Existe todo o tipo de fantasia erótica. Tarados por tenistas, por enfermeiras, por professoras. Excentricidades dirigem o afeto. Funciona como um tipo de fetiche, um ponto de convulsão, um botão de liga e desliga que empresta a ilusão de controle sobre o sexo. É um Viagra imaginário. A simples alusão ao saiote e já está – pronto para o ataque.
Tem gente que sonha em transar viajando. Eu broxo só em pensar. A medicina produz um nervosismo extra no avião. No ônibus. No trem. Quando testemunho um acidente. Quando assisto uma criança acendendo um rojão na calçada. Porque não existe folga, só omissão de socorro. Seria obrigada a juntar os dedinhos do pirralho, acomodá-los num isoporzinho, embalar em um paninho para que não queimasse a pele no gelo e conduzi-lo gentilmente ao colega de plantão mais próximo.
Não estava de plantão, mas viajando em meu carro com o namorado. Vínhamos na estrada em direção a Porto Alegre. Passou por nós um desses descontrolados psicóticos sobre duas rodas e, infelizmente, assisti o desgraçado voando com a força centrífuga na curva. Depois de trabalhar no Pronto Socorro, ficou claro para mim que moto é uma plataforma para o suicídio. Sem noção nenhuma de física a pessoa que imprime aquela velocidade. Ou, no mínimo, nunca imaginou o que seria energia cinética até que ela espancasse sua cabeça em movimento de chicote. Atendi o bêbado de capacete que pousou fofamente na grama. Esperamos a ambulância, eu lá, impotente, com luvinhas de látex, com estetoscópio no pescoço – minha coleira particular.
O namorado achou bacanérrimo. Sério. Não achou só bonito e corajoso. Achou super. Contou para todos a minha façanha.
Meu próprio roteiro de E. R. - Plantão Médico, ou de Grey´s Anatomy, ou de Scrubs. Tudo subitamente compensava o compromisso interno de viver em sobreaviso. Mais que glamour - seus olhinhos brilhando, admirados. Sua boca umedecendo, a língua estalando a alegria de namorar alguém que surpreende.
Eu que sonhava em ser Kate Marrone, a policial machona dos anos oitenta, ou Mata Hari. Almejava um codinome secreto, a capacidade de defender e proteger. Era o mais perto disso que chegava.
Minha fama se espalhou pela família dele. Vinte tias, trinta primos, os quatro avós, tio-avôs e até a nona.
Ganhei um fã clube. E uma carta solene de pacientes.
Dali em diante, surgiu a obsessão do namorado. Aparecia na clínica, para me ver de jaleco. Queria me comer a todo pano no consultório. Queria que eu medisse a febre à noite. Tinha dores de barriga, dor de cabeça, dor nas pernas, dor nos pés, rangidos no joelho ou nos ombros, coceiras, bolinhas, manchas na pele. Manchas na visão. Chiados no peito, estalos nos ouvidos, pulsação na garganta. Formigamentos e amortecimentos.
Trinta e seis graus, não ouço nada, não tem nada, é mosquito. Toma um buscopan. Toma paracetamol. Ah não tem? Então, toma aspirina. Toma água que passa, é soluço.
Aquilo crescendo em progressão geométrica. Minha agenda não sustentava os encaixes dos parentes inventados.
Almoçávamos. Do outro lado da rua, um grande estardalhaço. Uma mulher gritava: tinha caído. Urrava com toda a força, ah, me ajuda, ah que horror. Estava chovendo. Eu não movi um dedo, exceto a mão do garfo para a boca. Ele, pasmo:
- Não vai fazer nada?
- Não. Quando a pessoa tem tanta força para escândalo é porque tem força para se levantar.
- Mas e você não vai lá nem espiar?
- Não. Estou em horário de almoço.
Pela janela era possível enxergar a mulher já acudida pelos transeuntes, um caso típico de vergonha disfarçada.
Ele ficou arrasado. Sua heroína foi desmascarada.
- Optou pelo almoço a ir salvar uma vida?
Deixei assim. Optei por salvar a pele: minha profissão não é uma fantasia. A fábula precisa de dois para acontecer.