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domingo, 14 de janeiro de 2007

Le Parfum de la Mort


(07.11.06) (obra de JOSÉ ALBERTO FORS FERRO - Desnudo, 2002)


Vim aqui nadar na piscina dos pensamentos impensáveis. Esses que só aparecem no papel de ler depois: recados de mim pra mim.
Quando me telefono e não me atendo é assim: preciso deixar recados.
Saí, fui dar uma volta, volto logo.
Talvez me encontre num vinho espumante... Ótimo, com sua espuma de bolhas. É um ofurô para a alma.
Quem dera pudesse mandar um táxi te buscar, agora que não estás.
Também tu saíste, homem.
Sei porque falo contigo e não respondes. Ficas desaparecido com toda essa culpa. Atraente culpa essa que faz pensar que és um homem muito importante: mais importante que todos os fatos reais implicados e equacionando para qualquer resultado - que pesas mais que a realidade em si.
Entretanto (sabe gente, é tanta coisa pra gente saber...), é difícil que nos vejamos tão fatalmente reais.
Morte-vida-vida-morte.
Uma vez, teve uma mulher caquética que fui atender no plantão. No instante em que toquei seu pulso, eu o senti filigramando. E parou.
- Parou? – pensei.
Tinha parado. Fui tentar ressucitar o corpo de ossos da mulher. Que desagradável. Morreu, enfim. Melhor do que jazer com tubos e escaras numa cama, na minha opinião.
Tinha cheiro de morte no quarto. Cheiro de morte é o cheiro de água parada em pia entupida, sabe? Cheiro de água parada é cheiro de água parada, mesmo quando a água parada é a do corpo. Isso é cheiro de morte e será meu cheiro quando morrer. Eu mesma não vou sentir; melhor assim.
Mas esse é cheiro de morte recente. Depois fica outro cheiro. Vi uma exumação, certa vez. Uma mulher gorda (gorda de cinema): gorda mesmo. Abriram o caixão: as flores secas, tudo horrível. Lavaram o corpo inchado ademais de obeso. Tanto faz se somos gordos ou magros: depois viramos um balão. Lavaram as larvas com uma mangueira. Elas são iguais as que dão na geladeira quando cortam a luz da casa e passa um tempo. Larvinhas de Pasteur. As larvinhas branquinhas. Abriram a mulher e saiu o cheiro da coliquação: o pulmão estava uma gosma verde-enegrecida. Isso e o cheiro.

E o cheiro ficou: mesmo depois do banho demorado que tomei, mesmo depois de ter lavado as narinas até as coanas (aquela parte bem lá de trás das narinas). Quando liguei o secador de cabelos, o jato de vento quente passado em frente ao meu nariz encaminhou a réstia ao endereço do cérebro. Uma vez lido o cheiro, revi a gorda arreganhada na mesa de necrópsia. Ceninha patética. Arrepios.
O balão que viramos é dos gases que se criam. São as bactérias que fazem... Elas vivem mais que nós. O corpo já morto e a natureza não pára. Depois vamos liquefazendo. Depois as larvinhas. As unhas ainda crescem. E os cabelos também.
O primeiro cadáver que dissequei tinha as unhas cor-de-rosa. Rosa pink. Talvez o pink fosse do formol. Mas podíamos ver que as unhas tinham crescido porque o esmalte estava da metade unha para a frente.
Depois dissequei o corpo de um homem: foi ótimo. Sempre tinha querido ver como era um mamilo por baixo da pele. O mamilo é quase nada: é uma tampinha. Quando a pele, descolando do músculo, é levantada não tem nada por baixo: o mamilo fica na pele que se destampa. É uma tampinha. Mas o mamilo é uma coisa gostosa de lamber.
De um orgasmo, resta aquele silêncio tão grande, tão grande... Sempre vejo que morri. Penso se quando eu morrer vai ser assim por mais tempo.
Parece que o que busco é isso: esse silêncio mortal de gozar. Qualquer coisa que proporcione isso é o melhor da vida. Escrever, por exemplo. A folha em branco me enche de tesão e desafio. O que ela quer comigo? Espumante, ofurô, tudo dá tesão. Os mamilos e a morte, também. Só a água parada não dá tesão. Exceto pras larvinhas.
Por isso gosto do mar. O mar não tem preguiça de remexer sua água. Por isso é que ele sobrevive mais que todos os seres vivos - mesmo que os seres tenham vindo dele. O mar é movimento.

A palavra é movimento. No momento em que passa a existir, ela é movimento. Logo se cristaliza, como se fosse uma lembrança do movimento. Quando lemos, já não é mais. Já é o cristal. São como gotas de água que se cristalizam no momento em que nascem em um clima friíssimo.
Pessoas não são como as palavras. Pessoas não são feitas para a cristalização. São puro movimento. Não são matéria.
Vês? Não podemos ter um ao outro porque não se pode pegar para si um movimento: só podemos pegar um cristal.
E os cristais se quebram, você sabe. Podemos fluir, apenas. Não posso esperar e deixar o espumante de hoje. Nem posso esperar por coisa nenhuma. Preciso ir.

Esperança: coisa que nos cristaliza - deixa a água parada, com cheiro de morte.

(...) Necrochorume ou produto da coliquação - é o líquido biodegradável oriundo do processo de decomposição dos corpos ou partes.

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