moço vinha do interior. Não tinha saída. Os fins de semana reservados para o encontro. Com o convívio, fui descansando a tensão e o medo iniciais. Mais que isso: fui mudando a posição de observação.

Comecei sentando em um palito de dentes no sofá. Palito de dentes? No sofá? Recolhi. Ele parecia escorregado entre as almofadas. Uma distração.

As toalhas de banho repousavam como bandeiras secando nas portas do armário do quarto. As roupas dele faziam montinhos no canto atrás da porta do banheiro. Eu me bati na maçaneta, o vão era muito estreito. A seguir, enganchei e rasguei a manga da camiseta.

Tive vontade de xingá-lo. Uma força súbita de abrir a garganta em algo como: seu relaxado! Mas segurei o Tsunami. Aquela cólera repousava em mim como uma mola. Oito anos de análise servem para a gente pensar no retorno do recalcado. Removi o montículo travador de passagem e segui com a vida.

Na segunda-feira, reuni os copos, todos os seis copos, cinco xícaras, quatro pires, dois pacotes abertos de bolachas, uma meia sem par, CDs fora da caixa, discos de vinil fora da capa, um cobertor. Almofadas nocauteadas, um quadro encostado na parede, um pano de chão sobre uma poça de coca-cola, uma embalagem de Bib´s vazia. A coleção de gibis do Demolidor, a caixa de fotos da infância, uma peruca de Mortícia. Isso na sala.

Cogitei que a Ivone teria que ser fixa. Desse jeito, não dava. Mas nem a Ivone aceitou. Ela ,que não tem boca para nada, desabafou: uma coisa é trabalhar para uma mulher caprichosa como você; a outra é suportar um ímã de lixo.

Caprichosa?

O que uma mãe tira, só outra, a emprestada, devolve.

Enfim elaborada a questão materna de modo doméstico, voltei a fazer análise: dessa vez para seguir o namoro. Afinal, ele não podia ser tão imundo. Tão porco. Devia estar fantasiando coisas, projetando.

Pensava comigo: retorno do recalcado, retorno do recalcado.

Para expulsar os fantasmas e reaver a paz, comprei lingerie, coloquei som árabe e me espiralei em dança do ventre. Quando fui me deitar para o bote da serpente seguindo a flauta, senti em minha coxa a pérola: um cotonete usado, com a cabeça de açúcar queimado, sobre o lençol limpo. No travesseiro, lascas de unhas cortadas. Já era guerra civil, nem mais problema de higiene.

Gritei muito alto:

- Seu relaxado, vai arrumar tudo antes de trepar.

Não é sempre que alcanço o posto de minha mãe.