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sexta-feira, 21 de maio de 2010

Mãe Pródiga


Éramos três crianças proibidas de usar a sala de visitas. Se bem que ninguém usava a sala de visitas. Onde os pais escondiam os presentes de natal.

A faxineira começava a limpeza por lá, para garantir logo. O resto era lucro.

O aposento ficava na parte solene, na entrada, era a porta à esquerda no hall. Sofás contornavam as paredes, esculturas descansavam longe das boladas, o tapete mais nobre aquecia o piso, as cortinas imitavam as santas da igreja.

Em frente, estava a sala de TV. A sala de TV estava para a sala de visita como o inferno está para o paraíso. No inferno a gente pode mexer. O paraíso a gente só imagina.

Uma marca digital nas mesas envidraçadas e a mãe já encaminhava a prova para investigação. Não se ia ao porão porque era sujo, não se ia para a saleta porque era limpa demais. As crianças surgiam como parasitas da decoração.

A sala de visita é a casa como deveria ser e não é. O delírio de grandeza do lar. A aspiração platônica da residência. É o sonho de hotel dentro de casa. Lembro que a empregada somente colocava avental para entrar em seu domínio - virava governanta no ato.

O espaço mantém a ilusão de que casa boa é casa intacta; ou ainda, a casa seria boa se pessoas não a habitassem. As pessoas estragam ao inventar de existir.

O problema da sala de visitas é que queremos o mesmo para o que somos: queríamos antes ser como a sala de visita: sem pensamentos que não comandamos, sem raiva, sem inveja. Queríamos ser como espelhos sem poeira, estantes com livros vazios.

Achamos por princípio que a falta de pose não pode ser mostrada, permanecer à vontade é faltar com educação. Daremos motivos à difamação caso não tenhamos postura ereta, almofadas hindus e tapetes persas.

E mais: já que não somos como a sala de visita, então proibimos sua frequência. A paranóia é o disfarce da vergonha.

Fui visitar minha mãe. Ela me convidou para sentar na sala de visita. Não é que ela não me enxerga mais como filha. Queria esnobar, provar o quanto minha vida seria diferente se fosse organizada.

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Confira esta Crônica Falada na rádio Itapema FM:
(arraste a rolagem para os 28min do programa TalkRadio)
Apresentação Katia Suman (@katiasuman).

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