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terça-feira, 12 de agosto de 2014

O Homem que Assobia



O homem que assobia perdeu o medo da morte. Não é que seja destemido — sua coragem ganhou o desafio. Ele enche o pulmão com as queixas que não declara e faz música. Não reclama, este sujeito. Já aprendeu que desdizer a realidade aumenta o sofrimento e não tem mais tempo para isso. Desce a rua com esta vela ao contrário, furando o vento.

O homem que assobia diz aos pássaros, conversa com eles pelas calçadas anunciando que ainda está vivo. Um telegrama que passa a ser necessário: informar que ainda ele está em pé, e não apenas sobre as pernas, ele desfila a própria canção.

O homem que assobia não estará velho, ele não se apressa em amontoar os anos, não exibe medalhas por existir. Aprendeu que é fruto do acaso, sua vida também, uma sorte biológica, um número que saiu no bingo. Não se trata de mérito. Viu que apenas cumpre seu destino de homem sem nenhuma importância, não vale mais que uma abelha e por isso gosta delas também.

O homem que assobia não procura saber no passado, quer sabor no momento. Pergunta aos mais novos, cada vez mais novos e, por fim, pergunta aos bebês porque eles é que sabem. Eles respondem com seus olhos imensos e muito abertos que nunca se viu o suficiente. Amadurecer é perder o verde e virar um fruto no ponto, pronto para as lagartas e vermes.

O homem que assobia não tem medo de sentir dores porque é a presença delas que o ajuda a se proteger. Ele escuta e atende a doença sem jamais segui-la, como quem usa um farol. Ele não se anestesia, não desliga o contato. Mergulha em uma banheira quente e faz massagens em seu corpo porque seu corpo lhe pertence, as dores lhe pertencem, a doença lhe pertence.

O homem que assobia não está chamando atenção: é um encantador de sua própria alma e precisa, mais que tudo, mantê-la sempre atraída, sempre atenta. Ele sopra para manter as brasas. Ele é deus, com seu próprio sopro divino.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

LINDOS ERROS QUE DEIXEI DE COMETER

Meus 15 Anos

Eu debutei. Aos quinze anos, como todas as meninas que passam por isso. E, igual a elas, escolhi meu vestido junto com a mãe. Fui debutante: ensaiei no salão; planejei convidados nas mesas; madrinha; e livro preferido? O Pequeno Príncipe, mas citação de Fernando Pessoa — que achei que era da Vandeca, colega de minha mãe na faculdade que recitara os versos mentindo ser sua a autoria. Fraude em debut deve valer uns cem pai-nossos e vinte ave-marias. Mas ficou tudo certo, ninguém ouviu mesmo. 

O par. Ah, o par. Sonhei dias e noites como iria convidar o rapaz aquele, amigo de meu irmão mais velho. Moço guapíssimo, modelo profissional nas horas vagas, artilheiro do futebol nos fins de semana, estudante de engenharia. Coisa máscula, sempre achei, é um engenheiro. Tem um quê de testosterona a mais aquele que faz cálculos matemáticos de cabeça em voz alta e jamais erra o troco. Dá uma sensação de proteção para a conta bancária, uma rede de segurança para o cartão de crédito. Pode ser tudo mentira, mas acho um tesão.

Imaginava que ele ficaria lisonjeado e finalmente olharia para mim. E mais: nas fotografias, eu estaria de braços dados com o corpo que inspirou Michelangelo — seria a própria Pietá, mas eu em seus braços.

Só tive um probleminha. Diferente das colegas de baile, não pude eleger o príncipe. Nem pequeno, muito menos grande. Meus pais definiram que eu dançaria meia valsa com cada irmão, para que não cometesse nenhuma injustiça. O principal motivo? Porque eu não saberia escolher, iria me arrepender no álbum e nas filmagens muitos anos mais tarde.

Verdade seja dita: meu eleito estava mais para sapo no desdobramento dos eventos, mas não é disso que se trata a adolescência? De errar feio? Ou, melhor dizendo, de errar bonito? São os tropeços magistrais que nos trazem as melhores histórias. 

De qualquer forma, vejo as famílias repelindo pretendentes com a maior pretensão: não serve porque não tem futuro, não serve porque não tem genética, não serve porque não tem passado. Não serve, e pronto. 

O serviço do erro é esse mesmo — não funcionaria se fosse acerto. 

Se eu soubesse, na época, teria avisado: escuta, se não quer que eu namore ninguém de fora da família, terminarei em um escandaloso ménage à troi com os manos, tem certeza?

Não entendia esse problema de tendência à máfia em que eu estava metida e que, por algum motivo nefasto, segue na moda aqui no sul. Vai saber? Talvez o pessoal ache ridículo esse papo de crossing over e imagine que boa é a pureza dos genes. 

Quero aproveitar para informar que a ciência veio para ficar e que todo vira-latas melhora a espécie. Antes de repelir o candidato a genro, pense de novo. A outra opção seria Caim e Abel se matando campo a fora. Vou dizer e é duro para os ouvidos: a família é contra o amor. Quem não trai os seus, não faz os próprios.

[ http://cinthyaverri.com.br ]

terça-feira, 29 de julho de 2014

A METADE DA VIDA

Velha demais para casar.


Na infância, pensava que estaria velha aos trinta e cinco anos, em fim de carreira. Praticamente uma aposentada, veria os filhos maiores estudando, adolescentes responsáveis. Rica, casa própria, carro importado, caminhonete para viagens longas. E piscina. Coisa importante seria a piscina. Não de fibra, mas uma de azulejos portugueses com desenhos. Retangular e imensa, olímpica, própria para a natação logo cedo. Faria sol. Sempre em minha fantasia era domingo, dia de sol. Talvez frio, mas a luz namoraria as margens com ternura de manhã. Eu chegaria com meu roupão branco, colocaria uma touca de silicone. Não, melhor: sem touca. Teria cabelos livres. O empregado prepararia a água com muito azul, conforme as instruções nos pacotes dos produtos para tratamento do meu oásis particular. Àquela hora, teria acabado de escovar a superfície com a peneira fina deixando um sutil penteado aquático. A hora do mergulho é o luxo de produzir ondas. E etc, etc.

Enfim, fecho aqui o parêntesis da piscina, devaneio em que até hoje me perco; não era esse o assunto, tomei um caldo. De qualquer forma, chegando aos trinta e cinco, é certo que eu teria gasto toda a juventude; na minha cabeça, configuraria uma senhora para lá de idosa.

Não tirava isso do nada. Minha base de sonhos era a realidade que vivia em nossa casa no interior. Não fazia meus castelos no ar, mas na areia sob o limoeiro do imenso pátio. Fazia sentido diante do meu mundo: ele media o tamanho do céu.

Ao contrário de minhas antigas crenças sobre longevidade, hoje, uma amiga de cinquenta anos me disse: "nem passei da metade da vida!". Imaginei um caso gravíssimo de otimismo renitente, mas logo concluí que se tratava de uma iludida.

Não é que cinquenta anos seja muito, pode ser até pouco se pensarmos nos fantásticos supercentenários que aparecem na televisão, verdadeiros matusaléns modernos. A questão é que só sabe o meio do caminho quem chegou ao seu destino (que é a morte, em nosso caso). Nunca saberemos a envergadura de nossa avenida. Andamos em curva. É óbvio, eu sei. Mas a gente esquece. Pode ser um mês, dois dias, vinte anos. Quem sabe agora, nesse minuto, acabamos de cumprir a primeira metade do todo e nem notamos.

A criança tem toda sua vida de alguns anos. E toda a experiência é a que teve: é com ela que conta. Alguns desprezam o que elas vivem; alguns se surpreendem com a sabedoria. Pensando melhor, sempre é todo o tempo que já se teve, nunca menos. Não há tempo perdido, história que não se conte, desejo com que não se aprenda.

Neste sábado, uma mãe de noventa anos enterrou seu filho de sessenta, vítima de infarto agudo do miocárdio. Sem hora certa, o coração termina parando.

Não tenho piscina em casa, às vezes vou ao clube. Moro em apartamento alugado porque levaria cem meses para quitar um imóvel muito aquém do que eu preciso para gostar de residir. Meu carro é importado, mas por puro acaso. Acho que me enganei, mas tampouco posso dizer que não esteja no fim.

Tenho um roupão atoalhado branco e eu o visto para tomar café da manhã, eu mesma o preparo. Sou eu quem limpa o chão onde piso, quero conhecer meus azulejos. Beijo minhas cachorras e sou feliz para sempre. Até que a morte me separe da vida que pude viver.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Cachorro, gato, galinha.

Retrato de Família


Eu como comida porcaria, de vez em quando. Semana passada, por exemplo, fomos a uma lanchonete dessas que oferece hambúrgueres à moda norte-americana, com gordura trans e tudo. É muito necessário eventualmente: por razões de saúde da boca e da alegria. Lá chegando, nas televisões de balcão, vi um anúncio de “Combo Família”. Nem considerei, afinal, Tamanho Família, para mim, costuma servir três ou quatro pessoas: papai, mamãe e seu(s) filhinho(s).

Quando sentei para comer, no papel que cobre a bandeja, li explicações sobre a tal oferta que consistia em uma caixa colorida, um jogo de tabuleiro, um sanduíche grande, com batata e bebida, e um sanduíche pequeno, com batata e bebida. Oras, foi o meu pedido, exatamente: grande para o marido e pequeno para mim. Perdi um jogo de tabuleiro.

Pensei, primeiro, que o novo “Combo Família” pretendia servir pais separados que passeassem com seu filho no shopping. Um adulto e uma criança. A foto era essa, inclusive. A preocupação de legitimar os pequenos núcleos.

Eu e meu marido também somos uma família. Uma parelha consiste em, no mínimo, quatro pessoas: tem vezes que sou a mãe e ele, o pai; ou duas crianças; ou um grande e um pequeno. Varia.

“Não sou a mãe dele!”, escuto umas moças que estão chateadas dizerem. Mas é claro que você não é a mãe dele de verdade, concluo. Mas qual é o problema de assumir a maternagem aqui e ali? Quantas vezes é o colo e o peito deles onde buscamos nos aninhar? De quem esperamos uma opinião sincera? A confiança precisa morar em nosso endereço.

É para ele que pergunto se está frio na rua, se devo levar mais um casaco. Quero saber se está com fome, com sono, com dor no pescoço. Brincamos juntos na infância recém inventada e, depois, jogamos Playstation ou programamos viagens como adolescentes. Falamos palavras como se fôssemos bebês carinhosos. Ele estende o lençol sobre meu corpo na cama e dou gritinhos de alegria.

Um casal é uma casa inteira. Aliás, fico esperando que, na próxima vez, tenham inventado um kit que inclua ossinhos de couro mastigável e sachê de comida para cães. Aí, sim, finalmente, minha família terá sido imaginada em sua plenitude.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

A Joia do Nilo

Laranja Mecânica

 
Nunca gostei de falar com taxistas. Meus hábitos são: sentar no banco de trás dando instruções específicas para não incentivar a aproximação; e virar uma múmia hipnotizada pela luz do telefone. Mas hoje, foi o Seu Nilo quem me levou. Um senhor carismático, sem ser bajulador. Um tesouro de papo ao volante. Nada de excepcional, falava despretensiosamente sobre como o dia se parecia domingo graças à derrota do Brasil na Copa; que tinha sido a única partida que acompanhou em todo o campeonato.

Então, me interessei — nos reconhecemos: calculava ser a única alienada completa ao tópico mais falado no país, praticamente uma analfabeta funcional da atualidade. Identificação é quando a gente se encontra dentro do outro. Confiei e nos ajustamos em uma conferência sobre corrupção. Achei que tinha perdido o parceiro por causa assunto escolhido que, em geral, termina naquele palanfrório sobre o governo. Só que Seu Nilo se incluiu. Quem fala de si como referência não está jogando conversa fora.

Não estou falando de outros: a corrupção começa aqui, disse, no táxi — apontando o painel. Esse aplicativo de celular chegou para mudar o mercado, mas porteiros de hotel recebem dois reais dos motoristas para serem os eleitos. Caso eu busque algum turista que peça para ir ao ‘Dominó’, por exemplo, questiono a escolha, pergunto: por que não vão ao Gruta Azul, que é uma casa de nome? Ou, melhor, por que não vão a certa casa com nome de mulher que tem na cidade? Sabe, a casa da tia Fulana (não vou citar para não acusar)? Ela paga sessenta reais para cada passageiro que eu desembarcar lá.

Continuou: se eu elaborar uma camiseta de ótima malha, excelente costura e levar a uma rede de lojas e pedir para mostrar o artigo, ninguém quer nem ouvir. Agora, se eu oferecer 5% das vendas em comissão, ah, isso promove meu produto!, faz com que se interessem. Não é a qualidade que vende, nem o preço: é a propina. E mais grave: nas escolas, os professores passam os alunos apenas para garantir a rematrícula. Não é a nota, é a “nota”. E todos reclamam juntos dos políticos. A firma de um colarinho branco vale milhares de reais, mas dez centavos já podem ser corrupção. É o valor da assinatura que muda, não a atitude.

Paguei cinco reais a mais pela corrida incentivando Seu Nilo a continuar em colóquios com quem anda em sua companhia. Pode ser que seu nome tenha encantado minha tumba — acabei convencida de que perdi muito nesses anos todos de preconceito. Ah, se todos escutassem o Seu Nilo.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Velhos Desejos

Eu, fora da casinha.



Tive uma casinha de bonecas azul e branca. Ficava no pátio e era grande o bastante para minha família imaginária. Eu usava uma touquinha e um avental combinantes; e gastava as tardes varrendo no aguardo de meu marido Tony, que se parecia com Nuno Leal Maia. Tony regressaria de seu trabalho com fome, esperaria que a janta estivesse pronta. Teríamos um casal de filhos: Cecília e Antônio Carlos. A primeira, homenagem à minha bisavó; o segundo, Antônio, como o pai, e Carlos, como o pai de meu pai. Iríamos à igreja aos domingos e seríamos muito felizes para sempre.

Eu sou uma decepção. Não casei aos 25 anos. Não ganhei a primeira filha aos 31. Aliás, não programo nenhum filho e beiro os trinta e quatro. Tomo anticoncepcionais todos os dias, religiosamente. Minha única oração insidiosa. Anseio chegar em casa para encontrar meu marido que é ator, embora em nada se pareça com o Nuno Leal Maia (Ufa!). Se tivesse filhos, não carregariam o fantasma de meus antepassados em suas carteiras de identidade. Menos ainda, o peso do nome de seu pai. Já bastam os sobrenomes. Eu, se pudesse, pediria desculpas. Diria a mim mesma o que eu odiava escutar naquela época:

 — Filhinha, sinto muito. Você ainda sabe muito pouco sobre a vida e sobre você mesma.

Exemplificaria, para tornar mais claro: eu sei que você odeia andar no banco de trás do carro!, mas, na verdade, com o trânsito atual, ama passear sem compromisso e deseja, de todo o coração, poder pagar um motorista e viajar longe do volante. Você quer zelar pelo seu lar!, mas, na verdade, prefere cuidar das pessoas que atende em seu consultório e continua em colisão com as faxineiras. Tá bem, você ainda se interessa pela vassoura. Mas sonha muito mais com avanços na psiquiatria, principalmente com o ensino de psicoterapia básica nas escolas e com a valorização da primeira infância.

Conheço pessoas que procuram ajuda profissional especializada para decidir o que fazer ao longo da década que se inicia hoje; há quem planeje para depois da aposentadoria. E, tem gente como eu: desistiu do longo prazo.

Mudo de humor com frequência, são quatro estações em um dia. Não sei quem serei depois do almoço. Não significa que não possa me fazer promessas, mas sei que terei a delicadeza de quebrar meus princípios na próxima esquina. Eu vou mudar. Não tenho medo da inconstância. Isso não é transtorno de humor: eu não me transtorno, eu me acompanho.

Devo frustrar meus projetos de hoje em nome do que me tornarei. Vou arrebentar minhas expectativas, preciso mudar de ideia. Verdadeiramente mudar de ideia. Se eu me mantivesse coerente, seria sempre a mesma, antiga, nascida há dez mil anos atrás; moraria com um personagem de novela das oito ao invés do homem múltiplo com quem de fato me casei.

Não sou o que presumiam que eu fosse. Não sou o que eu pretendia me tornar. Deixei a sala de espera para ser uma surpresa. Não sei existir para frente. Cada dia, nasço e morrem desejos que já estão velhos. Apenas tento o que é novo outra vez. Feliz com letra maiúscula, só na ortografia e olhe lá. Para mim, nada passa de ponto e vírgula.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Incêndio



Ontem, eu perdi tudo em um incêndio. Uma senhora do nono andar ligou sua estufa em uma extensão. O fio derreteu. O curto-circuito encontrou a cortina e a cortina, o papel de parede. Foi tudo muito rápido. Nem sei porque ela ligou a estufa. Estava abafado e um até um pouco quente. Não era caso para aquecedor. A fumaça subiu negra e espessa e logo tomou o andar todo como um miasma visível, um demônio japonês com olhos vermelhos que devorava sem piedade, um javali amaldiçoado e gigante. O síndico estava em casa, chamou os vizinhos. Todos bateram em vão na porta de meu apartamento. Meu marido não estava, apenas as cachorras brincavam pela sala com sua alegria corriqueira. O prédio foi evacuado e, quando os bombeiros chegaram, já era tarde para nós. O ar quente sobe; o vapor, sobe; a fuligem; sobe. Moramos no décimo. 

Ontem, eu morri em um incêndio. Fui mais cedo para casa e decidi tomar um vinho. Estava frustrada e quis dormir logo. Mas uma senhora do nono andar ligou sua estufa em uma extensão. O fio derreteu. O curto-circuito encontrou a cortina e a cortina, o marco de madeira. As chamas derreteram o plástico da mangueira do gás. Houve uma explosão. Não percebi nada. Quando acordei, sufocava de fuligem e fumaça. Demorei alguns segundos para entender o que acontecia. Lembrei dos corpos carbonizados que vi quando estudava medicina legal. Abri a janela. Ouvia ao longe as sirenes chegando. Gritei por socorro. Nas varandas ao redor, uma audiência inútil — como se vissem a novela. Olhei para baixo antes de pular e torci para que ninguém passasse na calçada. 

Ontem, meu marido morreu em um incêndio. Uma senhora do nono andar ligou sua estufa em uma extensão. O fio derreteu. O curto-circuito encontrou a cortina e a cortina, as pinturas à óleo. Foi tudo muito rápido. O síndico bateu nas campainhas e, sem pensar, ele desceu as escadas. Foi quando lembrou das cachorras. Embora tentassem segurá-lo, ele fugiu dez andares para cima e não pode mais descer. 

Ontem, cheguei em casa do trabalho e meu marido perguntou se eu não senti cheiro de fumaça no saguão do prédio. Não, não senti nada. Contou que o síndico o chamou no início da noite e que algum dos apartamentos pegava fogo. Desceram e verificaram que o nono andar estava tomado com nuvens cinzas que aumentavam. Mas aos poucos, foi-se dissipando. Desapareceu silenciosamente como começou. Ninguém sabe o que houve. 

Hoje de manhã, acordamos sem pressa nenhuma. As cachorras viraram o lixo da cozinha, mas isso não me incomodou. Limpamos a sala juntos e acendemos um incenso que queimava docemente. Enquanto tomava banho, meu marido cantava alto que alguns dias são melhores que outros. Concordei calada e chorei de medo. Às vezes, esqueço que viver é tão perigoso.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Mas vou até o fim.



Uma amiga me disse: "fico triste em casamentos. Para mim, é o início do fim dos dois". Como fosse uma amiga muito querida, acabei pensativa. Levo a sério quem eu gosto. Não posso considerar o que todo mundo diz, acabaria sem mim. Mais: tendo a concordar com quem admiro. Confesso que acabei trocando as orelhas. 

Acho que sim. Casar é acalmar a maré, baixar as velas, apreciar um céu sem ventos. Surge uma rotina de casa, um cheiro de família no ar. Chegar, abrir a porta, saber como foi o dia enquanto tiramos a louça da máquina — um prepara a comida. Já temos pratos certos: paz do pão com alho no forno, costelinha de porco, sopa de capeletti. Escolhemos um filme, passeamos com as cachorras. Nada de mais. Assistimos besteiras nos blogs engraçados da internet. 

Escutamos música, um varre, outro passa o pano. Trocamos os móveis de lugar. Sei quando vai ao banheiro, o tempo que leva para tomar banho, lembro de trocar a escova de dentes que está sempre moída. Compramos estoque de sabonetes, tapetes absorventes para o xixi das cadelas, vamos ao veterinário. Peço para me buscar no estacionamento porque cheguei com compras do supermercado. Dormimos juntos, quero saber se dormiu bem. Cuido da febre, coça minhas costas, trocamos os lençóis. Nada de mais. Revisamos o carro, olhamos fotos antigas, guardamos a roupa, colocamos a colcha para lavar. Espero para comer à noite, convidamos os amigos para o sábado. Às vezes, vamos ao cinema, experimentamos um restaurante novo, pagamos o cartão de crédito e o aluguel. 

Não estamos mais desesperados, não morro se o celular não toca, mas me preocupo com sua saúde, com o que anda comendo, se o casaco está descosturado no ombro, se está na hora de comprar meias novas. Ele vai decidir se meus órgãos poderão ser doados; se o avião dele cair, é para mim que ligarão. Reconhecerei seu corpo, mesmo que sobrem apenas os dentes. Conheço cada fissura, cada cicatriz. Sou sua enciclopédia de si mesmo, seu prontuário médico desde o pediatra. Sei ler cada silêncio, cada concessão. Sei ler suas mensagens de texto, sei imitar seu tom de voz, sei como escolhe cada palavra e o porquê de seus suspiros. 

Não posso me esconder dele, não consigo mentir. Minha pele me entrega, meus cílios assinam as confissões. Sabe quando faço a unha, quando já estou bêbada, quando vou menstruar. Sente ternura porque sangro todos os meses, constata que ser mulher é ficar um pouco enferma mensalmente. Decorou minhas fragilidades, meus medos, meus enganos. Conta a história dos presidentes americanos quando tenho crise de ansiedade. Narra 200 anos de história e eu durmo antes da segunda década. Ele não se importa. 

Não é nada de mais. Pergunto se "de mais" é junto ou separado. Ele pergunta se estou escrevendo enquanto lê piadas sobre os X-men. Tenho certeza de que é o início do fim. Todos os dias. 

Quando amanhece, o sol já conta as horas, o timer avisa que o forno deve ser desligado, o celular desperta. E lá se foi mais uma noite com sua escuridão que abandona, amanhã, será que chove? Tanto faz. Se chover podemos tomar um vinho, vai ser bonito, faremos com que seja. 

Viajamos sabendo que teremos data de volta e isso não estraga o turismo; nascemos sabendo que teremos data de volta e isso não estraga a viagem. A morte chegará certamente. Pode ser a morte do que sentimos, pode ser a desistência do corpo. Não sabemos. O fim é certo. Não fico triste. É por isso mesmo que fico entusiasmada. Por jamais saber o que será de nós dois até lá.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Fé Cega e Faca Amolada

Imagem em igreja (Brantôme, França)


Futebol, política e religião, já diria meu pai: não se discute.  Essa máxima surgiu na minha casa quando meu irmão mais velho fez uns questionamentos para uma visita muito católica que recebíamos. O senhor pregava na sala enquanto esperávamos o churrasco. O garoto disparou: já que entende tanto da história da bíblia, vou aproveitar para perguntar — se Adão e Eva tiveram Caim e Abel; e se um matou o outro: quem continuou a família?

O homem, sem hesitar, respondeu:

—    Ah, meu filho, isso é uma questão de fé.

Estudos comprovam: os crentes vivem mais ou melhor. Acreditar em alguma força superior, ou orar, acalma na hora da tristeza e, dizem alguns, ajuda na cura do câncer. Os grupos nas igrejas auxiliam dependentes químicos, a palavra do senhor parece recuperar criminosos — ao menos Suzane Richthofen, a parricida, virou pastora. E a conversão religiosa faz sucesso na penitenciária. Os sujeitos se arrependem. Mesmo.

Mas é em nome da fé que assassinaram três jovens judeus esta semana em Israel. Aliás, em nome da fé em Hitler choramos as consequências do holocausto até hoje. Em nome da fé, as mulheres muçulmanas não podem caminhar sem um homem, não podem trabalhar fora de casa, não serão salvas se o médico for do sexo masculino (sendo que não podem ser médicas), receberão chicotadas em caso de um calcanhar descoberto e o testemunho delas vale apenas a metade da verdade. Em nome da fé, africanas têm seus clitóris extirpados. Em nome da fé, a circuncisão é feita à unhadas, literalmente. Em nome da fé, mulheres hindus são enforcadas nas árvores.

Em nome da fé, uma pessoa deixa de ter seu próprio juízo e condena outra por obediência a uma doutrina. Por quê? Porque temos medo de viver sem culpa. Temos medo de que a desgraça cairá sobre o herege, temos medo do fogo do inferno, temos medo da eternidade. No fundo, temos medo de quem somos.

Eu não sou contra a religião, não sou contra a fé. Eu sou a favor do homem. Eu acredito que podemos nos ajudar, eu acredito em ser responsável pelo que eu faço. E sou responsável pelo que acredito. Eu não acredito em deus. E daí? Não me tornei agressiva, não subjugo meu gênero oposto, não destruo o corpo de ninguém, não pego o que não me pertence. Eu sou uma fiel ao amor. Eu confio em mim.

Não penso que a culpa ajude no autocontrole. Aliás, a culpa não ajuda em nada. Ao contrário: a culpa faz o homicida que pede perdão. Não é a ocasião: é a culpa que faz o ladrão.

A fé pode explicar o que não entendemos, mas não transforma um crime em um ato de deus. Não é esse o milagre. Cada um acredita no que quiser para disfarçar sua violência ou seu desejo de vingança; para justificar o imperdoável.

Fé demais não cheira bem. Fé demais deixa de ser fé, atende pelo nome de delírio. Não foi a crença que deu dignidade. Mas, às vezes, é em nome de um dogma que o homem desiste da racionalidade, desiste de ser uma pessoa. Perdoai. Eles não sabem o que fazem. Mas e você, que sabe?

terça-feira, 1 de julho de 2014

Charlotte


Drama Queen

Charlotte é uma de minhas quatro cachorras. É uma pequena de três quilos e pouco, mistura indefinida de Jack Russel que desafia até os mais pacientes. Passou por dois lares antes de parar na minha casa. Em um deles, perdeu o rabo, porque queriam que ela se parecesse mais com um paulistinha. Aquela moda antiquada de amputar um membro só para ser mais bonito. Imagino que ninguém corta um dedo por ser demasiadamente longo, mas rabo, ah, isso se corrige cirurgicamente. Não poderíamos chamar de procedimento estético, afinal, as pessoas pagam caro para reduzir seus narizes e anseiam por esta modificação. 

Enfim, não posso dizer que é por isso que ela é tão agitada. Nem afirmo que seja por conta dos abandonos. Tem cachorro adotado que sabe ser um fiel e calmo companheiro. Charlotte, não. Ela é inteligente demais para obedecer. Gosta de desafiar e, como nós, tem prazer em transgredir. A bichinha assovia quando quer perturbar. É famosa na quadra por seus latidos estridentes, dignos de uma soprano de coloratura. 

Há meses venho cultivando o sentimento gregário do serzinho, estimulando que ela se junte à matilha. Vinha entendendo aos poucos e com a insistência. Quando a soltava no parque, não fugia. Brincava com as outras. Adora confirmar que é a mais veloz e criativa corredora entre os caninos. 

Na semana retrasada, um cachorro desconhecido se soltou da guia e disparou. O instinto da minha arisca se atiçou e ela zarpou na perseguição. Foi horrível. Tive que catar as outras três e amarrá-las antes de sair pelas ruas chamando feito uma desesperada. Eu, que já estava pronta para o trabalho, montada e maquiada, odiei o cooper forçado. Acabei descabelada, suada e atrasada. E louca de raiva. Já estava voltando quando a vi, mas, mesmo assim, não relaxei. Um estresse. 

Liguei para o marido aflita e com ódio determinada a castrar a bichinha. Ele concordou de imediato. Escolhemos um recomendado veterinário que fica na zona sul. Agendamos e concluímos o feito em uma semana. Não sem antes enfrentar o trânsito hediondo que o dia de jogo da copa do mundo proporcionou. O estádio fica bem no meio do caminho entre a minha casa e a clínica. No mínimo, um senhor transtorno. 

Quando fui buscar a paciente é que, enfim, entendi. A pobrezinha me contava com os olhos tudo o que passava: medo e dor. Recebeu os cuidados necessários: anestesia, analgesia, antiinflamatórios. Tudo. Menos o preparo psicológico ou o consentimento esclarecido para o que ia acontecer. Estava tão quietinha e sofrida que imediatamente fui tomada por uma onda de ternura sem igual. Eu me apaixonei definitivamente por ela. Nunca senti tanta saudade de sua altivez e peraltice, até suas notas supersônicas me faziam falta. Tive zelo de avó na recuperação: troquei os curativos, não desperdicei uma única gota do remédio pós-operatório. 

Não é culpa. É amor. Amar é sentir falta. Diante da fragilidade assumida com coragem, a gente amolece e aprende a cuidar. A doença enfeita. A morte enfeita. Saber que talvez ela não voltasse a ser quem era me alertou para aceitar a diferença. É só uma cadelinha alegre e cheia de energia. Eu que aprenda a me adestrar para merecer ser sua dona.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Um Divã para Todos

Bugio Branco

Eu tinha 15 anos quando namorei pela primeira vez. Meu namorado tinha o apelido em casa de bugio branco: ou seja, não era exatamente bonito. Namorado bonito nunca foi meu forte. Aliás, tirando o marido, meus antecedentes criminais são graves. O fato de ser feio não importava, a questão é que era um rapaz inseguro e ciumento. Talvez isso ficasse por conta da síndrome de desarmonia facial, mas talvez fosse outra coisa. Vai saber? Não mamou no peito, demorou para tirar as fraldas, sei lá. Mas as tentativas de controle do dito cujo eram bastantes e, na adolescência, tudo pega fogo.

Costumam acusar os hormônios, mas hormônio é coisa boa demais para ser o dono dessa culpa. Quando faltam é um deus nos acuda. Penso que tem mais a ver com nossa imensa vontade de conhecer intensamente, uma voracidade simpática, um imenso tesão pela vida e pelas oportunidades românticas. Não gosto de quem xinga um adulto de estar sendo adolescente —  o adulto que mantém a eletricidade ligada é um sábio. Mas entre eu e o moço aquele de quem estou falando, acontecia de virar curto circuito com a maior facilidade. Então a gente brigava muito. Discutíamos horas por telefone, horas ao vivo; das festas, quase sempre íamos embora brigar em casa. Os motivos? Ah, os de sempre. Você olhou para fulano, você abraçou demais sicrana, etc. Ciúme é um problema sem fim porque não é um problema. Ficamos frágeis e acabamos querendo rugir para negar a vulnerabilidade.

Minha mãe insistia: minha filha, namoro é para ser bom: é a melhor fase da vida. Se estão brigando tanto, talvez seja razão para se separarem.

Foi então que me deparei com um clássico questionamento: quando é hora de insistir e quando é hora de acabar? O namoro acabou quando acabou, tudo tem fim. Temos esta necessidade de achar que o importante é não perder tempo com a pessoa errada. Isso é um infeliz delírio: o tempo não vai embora, jamais está perdido. Toda experiência vale. Mais: pessoa errada? Lá isto existe? Amar não é investir, é gastar — quanto mais gastamos, mais ganhamos. E, por último: decidir? Quem pergunta ainda quer ficar, mas tem vergonha do que deseja. Aprendi logo que é assim mesmo, criar uma relação é construir.

Minha mãe estava enganada: primeiro, adolescência jamais será o melhor período da vida e namorar é sempre um perrengue, ora bolas. É difícil mesmo conciliar vontades, paixão e aprender a gostar sem que isso seja uma ameaça.

Quando nos apaixonamos, nossa personalidade entra em xeque. Só evolui no relacionamento quem muda, quem abandona princípios, quem tem coragem. Isso leva tempo. E, muitas vezes, mil relacionamentos ou mil relacionamentos dentro do mesmo casal.

Existe um tabu enorme sobre casais que procuram um terapeuta. Parecem perdedores aos olhos de alguns. Dizem: "Mas se não conseguem resolver os problemas em casa, vão morar com quem atende? Melhor separar e procurar quem seja mais compatível".

Isso é uma lenda tão esdrúxula quanto dizer que quem come melancia com leite, desmaia. Um mediador pode fazer toda a diferença na busca do entendimento. Se as pessoas se gostam, por que não tentar descobrir o que está acontecendo?

Só o desamor não tem cura. Aprender a gostar é um direito. Esse tipo de tecnologia é coisa nova, por isso, amedronta. Mas a verdade é que os casamentos modernos exigem muito mais do que antigamente. Não é simplesmente uma sociedade, nem mesmo um brasão familiar. Viver junto é um desafio. Viver junto e bem é aprendizagem. É fazer beleza quando ninguém enxerga.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Aventuras na Depressão — Por Allie Brosh — Tradução livre da Martha Brito


Queridos,
há tempos queria que todos pudessem acessar o conteúdo destes quadrinhos.
A Martha Brito fez o favor de traduzir neste pdf.
Divirtam-se.

Acesse aqui


terça-feira, 3 de junho de 2014

Terapia serve para quê?

Freud e sua Jofie

Uma manicure ou um padre ouvem você até o final. Ser escutado é muito bom e alivia.

Os amigos sabem ainda melhor: se colocam no seu lugar. Eles se identificam e imaginam como seria se acontecesse com eles. Alguém que compartilha do que você sente é importante e ajuda quando estamos sofrendo. E mais: uma terapia de bar é maravilhosa. Você sai rindo dos problemas e, mesmo dormindo pouco, acorda com energia e gratidão por estar vivo e por ter amigos.

Conviver é um discreto milagre.

Então, para que serve um terapeuta?

Um terapeuta ouve você até que termine de contar o que aconteceu, como no confessionário ou no salão de beleza; um terapeuta tem empatia e, com sorte, bom humor — como seus melhores companheiros de longa data.

Mas o terapeuta, além de gostar de você, tem um conhecimento específico: ele entende um pouco mais sobre a alma do que a maioria das pessoas. Tipo um filósofo, mas com vontade de ajudar. Terapia não é para ser menos do que outras conversas; não é para ser estéril, nem técnica, nem chata — muito menos gélida.

Terapia é uma amizade que dissipa as nuvens.