POR CÍNTHYA VERRI
MÉDICA E PSICOTERAPEUTA
Francisco Bosco questiona qual o limite para a renúncia
e o sacrifício no amor em “E Livre Seja Este Infortúnio”
Homem não será confessional para falar de amor, logo se municia de teorias psicanalíticas, semiologia e Foucault. Francisco Bosco brinca com a atitude e chama a si mesmo para uma conversa de homem. Não sabemos ao certo o que motivou seu novo livro, E Livre Seja Este Infortúnio, a não ser que foi inspirado em um verso de Rimbaud.
Ele trata da metamorfose de amor, que Ovídio já cantou. A mutação mais radical da personalidade. Uma espécie de suicídio de temperamento. Todo sujeito negado por uma mulher foi Werther. Todo apaixonado trocou seus ideais e amigos para contentar pedidos de alcova.
Francisco estuda a renúncia e o sacrifício afetivos feitos por uma relação. Qual é o limite? É senso comum aplaudirmos a independência, a manutenção da individualidade – encaramos quem não cede a quem ama como um vencedor, alguém maduro, capaz de se preservar. Bosco, na contramão, aponta que a paixão é o momento propício para enfrentar o pai e a mãe e descobrir do que somos feitos – esse poço infindável de teimosia. A paralisia pode significar apenas o medo ou a preguiça de se reinventar. Toda invenção começa com a intervenção.
A paixão é um eterno despojar-se: negociar o que pode ser dado até que reste somente o necessário. O autor desvenda que somente através de uma experiência imponente seremos capazes de abandonar o ritornelo. A partir do choque térmico do real, daquilo que não imaginávamos antes, é que aceitamos a condição sincera e útil do apequenamento. Ou seja, não somos tão bons assim a ponto de nos conservarmos intactos.
Com uma sinceridade ultrajante, usa a psicanálise para se entender, nunca para se conformar. Dá alta para sua analista e explica que terapia não é tratamento, mas um percurso intelectual. O cabra anuncia que a vivência da paixão representa um aniquilamento sedutor: aproveitar a desagregação para ser mais real rompendo o ciclo de repetições. Para chorar, nada mais estimulante do que uma cebola: “O eu é estruturado como uma cebola. O que significa isso? Significa que o eu é formado de uma série sucessiva de identificações. Se despirmos uma a uma essas identificações, como quem descasca uma cebola, não restará nada”.
Talvez seja indicado seguir o conselho de Brás Cubas: melhor cair das nuvens do que do terceiro andar (que o diga Arnaldo, o ex-lóki mutante, após voo suicida pela janela). Bosco detalha como o desejo insano proporcionado pela paixão é o mesmo que investir todo o dinheiro da sua vida em uma única ação, em suma, absoluta sandice. Logicamente, quando toda a nossa vida depende de uma única pessoa e sua opinião, iremos acatar como nunca julgamos possível. Seria como ouvir um comando divino direto no teledeus. Queremos agradar ao ser amado. Mais que isso: precisamos agradar ao nosso objeto de amor, dependemos de seu desejo. Claro que não é uma equação direta, há todo um Almodóvar para nos explicar.
Quando amamos, ao mesmo tempo, gostaríamos de deixar de amar. Afinal, é a fonte central de sofrimento e dependência. Queremos destruir a paixão. Por isso ela é tão violenta. Isso passa muitas vezes ao largo do que pressupomos. Preferimos acreditar que somos corajosos e entregues ao amor verdadeiro. Mentira. Procuramos quem nos confirma a identidade. Desdenhamos quem nos descobre a identidade. Identidade é apenas uma idealização.
Já Francisco tem várias: Francisco de Castro Mucci, 34 anos, libriano com um escorpião tatuado, é mengo fanático, ensaísta talentoso, doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, letrista, colunista do jornal O Globo e filho de João Bosco. Não nessa ordem, afinal, colou o sobrenome do pai e saiu-se à edição de seu primeiro livro. Batizou-se, nas artes, Francisco Bosco.
Ele se armou de conceitos e chegou para se matar em autoduelo de faroeste: “Na minha vida há um fosso entre o que fui e o que me tornei”. Atacou de botânico, de Woody Allen, de Shane, de Charles Bronson, de Borges, Nietzsche. Acerta um cruzado de Lacan e um jab de Sigmund Freud. A gente se rende antes do terceiro assalto. Nem queremos chorar o leite derramado de Chico Buarque. É paixão à primeira leitura.
Escorrega, no entanto, no epílogo, afinal, não é santo: chama o acaso de imperfeição do real. Ora, o acaso justamente sequer é acessível ao homem. Só a natureza tem acesso à perfeição. Só a natureza é capaz de gerar o acaso. Nós mal conseguimos sortear a loteria e, ainda assim, porque inventamos uma indulgenciazinha. O acaso é tudo. Sorte grande a de quem abre os braços e se enlaça com o imprevisto. Pobre de quem não entendeu que desejamos, sim, controlar. Apenas não conseguimos.
E LIVRE SEJA ESTE INFORTÚNIO
FRANCISCO BOSCO
AZOUGUE EDITORIAL
R$38,00
Jornal Zero Hora, caderno Cultura, p. 2, Sobre o Amor.
31/12/2010 e 01/01/2011 | N° 16566
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