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sexta-feira, 7 de maio de 2010

Tudo menos fútil. [Crônica Falada - 05.05.2010]

Já falei que minha família é masculina? Óbvio que “masculina” é um disfarce para machismo. O que tinha mais inveja dos meus dois irmãos não era poder mijar em qualquer canto, mas dos intermináveis álbuns de figurinhas. A casa vivia cheia para os guris. O pai comprava pacotinhos, os amigos disputavam os saldos, havia até o divertido jogo do bafo. Eu era obrigada a ficar sozinha colecionando papel de carta. Porque menina colecionava papel de carta. Meu passatempo não tinha objetivo. Nunca completaria a coleção e parecia, agora vejo, uma cilada romântica: aguardar alguém com quem merecesse gastá-la.

Os meninos são convidados a explorar gentes e mundos. O álbum da Copa, por exemplo, é uma tradição entre machos de qualquer idade. As figurinhas emolduram homens que jogam bola, homens como eles. São fotografias adesivas. Qualquer um poderia estar lá. O álbum de figurinhas pretende ser o antecessor do passaporte.

Papéis de carta não inspiram ninguém à briga. Pacificam o ânimo como chá de camomila às três da tarde. É incentivo para a domesticação fofa e cor-de-rosa da Hello Kitty: uma graciosa gatinha muda.

A mulher é conhecida como fútil. A mulher é tudo menos fútil.

Até na frivolidade a mulher quer a importância, almeja a maturidade: escolhe como hobby as roupas, os acessórios decorativos e as miudezas. Tudo isso serve também para enfeitar, para seduzir. Cada ato carrega duplo sentido e serventia.

A mulher desiste fácil da fantasia. Na verdade, descobre que nunca brincou: treinava para quando crescesse. Sai do faz-de-conta e passa direto a dar conta dos filhos, do marido, da casa, do trabalho.

A mulher, nas horas vagas, é mãe ou dona de casa.

O homem usa a infânica por toda a vida. Nas horas vagas, a maioria deixa de lado a sobriedade e parte para a brincadeira. O homem desfruta da adega e da caixa de brinquedos. Não perde nada ao virar adulto.

O homem joga bola quando criança, joga bola quando adolescente, joga bola quando adulto e enquanto as articulações permitirem.

Talvez essa seja nossa maior frustração: descobrir que desde o início já éramos adultas: embalávamos as bonecas, montávamos casinhas, brincávamos de maquiagem.

A cultura do fútil é a atitude que mais nos falta: atividades com o corpo que não sejam para emagrecer, comidas boas que não sejam só para fugir da dieta, trabalhos que não sejam essencialmente pelo dinheiro, viagens que não sejam para exibir aos outros, orações que não sejam para causas impossíveis, roupas que não sejam para impressionar, sapatos que não sejam para rebolar mais.

Dei-me o direito à procrastinação. É óbvio que é um disfarce para liberdade. As aventuras da Pucca foram meu primeiro álbum. Fiz no ano passado, aos 29 anos. Não tive com quem trocar figurinhas. Para completar, ofereço meus papéis de carta.

Confira esta Crônica Falada:


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