Reuníamos os amigos em casa, umas pipocas, um sofá derramado. Às vezes, a noite seguia elegante: David Lynch, Almodóvar, Ingmar Bergman, Woody Allen. Conforme o grupo, os títulos tinham pretensões menores: Cova Rasa, X-Men, Homem Aranha. O mais baixo que chegamos foi Velozes e Furiosos – democracia às vezes é sacal.
Não vi quando aconteceu, mas sei que, de repente, a tela do computador ficou maior que a da televisão. Conectamos o hometheater à CPU e a atração central virou o Youtube. Youtube?
- Tube, como em tubo da TV.
E pasmamos: o acesso era totalmente gratuito. Com a alimentação em tempo real, insaciável, do banco de dados.
Noites seguidas de outras tardes, dias, navegando e conferindo as ofertas do mundo com duração máxima de dez minutos.
O conhecimento emigrou. A seleção dos vídeos favoritos, saber O QUE buscar recebeu suma importância As indicações viraram moeda forte. Eram clássicos repentinos, criações contemporâneas, reprises da era analógica: você já viu aquele das nozes, as árveres somos nozes. E a alegria vinha antes dos dentes, interrompendo o diálogo.
Você lembra da Heleninha Roitman, não, como era, pois era o máximo, e risos como reticências.
A riqueza de trocas durante as conversas estava multiplicada: ganhamos a multimídia. Reincorporamos um novo idioma. Quando queríamos falar sobre uma peça de teatro, um cantor, um clipe, uma música, uma piada, uma fofoca, o nascimento da irmã caçula, uma gafe célebre - tudo estaria a um clique.
Se a imaginação parece prejudicada pelo invento, nunca a mentira esteve mais acanhada. Nosso grupo se acostumou a falar e mostrar. Adotamos a imagem como a palavra mais fiel, a prova mais contundente.
Além disso, tinha a questão da identificação.
Uma vez diante do inegável, do irreprimível, do sólido audiovisual, a reação, concordar ou discordar entre si significava pertencer. A coragem de rir com preconceito é uma intimidade que não se dá para qualquer um. É um voto supremo de confiança.
Foi assim que resolvi ampliar um namoro.
Saíamos há um par de meses, boa cumplicidade na cama, boas trocas na mesa, boa conversa no banho. A hora de avançar a base tinha chegado.
Tudo começou quando assistimos o tal Quem quer ser um milionário.
Ri muito na hora dos créditos; teci um paralelo com Rivaldo sai desse lago.
Ele não entendeu .
Eu achei estranho tanto desconhecimento para a idade, tinha trinta e poucos! Afinal, é praticamente o mesmo que piadas mencionando Jean Paul Belmondo para alguém com mais de cinqüenta.
Deixei para lá a impressão e fomos para meu apartamento. Disse-lhe que ia apresentar o tal vídeo de Bollywood com legenda fonética. Estava plena de esperança que ele fosse rir muito; imaginei seus olhos molhados de lágrimas, gargalhando, as têmporas comprimidas. Esperei que me agradecesse emocionado pelo momento inaugural.
- Mãe aguardente no meio desse lago...
E nada.
- I Love you, linda, yeah!
E nada.
Naquela hora eu já poderia ter percebido que algo estava muito errado. Mas contemporizei - talvez clipes musicais não fossem de seu apetite, já tive amigos assim. Desisti de Ken Lee.
Apelei para o clássico dos clássicos. Cogitei que seria pouco provável, mas decidi perguntar:
- Tapa na Pantera tu conhece, né?.
Não, respondeu piscando inocente.
Suspirei fingindo calma. Planejei buscar uma bolsa morna para aliviar a cãimbra de riso que ele certamente teria.
- Fuma aqui, toma um chá, fuma aqui, toma um chá.
E nada?
Olhou-me cético, é uma atriz?
Confirmei, é claro que sim, não adiantou. Seria ele incapaz de se divertir? Sofreria de Distimia? Um filiado ao partido dos Desgraçados?
Ao mesmo tempo, eu suspeitava de minha sensibilidade. Quem sabe ele preferiria um humor mais refinado. Tentei a Irmã Selma.
- Cuidar de criança relaaaaaaaaaxa a gente.
E nada!!
Ok, você venceu, batatas fritas. Vamos lá. Última chance: Fala Sônia?
Pois o cara não conhecia nem o Fala Sônia. Tive certeza de que era um alienado digital. Mas era jovem, futuro promissor, pensei na cama, na mesa e no banho.
Respirei fundo: ele encontraria a cura naquela noite. Comigo. Eu me convenci. Seria como um debut, uma iniciação. Eu seria catequista e ele, o coroinha profundamente grato. Eu tinha certeza.
Armei a cerimônia.
Como maestro, dei o play.
O cara ficou chocado. Bradou a incredulidade. Questionou a minha índole. Resmungou que isso não se faz, é maldade com um ser humano, gravar uma coisa assim, realmente terrível, onde já se viu!, a pobre criatura, mas pior ainda era eu estar rindo junto com milhões de inescrupulosos.
Uma horda!
Tudo bem, eu falei. Tem razão, é claro que isso não se faz, fico até envergonhada, me desculpe.
Não há problema, ele disse.
Afirmei que tinha muito problema sim, que aquilo era um vexame, que eu precisava descansar, que ele me desculpasse e fosse embora.
A ignorância digital não era nada perto daquilo. A reação dele nem mesmo representava conflito de gerações. Menos ainda que o cara não tivesse humor.
Mas eu não estava arrependida. Não, não tinha perdido a esperança.
Eu fiquei com medo dele.
São as pequenas maldades que nos salvam das grandes.
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