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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Mandamentos Modernos

David de Ramon's art at http://www.davidderamon.com

Mexer nas coisas dos outros é feio. Assim como sei que mexer nas coisas dos outros para encontrar algo mais feio não é mais feio. Mas contar que se mexeu nas coisas dos outros sem ter encontrado nada, volta a ser feio.

Ou entramos no acordo do que é feio exatamente, sem exceções, sem personalismo, sem a conversa fiada de cada caso é um caso, ou voltamos ao início, que é simplesmente mexer nas coisas dos outros é feio. E que se torne regra geral e inviolável.

É um colapso quando a namorada vasculha o celular do namorado, por exemplo. Encontrará mensagens comprometedoras, com certeza. Até porque, caso não haja nenhuma, ela inventará que o “te ligo depois” assinado “Marcão” é um código para irem aprontar alguma. Afinal, como já disse, a espionagem depende de um crime para ser justificada.

Se a esposa recebe o envelope com a conta discriminada do cartão de crédito do marido e resolve abrir o lacre, ela rompe o sigilo bancário matrimonial. Lá constarão siglas seguidas de valores dos quais que ela vai exigir explicações. E o que ele disser, já não importa: ela não vai acreditar.

Toda ruptura de confiança e desrespeito à privacidade entre adultos é desgraçada, mas não é o pior delito. O abominável, o terrível, o imperdoável é a invasão no mundo das crianças e dos adolescentes.

Seja porque consideram sua propriedade, seja porque julgam saber o que é melhor para eles, pais deturpam a relação e abusam do poder: mexem nas coisas de seus filhos.

Abrem bolsas de jovens, gavetas dos banheiros, fuxicam em necessaires feito patrulha antidrogas; vasculham caderninhos, blocos de anotações, perscrutam queridos diários.

Antigamente, algumas mães mais obcecadas arranjavam de ouvir conversas na extensão do telefone. A evolução disso para o mundo digital são as neuróticas de vanguarda: hackers dos programas de comunicação instantânea via internet. Mal sabem redigir email, mas esperam sorrateiras a chance de invadir o MSN e o Skype de seus filhos e averiguar como andam os diálogos.

Abrir a correspondência, mesmo que a dos vizinhos, é crime federal. Como classificar os adultos xeretas que agem em nome de um “bem maior”, de proteção, de detectar um pedófilo, um traficante, um contrabandista, um pirata ou um falsário qualquer?

Afinal, tem consequência querer chefiar e liderar a vida de alguém de forma tirânica. É lamentável que isso seja tratado com tanta banalidade.

A censura aberta pode ser mais polêmica, mas sem dúvida, bem mais justa. É feio mexer nas coisas dos outros. Mais feio é considerar que as coisas dos outros são suas: aí, já é roubo.

Mandamentos Modernos

David de Ramon's art at http://www.davidderamon.com

Mexer nas coisas dos outros é feio. Assim como sei que mexer nas coisas dos outros para encontrar algo mais feio não é mais feio. Mas contar que se mexeu nas coisas dos outros sem ter encontrado nada, volta a ser feio.

Ou entramos no acordo do que é feio exatamente, sem exceções, sem personalismo, sem a conversa fiada de cada caso é um caso, ou voltamos ao início, que é simplesmente mexer nas coisas dos outros é feio. E que se torne regra geral e inviolável.

É um colapso quando a namorada vasculha o celular do namorado, por exemplo. Encontrará mensagens comprometedoras, com certeza. Até porque, caso não haja nenhuma, ela inventará que o “te ligo depois” assinado “Marcão” é um código para irem aprontar alguma. Afinal, como já disse, a espionagem depende de um crime para ser justificada.

Se a esposa recebe o envelope com a conta discriminada do cartão de crédito do marido e resolve abrir o lacre, ela rompe o sigilo bancário matrimonial. Lá constarão siglas seguidas de valores dos quais que ela vai exigir explicações. E o que ele disser, já não importa: ela não vai acreditar.

Toda ruptura de confiança e desrespeito à privacidade entre adultos é desgraçada, mas não é o pior delito. O abominável, o terrível, o imperdoável é a invasão no mundo das crianças e dos adolescentes.

Seja porque consideram sua propriedade, seja porque julgam saber o que é melhor para eles, pais deturpam a relação e abusam do poder: mexem nas coisas de seus filhos.

Abrem bolsas de jovens, gavetas dos banheiros, fuxicam em necessaires feito patrulha antidrogas; vasculham caderninhos, blocos de anotações, perscrutam queridos diários.

Antigamente, algumas mães mais obcecadas arranjavam de ouvir conversas na extensão do telefone. A evolução disso para o mundo digital são as neuróticas de vanguarda: hackers dos programas de comunicação instantânea via internet. Mal sabem redigir email, mas esperam sorrateiras a chance de invadir o MSN e o Skype de seus filhos e averiguar como andam os diálogos.

Abrir a correspondência, mesmo que a dos vizinhos, é crime federal. Como classificar os adultos xeretas que agem em nome de um “bem maior”, de proteção, de detectar um pedófilo, um traficante, um contrabandista, um pirata ou um falsário qualquer?

Afinal, tem consequência querer chefiar e liderar a vida de alguém de forma tirânica. É lamentável que isso seja tratado com tanta banalidade.

A censura aberta pode ser mais polêmica, mas sem dúvida, bem mais justa. É feio mexer nas coisas dos outros. Mais feio é considerar que as coisas dos outros são suas: aí, já é roubo.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Suicídio: somos campeões brasileiros.


Irina Vinnik's "Evolution" at Behance.net


O Rio Grande do Sul lidera o ranking de suicídios no Brasil. Saiba mais na entrevista concedida à TVAL, exibida em 11.09.2010.
Acesse aqui>> Midiática

Suicídio: somos campeões brasileiros.


Irina Vinnik's "Evolution" at Behance.net


O Rio Grande do Sul lidera o ranking de suicídios no Brasil. Saiba mais na entrevista concedida à TVAL, exibida em 11.09.2010.
Acesse aqui>> Midiática

[Espaço Público] RS Campeão em Suicídios

Entrevista de @cinthyaverri para o programa Espaço Público, TVAL.
Exibida 11.09.2010

Parte I


Parte II

domingo, 12 de setembro de 2010

Funcionária do Mês


Marc Johns' Suit with Antlers
at http://www.marcjohns.com/


Quando tinha sete anos, me imaginava bancária aos 30.

Fazia da escada de metal um guichê. Gastava horas computando valores inventados. Registrava números numa fantástica calculadora com bobina de papel. A matemática era um teclado com sons eletrônicos. Brincava de DJ dos números. Prestativa, atendia os ursinhos carinhosos, o pequeno Poney e a Barbie. Solucionava o problema da hipoteca da Moranguinho. Fui condecorada “funcionária do mês” e minha foto parava na entrada do quarto.

A segunda opção seria virar estilista. Andava com almofada no bolso cheio de alfinetes e agulhas, controlava as barras das pessoas. Fingia ouvir os tecidos dos retalhos que minha mãe colecionava e desenhava croquis divinos em minutos. Tinha até assistente: uma boneca Xuxa quase da minha altura. Ela era péssima e por isso brigávamos tanto.

Aos 30, já teria filhos. Estaria casada com um Antônio. Qualquer Antônio. O importante é que fosse Toni, apelido que eu julgava sensacional.

Aos 30, varreria a sujeira com capricho, prepararia as crianças para a escola.

Aos 30, eu me tornaria uma mulher praticamente velha. Meus pais cumpririam papel de avós dedicados, numa casa azul de dois andares, em que passaríamos o domingo comendo churrasco entre irmãos, primos e seus netos.

Cheguei aos 30 anos. Tenho cara de não mais que vinte e poucos. Não casei, não tenho filhos. O único nenê que temos em casa está com três anos e é minha irmã. Meu pai não é avô, mas pai de novo.

Sou médica, empresária e comunicadora. E muitas outras coisas que não têm título.

Diante da vertigem e do abismo entre o que esperava aos sete e o que de fato aconteceu, percebo que a frustração é superestimada. Complicado é definir como as coisas deveriam ser e, ao mesmo tempo, nos acharmos capazes dessas suposições.

O fato é que sabemos muito pouco do que nos faz feliz de verdade. Descobrimos apenas depois que acontece. Somos lentos.

Por mais absurdo o raciocínio, fazemos isso o tempo inteiro: prevemos como deveria ser o casamento, como os filhos deveriam se comportar, como nosso corpo deveria estar. Embora essa seja justamente a gênese da frustração, parece que vocação é linha reta. Não mudar de ideia. Confundimos sonho com obsessão. Felicidade consistiria em seguir sempre com algo que desejávamos lá atrás e não alterar o caminho sob hipótese nenhuma para mostrar coerência. Coerência é aceitar a transformação, não se fixar em credos.

Não há motivo para lamentar. Não posso apagar a infância. Fui realmente bancária e estilista aos sete anos. Para quê outra vida se posso toda hora mudar a minha?


Crônica Falada na Rádio Ipanema FM
31.08.2010
Programa Talk Radio
com @katiasuman

Funcionária do Mês


Marc Johns' Suit with Antlers
at http://www.marcjohns.com/


Quando tinha sete anos, me imaginava bancária aos 30.

Fazia da escada de metal um guichê. Gastava horas computando valores inventados. Registrava números numa fantástica calculadora com bobina de papel. A matemática era um teclado com sons eletrônicos. Brincava de DJ dos números. Prestativa, atendia os ursinhos carinhosos, o pequeno Poney e a Barbie. Solucionava o problema da hipoteca da Moranguinho. Fui condecorada “funcionária do mês” e minha foto parava na entrada do quarto.

A segunda opção seria virar estilista. Andava com almofada no bolso cheio de alfinetes e agulhas, controlava as barras das pessoas. Fingia ouvir os tecidos dos retalhos que minha mãe colecionava e desenhava croquis divinos em minutos. Tinha até assistente: uma boneca Xuxa quase da minha altura. Ela era péssima e por isso brigávamos tanto.

Aos 30, já teria filhos. Estaria casada com um Antônio. Qualquer Antônio. O importante é que fosse Toni, apelido que eu julgava sensacional.

Aos 30, varreria a sujeira com capricho, prepararia as crianças para a escola.

Aos 30, eu me tornaria uma mulher praticamente velha. Meus pais cumpririam papel de avós dedicados, numa casa azul de dois andares, em que passaríamos o domingo comendo churrasco entre irmãos, primos e seus netos.

Cheguei aos 30 anos. Tenho cara de não mais que vinte e poucos. Não casei, não tenho filhos. O único nenê que temos em casa está com três anos e é minha irmã. Meu pai não é avô, mas pai de novo.

Sou médica, empresária e comunicadora. E muitas outras coisas que não têm título.

Diante da vertigem e do abismo entre o que esperava aos sete e o que de fato aconteceu, percebo que a frustração é superestimada. Complicado é definir como as coisas deveriam ser e, ao mesmo tempo, nos acharmos capazes dessas suposições.

O fato é que sabemos muito pouco do que nos faz feliz de verdade. Descobrimos apenas depois que acontece. Somos lentos.

Por mais absurdo o raciocínio, fazemos isso o tempo inteiro: prevemos como deveria ser o casamento, como os filhos deveriam se comportar, como nosso corpo deveria estar. Embora essa seja justamente a gênese da frustração, parece que vocação é linha reta. Não mudar de ideia. Confundimos sonho com obsessão. Felicidade consistiria em seguir sempre com algo que desejávamos lá atrás e não alterar o caminho sob hipótese nenhuma para mostrar coerência. Coerência é aceitar a transformação, não se fixar em credos.

Não há motivo para lamentar. Não posso apagar a infância. Fui realmente bancária e estilista aos sete anos. Para quê outra vida se posso toda hora mudar a minha?


Crônica Falada na Rádio Ipanema FM
31.08.2010
Programa Talk Radio
com @katiasuman

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Troféu Chupim [Crônica Falada - 25.08.2010]


Esao Andrews' "Thirty"
24"x 24" oil on wood, 2008.


Meu tio Carlinhos viveu sobre eixos, rodas e motores. Por baixo de sua boléia, todo o país passou. E mais de uma vez. Dono de transportadoras, de frotas de caminhões, comandante de grupos de empregados, era incansável. Nunca parou de empreender. Investiu no sul, no centro-oeste e no norte. Desde a adolescência, chefiava postos de gasolina. Perguntei um dia que combustível era aquele:

- Se você não é bonito aos vinte; se não é forte aos trinta; se não é inteligente aos quarenta; se não é rico aos cinquenta: não vai ser nessa vida.

Adotei imediatamente o lema de pára-choque. Serviu como luva de látex – fiquei preparada para o serviço sujo. Jamais me encolhi para o trabalho.

Alguns podem torcer o nariz para meu tio frasista e me chamar nostálgica do trabalho que enobrece o homem. Mas o contrário é muito pior: a complacência absoluta. Hoje, ninguém quer criticar o ócio, a abstenção é total na hora de pressionar os filhos. Surrupiaram a figura do fracassado da cartilha. Ele era fundamental, mais importante que o velho do saco. Ter medo de ser tachado vagabundo, improdutivo, sanguessuga; não querer ser a vergonha da família pode fazer toda a diferença.

Adulto era aquele que saía de casa, havia a ansiedade pelo mérito da independência. Todos queriam conquistar o endereço próprio o quanto antes. As restrições do lar impediam a felicidade: não era permitido namorar, fumar, festas com amigos. Os desejos era propulsores ferozes. Diante da linha dura parental, um apezinho no centro de aluguel rachado com amigos era um milagre. A graça do oásis era o deserto.

Custear a própria universidade era o mínimo necessário caso não lograsse uma vaga na federal. Alguém que nega um gorda mesada ao filho enquanto cumpre a graduação é considerado um sovina que não promove a melhor condição para o iniciante.

A dificuldade dos pais é tão grande que são obrigados a custear um intercâmbio para que o filho aprenda a lavar a louça e a recolher sua roupa do chão – desde que seja em outro continente, fica bem a privação de mimos. Quem não foi mochileiro, não reconhece o prazer de um guarda-roupa.

Não é que a crise existencial esteja vetada, que alguém deva cumprir profecias desde a infância ou atender a algum chamado vocacional, receber a dádiva do destino. Nada disso. Trocar de carrreira é bem-vindo, guinadas no caminho são decisivas na ascensão. Mas isso não deve ser confundido com anedonia, com preguiça, com abulia ou com desesperança.

Os jovens estão indecisos como sempre, isso não é novidade; inaugural é o processo de resolver a vida profissional às custas dos pais, desfrutando dos bens familiares e considerando a atitude uma esperteza. Há uma certa arrogância em relação aos que se sustentam com salários mais econômicos e lutam determinados atrás de ideiais.

É demodê quem sonha com o sucesso? Quem deseja alcançar patamares mais altos, reconhecimento social, orgulhar os pais? Em alta quem faz de menos, em baixa quem faz demais?

Meu tio Carlinhos, caso quisesse facilidades, teria escrito auto-ajuda.


>>Assista Esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 25/08/10

Troféu Chupim [Crônica Falada]


Esao Andrews' "Thirty"
24"x 24" oil on wood, 2008.

Meu tio Carlinhos viveu sobre eixos, rodas e motores. Por baixo de sua boléia, todo o país passou. E mais de uma vez. Dono de transportadoras, de frotas de caminhões, comandante de grupos de empregados, era incansável. Nunca parou de empreender. Investiu no sul, no centro-oeste e no norte. Desde a adolescência, chefiava postos de gasolina. Perguntei um dia que combustível era aquele:

- Se você não é bonito aos vinte; se não é forte aos trinta; se não é inteligente aos quarenta; se não é rico aos cinquenta: não vai ser nessa vida.

Adotei imediatamente o lema de pára-choque. Serviu como luva de látex – fiquei preparada para o serviço sujo. Jamais me encolhi para o trabalho.

Alguns podem torcer o nariz para meu tio frasista e me chamar nostálgica do trabalho que enobrece o homem. Mas o contrário é muito pior: a complacência absoluta. Hoje, ninguém quer criticar o ócio, a abstenção é total na hora de pressionar os filhos. Surrupiaram a figura do fracassado da cartilha. Ele era fundamental, mais importante que o velho do saco. Ter medo de ser tachado vagabundo, improdutivo, sanguessuga; não querer ser a vergonha da família pode fazer toda a diferença.

Adulto era aquele que saía de casa, havia a ansiedade pelo mérito da independência. Todos queriam conquistar o endereço próprio o quanto antes. As restrições do lar impediam a felicidade: não era permitido namorar, fumar, festas com amigos. Os desejos era propulsores ferozes. Diante da linha dura parental, um apezinho no centro de aluguel rachado com amigos era um milagre. A graça do oásis era o deserto.

Custear a própria universidade era o mínimo necessário caso não lograsse uma vaga na federal. Alguém que nega um gorda mesada ao filho enquanto cumpre a graduação é considerado um sovina que não promove a melhor condição para o iniciante.

A dificuldade dos pais é tão grande que são obrigados a custear um intercâmbio para que o filho aprenda a lavar a louça e a recolher sua roupa do chão – desde que seja em outro continente, fica bem a privação de mimos. Quem não foi mochileiro, não reconhece o prazer de um guarda-roupa.

Não é que a crise existencial esteja vetada, que alguém deva cumprir profecias desde a infância ou atender a algum chamado vocacional, receber a dádiva do destino. Nada disso. Trocar de carrreira é bem-vindo, guinadas no caminho são decisivas na ascensão. Mas isso não deve ser confundido com anedonia, com preguiça, com abulia ou com desesperança.

Os jovens estão indecisos como sempre, isso não é novidade; inaugural é o processo de resolver a vida profissional às custas dos pais, desfrutando dos bens familiares e considerando a atitude uma esperteza. Há uma certa arrogância em relação aos que se sustentam com salários mais econômicos e lutam determinados atrás de ideiais.

É demodê quem sonha com o sucesso? Quem deseja alcançar patamares mais altos, reconhecimento social, orgulhar os pais? Em alta quem faz de menos, em baixa quem faz demais?

Meu tio Carlinhos, caso quisesse facilidades, teria escrito auto-ajuda.


>>Assista Esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 25/08/10

Troféu Chupim [Crônica Falada]


Esao Andrews' "Thirty"
24"x 24" oil on wood, 2008.

Meu tio Carlinhos viveu sobre eixos, rodas e motores. Por baixo de sua boléia, todo o país passou. E mais de uma vez. Dono de transportadoras, de frotas de caminhões, comandante de grupos de empregados, era incansável. Nunca parou de empreender. Investiu no sul, no centro-oeste e no norte. Desde a adolescência, chefiava postos de gasolina. Perguntei um dia que combustível era aquele:

- Se você não é bonito aos vinte; se não é forte aos trinta; se não é inteligente aos quarenta; se não é rico aos cinquenta: não vai ser nessa vida.

Adotei imediatamente o lema de pára-choque. Serviu como luva de látex – fiquei preparada para o serviço sujo. Jamais me encolhi para o trabalho.

Alguns podem torcer o nariz para meu tio frasista e me chamar nostálgica do trabalho que enobrece o homem. Mas o contrário é muito pior: a complacência absoluta. Hoje, ninguém quer criticar o ócio, a abstenção é total na hora de pressionar os filhos. Surrupiaram a figura do fracassado da cartilha. Ele era fundamental, mais importante que o velho do saco. Ter medo de ser tachado vagabundo, improdutivo, sanguessuga; não querer ser a vergonha da família pode fazer toda a diferença.

Adulto era aquele que saía de casa, havia a ansiedade pelo mérito da independência. Todos queriam conquistar o endereço próprio o quanto antes. As restrições do lar impediam a felicidade: não era permitido namorar, fumar, festas com amigos. Os desejos era propulsores ferozes. Diante da linha dura parental, um apezinho no centro de aluguel rachado com amigos era um milagre. A graça do oásis era o deserto.

Custear a própria universidade era o mínimo necessário caso não lograsse uma vaga na federal. Alguém que nega um gorda mesada ao filho enquanto cumpre a graduação é considerado um sovina que não promove a melhor condição para o iniciante.

A dificuldade dos pais é tão grande que são obrigados a custear um intercâmbio para que o filho aprenda a lavar a louça e a recolher sua roupa do chão – desde que seja em outro continente, fica bem a privação de mimos. Quem não foi mochileiro, não reconhece o prazer de um guarda-roupa.

Não é que a crise existencial esteja vetada, que alguém deva cumprir profecias desde a infância ou atender a algum chamado vocacional, receber a dádiva do destino. Nada disso. Trocar de carrreira é bem-vindo, guinadas no caminho são decisivas na ascensão. Mas isso não deve ser confundido com anedonia, com preguiça, com abulia ou com desesperança.

Os jovens estão indecisos como sempre, isso não é novidade; inaugural é o processo de resolver a vida profissional às custas dos pais, desfrutando dos bens familiares e considerando a atitude uma esperteza. Há uma certa arrogância em relação aos que se sustentam com salários mais econômicos e lutam determinados atrás de ideiais.

É demodê quem sonha com o sucesso? Quem deseja alcançar patamares mais altos, reconhecimento social, orgulhar os pais? Em alta quem faz de menos, em baixa quem faz demais?

Meu tio Carlinhos, caso quisesse facilidades, teria escrito auto-ajuda.


>>Assista Esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 25/08/10

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Superfantástico (só o Balão Mágico)

EPITÁFIO
Poesia não é truque,
é magia.*

*@Carpinejar


Admirável. Não tem outra palavra pra apreciar a qualidade de ginasta, o preparo físico atlético, a condição hercúlea de Bitols para o trabalho. Poderiam chamar de hiperativo, mas hiperativo é aquele que não consegue completar suas tarefas. Bitols é ultra-ativo. Usa o combustível da ansiedade e cada gota faz mil quilômetros.

O dínamo-humano é capaz de conduzir três palestras no mesmo dia - uma em cada turno, uma em cada município. Adicione a isso: twittar em cada trecho de viagem, escrever uma crônica para o blog e responder espirituosamente quatro entrevistas por email, além da participação ao vivo em alguma rádio. A seguir, na banca, lembra de comprar figurinhas para o ábum do Vicente junto com os jornais do país em que saiu, resolve dilemas amorosos da Mariana via Skype, assina dois contratos, reconhece firma e envia pelo sedex, passa no banco e programa o pagamento de algumas contas. Ainda, calibra os pneus depois de ter mandado lavar o carro. No meio do caminho, compra um cinto pra mim, porque sabia que eu estava precisando.

Isso é a descrição de um dia útil qualquer - o mais intenso que conheço. Não apenas um, mas a sucessão deles encordoados. Que disposição! Bitols nunca está cansado.

Todo super tem sua kriptonita. A única vez que o vi cansar antes de mim, foi na balada. Depois, confidenciou: não tem mais o mesmo pique para a noitada. “Que alívio”, comentei. Achei que jamais achava espaço para exaustão.

Numa dessas, cavocou e criou lugar para um convite especial: foi chamado para turnê no Paraná. Bárbaro: várias cidades em uma semana. Na sexta-feira iríamos nos encontrar em São Paulo para o fim de semana. Dencanso programado? Claro que não: ele dá curso de crônica aos sábados.

O cabra começou por Curitiba. Teria uma mesa redonda coordenada por um compadre nosso.

Maldita a hora em que resolvi fazer piadinha.

Ele, o mediador, me escreveu perguntando algum detalhe. Respondi a questão. Aproveitei pra acrescentar (bem humorada, diga-se de passagem) que usufruísse de Bitols, mas que o devolvesse à remetente. O cara riu (até) e disse que, quanto à capital paranaense, a segurança era garantida. Mas em relação ao oeste, bem, estaria à solta no sertão.

Pulga atrás da orelha é pouco. Ganhei um circo retroauricular.

Durma-se com um barulho desses.

Bitols e eu falamos ao final de cada dia, o que, para nós, significa tarde da noite. Eu, acelerando a agenda para poupar a sexta, acabei extra-ocupada. Ao menos desmaiava na cama, não tinha tempo para imaginar possíveis safadezas bitolinianas.

Não via a hora de chegar o fim de semana e sair com os amigos paulistas e relaxar.

Na terça, ligou de um bar em que estava com colegas; na quarta, de um bar com companheiros; na quinta, de um restaurante antes de irem a um bar.

- Olha, Bitols, você se comporta.
- Imagina, amor, já vou para o hotel.

Chegou o dia e nos encontramos no aeroporto. Bitols estava um pouco pálido. Não tinha nem almoçado, o vivente – julguei que seria fome. Tinha uma gravação marcada onde ficaríamos hospedados, então partimos logo. Comeu rápido em uma padaria, chispou para a cobertura para se encontrar com a equipe de reportagem.

Quando voltou ao quarto, eu já tinha programado tudo: liguei para o pessoal e eles estavam passando pra nos pegar loguinho. Bitols, ainda mais esbranquiçado – agora com certeza - de sono, piscava para disfarçar. Tomou banho.

Descemos ao saguão, já tinha gente esperando. Eu, naquela festa! Bitols, um figurante de Thriller. Entramos no carro. Bitols, mudo, no banco de trás.

- O que houve com ele? – perguntou quem dirigia.
- Uma turnê de palestras – balbulciou o zumbi.

Uhum, palestras. Sei.

sábado, 4 de setembro de 2010

Cinderela só depois de separada.


Cinderela só depois de separada

Pensará que se trata de um livro infantil. De capa dura azul com uma garatuja colorida na capa, o título reforça a confusão: A Cinderela Mudou de Ideia (ed. Planeta). Cuidado no topo à direita, um selo revela: um conto para mulheres modernas.

O conteúdo é adulto. A justificativa das escritoras espanholas Nunila López Salamero, 44 anos, e Myriam Cameros, 32, tem lógica: a infância transmite melhor a emoção. As páginas passam rápido, mas o amadurecimento do leitor é perene. A simplicidade inesperada arrebata, tão direta, com uma honestidade incomum; possível apenas para aqueles que já aprenderam com a própria experiência, para aqueles que estão falando de si próprios.

No enredo, uma paródia da fábula de Cinderela. Com as unhas pintadas de Nunila e Myriam, ela se torna uma heroína vegetariana que se percebe dentro de uma vida que outros escolheram para ela. É um conto de libertação feminina. A Cinderela prefere as pantufas aos sapatinhos de cristal, descobre que o casamento pode ser um péssimo negócio e que amor definitivo é o amor-próprio.

Quem pensa que a batalha das mulheres é caso encerrado talvez perceba que chegou a hora de queimar as calcinhas. Basta acompanhar o sucesso de vendas da obra e sua volta ao mundo pela internet. Todas as gerações ainda precisam desvestir a princesa.

Espera-se da mulher que ela pese determinados quilos, que alcance certa altura; que se vista com elegância, que caminhe sozinha, que cozinhe e que trabalhe, também entenda da casa e seja capaz de gerar e cuidar dos filhos. Espera-se que as meninas sejam bem comportadas, coquetes, polidas, debutem em longos vestidos e sonhem que um príncipe venha resgatá-las de pais conservadores.

Quando um homem é responsável pela salvação, a masmorra vem com a frigidez inclusa.

São raras as que experimentam sua sexualidade com liberdade. Não são estimuladas à masturbação, aos exercícios pélvicos. Depois do parto, a maioria das mães não é orientada a treinar a musculatura vaginal. São tabus que encobrem a verdade de que uma parturiente já completou sua tarefa reprodutiva. Que importância tem o prazer a esta altura do campeonato?

Alguns consideram o feminismo demodê. Entretanto, uma nova corrente toma força.

A primeira onda do feminismo, que se iniciou no final do século 19, buscava essencialmente os direitos civis, de contrato e de voto. Em 1960, se iniciou a segunda onda. Diferente das suffragettes, como eram chamadas as ativistas que lutavam pelo direito ao sufrágio, essas moças uniram-se em busca de igualdade social.

A terceira onda feminista começou em 1990. O movimento é sutil, e vem em boa hora. É mais uma luta cultural, embora tenha corpo político. Ela abraça a causa dos transtornos alimentares, por exemplo. Tanta revolução para a mulher conquistar o seu lugar e agora elas querem ocupar menos espaço com seus físicos cada vez menores, finos, magros, pequenos. A terceira onda quer provocar os paradigmas do que é bom ou mau para as mulheres.

O questionamento é muito mais inteligente porque as formas de subtração são disfarçadas. E, principalmente, geradas pelas próprias mulheres. É corriqueiro mães desistirem de sua identidade e adotarem a do marido ou dos filhos com o propósito de controlar a todos.

Esse impulso é praticamente natural, corre silencioso sob a pele: mal percebe, mas já no primeiro encontro, ela testa o sobrenome do candidato para ver se combina com o seu. Cuida como ele se comporta com os animais, com os garçons, com seus sobrinhos, a ver se antecipa a paternidade. Observa o parceiro no trabalho, contabiliza o futuro promissor. Em troca, não oferece perigo: assume uma postura previsível, espera que ele ligue no dia seguinte. E sexo no primeiro encontro, nem pensar. É o famoso manual.


A Cinderela Mudou de Ideia, de Myriam Cameros e Nunila López.
Editora Planeta, 88 páginas, preço sugerido R$ 24,90.


Pequenos rituais que confirmam a cinderelice atávica. Quer dançar conforme a música? Faça-o ao menos bem informada. Que não seja o bailado coreografado hipnótico, a sina repetida milhares e milhares de vezes, onde acordam infelizes e culpando o marido. Jamais se responsabilizando pelo que vivem.

Não é verdade a proclamada vitimização: coitada domesticada, sem chance de ser o que poderia, presa aos bebês pelos pés.

Com ternura firme, A Cinderela Mudou de Ideia pergunta sobre o desafio que a existência propõe: você deve uma vida para você mesma. Ninguém tem que vir e fazê-la e nem poderia. É uma solidão necessária e que exige vigilância. Quando se distrair, cairá na mesmice do sofrimento, achando normal não gostar do que faz e temendo pela segunda-feira.

Quem detesta segunda-feira pode não saber ainda, mas vai descobrir que também odeia os demais dias.

Tem um preço, evidentemente. Às vezes, a opção é baratear e permanecer presa em ciclos de infelicidade contínua em nome da mentira de se sentir em segurança. A arte de viver bem é um ofício, depende da coragem de assumir a responsabilidade pessoal – que é intransferível. Não é questão de sacrifício, e sim de prazer da escolha, largar o que não agrada, custe o que custar.



Nunila López Salamero e Myriam Cameros já trabalham em um segundo projeto juntas.
“Trataremos um assunto difícil com humor e amor”, fazem mistério

“O que está fora de moda é o machismo”

Após cinco anos visitando editoras e não recebendo nenhuma resposta concreta, Nunila López Salamero e Myriam Cameros decidiram mandar um e-mail aos amigos com a ideia de que investissem pequenas somas em dinheiro em troca de que, uma vez publicado o livro, recebessem uma determinada quantidade de exemplares e seus nomes fossem publicados como colaboradores.

“Para nossa surpresa, de repente começamos a receber dinheiro de pessoas que não conhecíamos. Em menos de um mês, reunimos quase 7 mil euros, isso em tempos de crise na Espanha, para que pudéssemos realizar nosso sonho”, lembra a dupla. A seguir, a entrevista com Myriam Cameros.

Donna – Como chegaram ao formato de livro ilustrado de conteúdo adulto? Configura uma inversão inovadora, assim como existem livros para crianças que interessam aos adultos, não é?

Myriam Cameros – Nunila escreveu o conto anterior por encomenda para uma associação de mulheres que sofriam violência de gênero. Eu tinha ouvido a história, fiquei encantada. Pensava que era universal, que mesmo que a origem do conto fosse a história de uma mulher que sofre violência, era uma história para todos, um conto que ajuda a ser feliz e, sobretudo, a dar um basta no que não faz você feliz. Sentimos que os adultos e as crianças precisam de mitos, histórias, fábulas que os faça acreditar mais em si mesmos e acreditar que podemos fazer algo neste mundo. Qualquer história deve ser acompanhada de um imaginário visual potente em que, como no texto, possamos romper com os papeis definidos e cansativos, com os quais muitos de nós não nos identificamos.

Donna – Sabe-se que vocês fazem apresentações do livro. Como é isso? Vocês têm planos de vir ao Brasil?

Myriam Cameros – Fazemos apresentações em instituições, universidades, grupos que queiram dar palestra de prevenção à violência machista, e em outros tantos locais de cultura livre sobre o fenômeno de edição caseira de um livro com a ajuda de pessoas, antes de sua chegada à internet. As apresentações que mais nos deram prazer aconteceram em presídios, onde também acreditamos que as pessoas gostaram mais, tanto homens quanto mulheres. A última apresentação desta temporada foi no Instituto Cervantes de Oran, na Argélia, que também foi muito emocionante. E quanto ao Brasil, queremos que nos convidem... para pegarmos as malas.

Donna – O que a Cinderela mudou em suas vidas? Esperavam que fosse tão curativo?

Myriam Cameros – Realizar um sonho, como o nosso, de que a Cinderela chegasse nos lares de tantas pessoas diferentes nos deu asas. Os “nãos” já não nos assustam tanto, pois foi pelos “nãos” no começo... que tivemos um grande “sim”. Acho que nós duas paramos de tentar convencer para ser. Em qualquer lugar onde vamos, uma festa, uma praia, as pessoas nos tratam com muito carinho por sermos as criadoras da Cindy.

Donna – Estão trabalhando em algum projeto novo?

Myriam Cameros – Nunila tem um espetáculo, um monólogo em que atua, e se apresenta por toda a Espanha. Eu me realizo muito ilustrando de tudo: Cds, roupas, animações, mas meu ponto fraco e meus próximos projetos são um livro dirigido ao público infantil (o que não quer dizer que não será para adultos) e um comic book só de minha autoria. Em parceria artística, estamos trabalhando nosso segundo projeto. Mais uma vez, trataremos um assunto difícil com humor e muito amor.

Donna – No livro Psicanálise dos Contos de Fadas, Bruno Bettelheim afirma que não se deve mexer nas estruturas dos contos tradicionais. Na sua opinião, está na hora de nos adaptarmos aos desejos e fazer espaço para a confissão nos velhos modelos?

Myriam Cameros – Concordamos, em parte. Muitos contos de fadas têm uma estrutura curativa e preciosa em sua origem, mas as más interpretações geraram papéis muito daninhos que não passam de armas de poder. O beijo final de todos esses contos tradicionais tem mais que ver, em seu início, com a fusão da parte masculina e feminina do que com um príncipe intrépido que salva a princesa incapaz. Branca de Neve e os Sete Anões tem mais a ver com a necessidade de se manter os sete centros energéticos (chakras) limpos do que com a servidão aos homens dentro de casa.

Donna – O feminismo está fora de moda? Vocês acham que existe preconceito, que fingimos ser desnecessária uma luta pela igualdade de gêneros?

Myriam Cameros – O que certamente está fora de moda é o machismo. Acho perigoso falar de feminismo de uma forma pejorativa, pois não deixa de ser uma luta para que o mundo seja melhor, tanto para os homens quanto para as mulheres e os gêneros intermediários. Muitas pessoas confundem feminismo com “femismo” – de fêmea - (as mulheres boas e os homens maus), e isso é um engano. Um mundo onde mulheres são agredidas, menosprezadas, nunca será um mundo bom. Nosso livro teve muita aceitação do público. No entanto, as vozes de setores mais conservadores dizem que é uma obra de mulheres amargas, feministas, quando, na verdade, nosso trabalho foi mostrar que a protagonista não termina enroscada com o príncipe, mas faz muitos amigos e dança com eles até o amanhecer. É necessário viver finais diferentes, e formas diferentes de viver.


05 de setembro de 2010 | N° 16449
Publicado no Caderno Donna
Pág 19 e 20
Jornal Zero Hora

Cinderela só depois de separada.


Cinderela só depois de separada

Pensará que se trata de um livro infantil. De capa dura azul com uma garatuja colorida na capa, o título reforça a confusão: A Cinderela Mudou de Ideia (ed. Planeta). Cuidado no topo à direita, um selo revela: um conto para mulheres modernas.

O conteúdo é adulto. A justificativa das escritoras espanholas Nunila López Salamero, 44 anos, e Myriam Cameros, 32, tem lógica: a infância transmite melhor a emoção. As páginas passam rápido, mas o amadurecimento do leitor é perene. A simplicidade inesperada arrebata, tão direta, com uma honestidade incomum; possível apenas para aqueles que já aprenderam com a própria experiência, para aqueles que estão falando de si próprios.

No enredo, uma paródia da fábula de Cinderela. Com as unhas pintadas de Nunila e Myriam, ela se torna uma heroína vegetariana que se percebe dentro de uma vida que outros escolheram para ela. É um conto de libertação feminina. A Cinderela prefere as pantufas aos sapatinhos de cristal, descobre que o casamento pode ser um péssimo negócio e que amor definitivo é o amor-próprio.

Quem pensa que a batalha das mulheres é caso encerrado talvez perceba que chegou a hora de queimar as calcinhas. Basta acompanhar o sucesso de vendas da obra e sua volta ao mundo pela internet. Todas as gerações ainda precisam desvestir a princesa.

Espera-se da mulher que ela pese determinados quilos, que alcance certa altura; que se vista com elegância, que caminhe sozinha, que cozinhe e que trabalhe, também entenda da casa e seja capaz de gerar e cuidar dos filhos. Espera-se que as meninas sejam bem comportadas, coquetes, polidas, debutem em longos vestidos e sonhem que um príncipe venha resgatá-las de pais conservadores.

Quando um homem é responsável pela salvação, a masmorra vem com a frigidez inclusa.

São raras as que experimentam sua sexualidade com liberdade. Não são estimuladas à masturbação, aos exercícios pélvicos. Depois do parto, a maioria das mães não é orientada a treinar a musculatura vaginal. São tabus que encobrem a verdade de que uma parturiente já completou sua tarefa reprodutiva. Que importância tem o prazer a esta altura do campeonato?

Alguns consideram o feminismo demodê. Entretanto, uma nova corrente toma força.

A primeira onda do feminismo, que se iniciou no final do século 19, buscava essencialmente os direitos civis, de contrato e de voto. Em 1960, se iniciou a segunda onda. Diferente das suffragettes, como eram chamadas as ativistas que lutavam pelo direito ao sufrágio, essas moças uniram-se em busca de igualdade social.

A terceira onda feminista começou em 1990. O movimento é sutil, e vem em boa hora. É mais uma luta cultural, embora tenha corpo político. Ela abraça a causa dos transtornos alimentares, por exemplo. Tanta revolução para a mulher conquistar o seu lugar e agora elas querem ocupar menos espaço com seus físicos cada vez menores, finos, magros, pequenos. A terceira onda quer provocar os paradigmas do que é bom ou mau para as mulheres.

O questionamento é muito mais inteligente porque as formas de subtração são disfarçadas. E, principalmente, geradas pelas próprias mulheres. É corriqueiro mães desistirem de sua identidade e adotarem a do marido ou dos filhos com o propósito de controlar a todos.

Esse impulso é praticamente natural, corre silencioso sob a pele: mal percebe, mas já no primeiro encontro, ela testa o sobrenome do candidato para ver se combina com o seu. Cuida como ele se comporta com os animais, com os garçons, com seus sobrinhos, a ver se antecipa a paternidade. Observa o parceiro no trabalho, contabiliza o futuro promissor. Em troca, não oferece perigo: assume uma postura previsível, espera que ele ligue no dia seguinte. E sexo no primeiro encontro, nem pensar. É o famoso manual.


A Cinderela Mudou de Ideia, de Myriam Cameros e Nunila López.
Editora Planeta, 88 páginas, preço sugerido R$ 24,90.


Pequenos rituais que confirmam a cinderelice atávica. Quer dançar conforme a música? Faça-o ao menos bem informada. Que não seja o bailado coreografado hipnótico, a sina repetida milhares e milhares de vezes, onde acordam infelizes e culpando o marido. Jamais se responsabilizando pelo que vivem.

Não é verdade a proclamada vitimização: coitada domesticada, sem chance de ser o que poderia, presa aos bebês pelos pés.

Com ternura firme, A Cinderela Mudou de Ideia pergunta sobre o desafio que a existência propõe: você deve uma vida para você mesma. Ninguém tem que vir e fazê-la e nem poderia. É uma solidão necessária e que exige vigilância. Quando se distrair, cairá na mesmice do sofrimento, achando normal não gostar do que faz e temendo pela segunda-feira.

Quem detesta segunda-feira pode não saber ainda, mas vai descobrir que também odeia os demais dias.

Tem um preço, evidentemente. Às vezes, a opção é baratear e permanecer presa em ciclos de infelicidade contínua em nome da mentira de se sentir em segurança. A arte de viver bem é um ofício, depende da coragem de assumir a responsabilidade pessoal – que é intransferível. Não é questão de sacrifício, e sim de prazer da escolha, largar o que não agrada, custe o que custar.



Nunila López Salamero e Myriam Cameros já trabalham em um segundo projeto juntas.
“Trataremos um assunto difícil com humor e amor”, fazem mistério

“O que está fora de moda é o machismo”

Após cinco anos visitando editoras e não recebendo nenhuma resposta concreta, Nunila López Salamero e Myriam Cameros decidiram mandar um e-mail aos amigos com a ideia de que investissem pequenas somas em dinheiro em troca de que, uma vez publicado o livro, recebessem uma determinada quantidade de exemplares e seus nomes fossem publicados como colaboradores.

“Para nossa surpresa, de repente começamos a receber dinheiro de pessoas que não conhecíamos. Em menos de um mês, reunimos quase 7 mil euros, isso em tempos de crise na Espanha, para que pudéssemos realizar nosso sonho”, lembra a dupla. A seguir, a entrevista com Myriam Cameros.

Donna – Como chegaram ao formato de livro ilustrado de conteúdo adulto? Configura uma inversão inovadora, assim como existem livros para crianças que interessam aos adultos, não é?

Myriam Cameros – Nunila escreveu o conto anterior por encomenda para uma associação de mulheres que sofriam violência de gênero. Eu tinha ouvido a história, fiquei encantada. Pensava que era universal, que mesmo que a origem do conto fosse a história de uma mulher que sofre violência, era uma história para todos, um conto que ajuda a ser feliz e, sobretudo, a dar um basta no que não faz você feliz. Sentimos que os adultos e as crianças precisam de mitos, histórias, fábulas que os faça acreditar mais em si mesmos e acreditar que podemos fazer algo neste mundo. Qualquer história deve ser acompanhada de um imaginário visual potente em que, como no texto, possamos romper com os papeis definidos e cansativos, com os quais muitos de nós não nos identificamos.

Donna – Sabe-se que vocês fazem apresentações do livro. Como é isso? Vocês têm planos de vir ao Brasil?

Myriam Cameros – Fazemos apresentações em instituições, universidades, grupos que queiram dar palestra de prevenção à violência machista, e em outros tantos locais de cultura livre sobre o fenômeno de edição caseira de um livro com a ajuda de pessoas, antes de sua chegada à internet. As apresentações que mais nos deram prazer aconteceram em presídios, onde também acreditamos que as pessoas gostaram mais, tanto homens quanto mulheres. A última apresentação desta temporada foi no Instituto Cervantes de Oran, na Argélia, que também foi muito emocionante. E quanto ao Brasil, queremos que nos convidem... para pegarmos as malas.

Donna – O que a Cinderela mudou em suas vidas? Esperavam que fosse tão curativo?

Myriam Cameros – Realizar um sonho, como o nosso, de que a Cinderela chegasse nos lares de tantas pessoas diferentes nos deu asas. Os “nãos” já não nos assustam tanto, pois foi pelos “nãos” no começo... que tivemos um grande “sim”. Acho que nós duas paramos de tentar convencer para ser. Em qualquer lugar onde vamos, uma festa, uma praia, as pessoas nos tratam com muito carinho por sermos as criadoras da Cindy.

Donna – Estão trabalhando em algum projeto novo?

Myriam Cameros – Nunila tem um espetáculo, um monólogo em que atua, e se apresenta por toda a Espanha. Eu me realizo muito ilustrando de tudo: Cds, roupas, animações, mas meu ponto fraco e meus próximos projetos são um livro dirigido ao público infantil (o que não quer dizer que não será para adultos) e um comic book só de minha autoria. Em parceria artística, estamos trabalhando nosso segundo projeto. Mais uma vez, trataremos um assunto difícil com humor e muito amor.

Donna – No livro Psicanálise dos Contos de Fadas, Bruno Bettelheim afirma que não se deve mexer nas estruturas dos contos tradicionais. Na sua opinião, está na hora de nos adaptarmos aos desejos e fazer espaço para a confissão nos velhos modelos?

Myriam Cameros – Concordamos, em parte. Muitos contos de fadas têm uma estrutura curativa e preciosa em sua origem, mas as más interpretações geraram papéis muito daninhos que não passam de armas de poder. O beijo final de todos esses contos tradicionais tem mais que ver, em seu início, com a fusão da parte masculina e feminina do que com um príncipe intrépido que salva a princesa incapaz. Branca de Neve e os Sete Anões tem mais a ver com a necessidade de se manter os sete centros energéticos (chakras) limpos do que com a servidão aos homens dentro de casa.

Donna – O feminismo está fora de moda? Vocês acham que existe preconceito, que fingimos ser desnecessária uma luta pela igualdade de gêneros?

Myriam Cameros – O que certamente está fora de moda é o machismo. Acho perigoso falar de feminismo de uma forma pejorativa, pois não deixa de ser uma luta para que o mundo seja melhor, tanto para os homens quanto para as mulheres e os gêneros intermediários. Muitas pessoas confundem feminismo com “femismo” – de fêmea - (as mulheres boas e os homens maus), e isso é um engano. Um mundo onde mulheres são agredidas, menosprezadas, nunca será um mundo bom. Nosso livro teve muita aceitação do público. No entanto, as vozes de setores mais conservadores dizem que é uma obra de mulheres amargas, feministas, quando, na verdade, nosso trabalho foi mostrar que a protagonista não termina enroscada com o príncipe, mas faz muitos amigos e dança com eles até o amanhecer. É necessário viver finais diferentes, e formas diferentes de viver.


05 de setembro de 2010 | N° 16449
Publicado no Caderno Donna
Pág 19 e 20
Jornal Zero Hora

Cinderela só depois de separada.


Cinderela só depois de separada

Pensará que se trata de um livro infantil. De capa dura azul com uma garatuja colorida na capa, o título reforça a confusão: A Cinderela Mudou de Ideia (ed. Planeta). Cuidado no topo à direita, um selo revela: um conto para mulheres modernas.

O conteúdo é adulto. A justificativa das escritoras espanholas Nunila López Salamero, 44 anos, e Myriam Cameros, 32, tem lógica: a infância transmite melhor a emoção. As páginas passam rápido, mas o amadurecimento do leitor é perene. A simplicidade inesperada arrebata, tão direta, com uma honestidade incomum; possível apenas para aqueles que já aprenderam com a própria experiência, para aqueles que estão falando de si próprios.

No enredo, uma paródia da fábula de Cinderela. Com as unhas pintadas de Nunila e Myriam, ela se torna uma heroína vegetariana que se percebe dentro de uma vida que outros escolheram para ela. É um conto de libertação feminina. A Cinderela prefere as pantufas aos sapatinhos de cristal, descobre que o casamento pode ser um péssimo negócio e que amor definitivo é o amor-próprio.

Quem pensa que a batalha das mulheres é caso encerrado talvez perceba que chegou a hora de queimar as calcinhas. Basta acompanhar o sucesso de vendas da obra e sua volta ao mundo pela internet. Todas as gerações ainda precisam desvestir a princesa.

Espera-se da mulher que ela pese determinados quilos, que alcance certa altura; que se vista com elegância, que caminhe sozinha, que cozinhe e que trabalhe, também entenda da casa e seja capaz de gerar e cuidar dos filhos. Espera-se que as meninas sejam bem comportadas, coquetes, polidas, debutem em longos vestidos e sonhem que um príncipe venha resgatá-las de pais conservadores.

Quando um homem é responsável pela salvação, a masmorra vem com a frigidez inclusa.

São raras as que experimentam sua sexualidade com liberdade. Não são estimuladas à masturbação, aos exercícios pélvicos. Depois do parto, a maioria das mães não é orientada a treinar a musculatura vaginal. São tabus que encobrem a verdade de que uma parturiente já completou sua tarefa reprodutiva. Que importância tem o prazer a esta altura do campeonato?

Alguns consideram o feminismo demodê. Entretanto, uma nova corrente toma força.

A primeira onda do feminismo, que se iniciou no final do século 19, buscava essencialmente os direitos civis, de contrato e de voto. Em 1960, se iniciou a segunda onda. Diferente das suffragettes, como eram chamadas as ativistas que lutavam pelo direito ao sufrágio, essas moças uniram-se em busca de igualdade social.

A terceira onda feminista começou em 1990. O movimento é sutil, e vem em boa hora. É mais uma luta cultural, embora tenha corpo político. Ela abraça a causa dos transtornos alimentares, por exemplo. Tanta revolução para a mulher conquistar o seu lugar e agora elas querem ocupar menos espaço com seus físicos cada vez menores, finos, magros, pequenos. A terceira onda quer provocar os paradigmas do que é bom ou mau para as mulheres.

O questionamento é muito mais inteligente porque as formas de subtração são disfarçadas. E, principalmente, geradas pelas próprias mulheres. É corriqueiro mães desistirem de sua identidade e adotarem a do marido ou dos filhos com o propósito de controlar a todos.

Esse impulso é praticamente natural, corre silencioso sob a pele: mal percebe, mas já no primeiro encontro, ela testa o sobrenome do candidato para ver se combina com o seu. Cuida como ele se comporta com os animais, com os garçons, com seus sobrinhos, a ver se antecipa a paternidade. Observa o parceiro no trabalho, contabiliza o futuro promissor. Em troca, não oferece perigo: assume uma postura previsível, espera que ele ligue no dia seguinte. E sexo no primeiro encontro, nem pensar. É o famoso manual.


A Cinderela Mudou de Ideia, de Myriam Cameros e Nunila López.
Editora Planeta, 88 páginas, preço sugerido R$ 24,90.


Pequenos rituais que confirmam a cinderelice atávica. Quer dançar conforme a música? Faça-o ao menos bem informada. Que não seja o bailado coreografado hipnótico, a sina repetida milhares e milhares de vezes, onde acordam infelizes e culpando o marido. Jamais se responsabilizando pelo que vivem.

Não é verdade a proclamada vitimização: coitada domesticada, sem chance de ser o que poderia, presa aos bebês pelos pés.

Com ternura firme, A Cinderela Mudou de Ideia pergunta sobre o desafio que a existência propõe: você deve uma vida para você mesma. Ninguém tem que vir e fazê-la e nem poderia. É uma solidão necessária e que exige vigilância. Quando se distrair, cairá na mesmice do sofrimento, achando normal não gostar do que faz e temendo pela segunda-feira.

Quem detesta segunda-feira pode não saber ainda, mas vai descobrir que também odeia os demais dias.

Tem um preço, evidentemente. Às vezes, a opção é baratear e permanecer presa em ciclos de infelicidade contínua em nome da mentira de se sentir em segurança. A arte de viver bem é um ofício, depende da coragem de assumir a responsabilidade pessoal – que é intransferível. Não é questão de sacrifício, e sim de prazer da escolha, largar o que não agrada, custe o que custar.



Nunila López Salamero e Myriam Cameros já trabalham em um segundo projeto juntas.
“Trataremos um assunto difícil com humor e amor”, fazem mistério

“O que está fora de moda é o machismo”

Após cinco anos visitando editoras e não recebendo nenhuma resposta concreta, Nunila López Salamero e Myriam Cameros decidiram mandar um e-mail aos amigos com a ideia de que investissem pequenas somas em dinheiro em troca de que, uma vez publicado o livro, recebessem uma determinada quantidade de exemplares e seus nomes fossem publicados como colaboradores.

“Para nossa surpresa, de repente começamos a receber dinheiro de pessoas que não conhecíamos. Em menos de um mês, reunimos quase 7 mil euros, isso em tempos de crise na Espanha, para que pudéssemos realizar nosso sonho”, lembra a dupla. A seguir, a entrevista com Myriam Cameros.

Donna – Como chegaram ao formato de livro ilustrado de conteúdo adulto? Configura uma inversão inovadora, assim como existem livros para crianças que interessam aos adultos, não é?

Myriam Cameros – Nunila escreveu o conto anterior por encomenda para uma associação de mulheres que sofriam violência de gênero. Eu tinha ouvido a história, fiquei encantada. Pensava que era universal, que mesmo que a origem do conto fosse a história de uma mulher que sofre violência, era uma história para todos, um conto que ajuda a ser feliz e, sobretudo, a dar um basta no que não faz você feliz. Sentimos que os adultos e as crianças precisam de mitos, histórias, fábulas que os faça acreditar mais em si mesmos e acreditar que podemos fazer algo neste mundo. Qualquer história deve ser acompanhada de um imaginário visual potente em que, como no texto, possamos romper com os papeis definidos e cansativos, com os quais muitos de nós não nos identificamos.

Donna – Sabe-se que vocês fazem apresentações do livro. Como é isso? Vocês têm planos de vir ao Brasil?

Myriam Cameros – Fazemos apresentações em instituições, universidades, grupos que queiram dar palestra de prevenção à violência machista, e em outros tantos locais de cultura livre sobre o fenômeno de edição caseira de um livro com a ajuda de pessoas, antes de sua chegada à internet. As apresentações que mais nos deram prazer aconteceram em presídios, onde também acreditamos que as pessoas gostaram mais, tanto homens quanto mulheres. A última apresentação desta temporada foi no Instituto Cervantes de Oran, na Argélia, que também foi muito emocionante. E quanto ao Brasil, queremos que nos convidem... para pegarmos as malas.

Donna – O que a Cinderela mudou em suas vidas? Esperavam que fosse tão curativo?

Myriam Cameros – Realizar um sonho, como o nosso, de que a Cinderela chegasse nos lares de tantas pessoas diferentes nos deu asas. Os “nãos” já não nos assustam tanto, pois foi pelos “nãos” no começo... que tivemos um grande “sim”. Acho que nós duas paramos de tentar convencer para ser. Em qualquer lugar onde vamos, uma festa, uma praia, as pessoas nos tratam com muito carinho por sermos as criadoras da Cindy.

Donna – Estão trabalhando em algum projeto novo?

Myriam Cameros – Nunila tem um espetáculo, um monólogo em que atua, e se apresenta por toda a Espanha. Eu me realizo muito ilustrando de tudo: Cds, roupas, animações, mas meu ponto fraco e meus próximos projetos são um livro dirigido ao público infantil (o que não quer dizer que não será para adultos) e um comic book só de minha autoria. Em parceria artística, estamos trabalhando nosso segundo projeto. Mais uma vez, trataremos um assunto difícil com humor e muito amor.

Donna – No livro Psicanálise dos Contos de Fadas, Bruno Bettelheim afirma que não se deve mexer nas estruturas dos contos tradicionais. Na sua opinião, está na hora de nos adaptarmos aos desejos e fazer espaço para a confissão nos velhos modelos?

Myriam Cameros – Concordamos, em parte. Muitos contos de fadas têm uma estrutura curativa e preciosa em sua origem, mas as más interpretações geraram papéis muito daninhos que não passam de armas de poder. O beijo final de todos esses contos tradicionais tem mais que ver, em seu início, com a fusão da parte masculina e feminina do que com um príncipe intrépido que salva a princesa incapaz. Branca de Neve e os Sete Anões tem mais a ver com a necessidade de se manter os sete centros energéticos (chakras) limpos do que com a servidão aos homens dentro de casa.

Donna – O feminismo está fora de moda? Vocês acham que existe preconceito, que fingimos ser desnecessária uma luta pela igualdade de gêneros?

Myriam Cameros – O que certamente está fora de moda é o machismo. Acho perigoso falar de feminismo de uma forma pejorativa, pois não deixa de ser uma luta para que o mundo seja melhor, tanto para os homens quanto para as mulheres e os gêneros intermediários. Muitas pessoas confundem feminismo com “femismo” – de fêmea - (as mulheres boas e os homens maus), e isso é um engano. Um mundo onde mulheres são agredidas, menosprezadas, nunca será um mundo bom. Nosso livro teve muita aceitação do público. No entanto, as vozes de setores mais conservadores dizem que é uma obra de mulheres amargas, feministas, quando, na verdade, nosso trabalho foi mostrar que a protagonista não termina enroscada com o príncipe, mas faz muitos amigos e dança com eles até o amanhecer. É necessário viver finais diferentes, e formas diferentes de viver.


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Eduardo Nasi


Confira a [entre-vista] com meu amigo adorado @eduardonasi no Bairro das [entre-vistas]

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