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segunda-feira, 7 de julho de 2014

Incêndio



Ontem, eu perdi tudo em um incêndio. Uma senhora do nono andar ligou sua estufa em uma extensão. O fio derreteu. O curto-circuito encontrou a cortina e a cortina, o papel de parede. Foi tudo muito rápido. Nem sei porque ela ligou a estufa. Estava abafado e um até um pouco quente. Não era caso para aquecedor. A fumaça subiu negra e espessa e logo tomou o andar todo como um miasma visível, um demônio japonês com olhos vermelhos que devorava sem piedade, um javali amaldiçoado e gigante. O síndico estava em casa, chamou os vizinhos. Todos bateram em vão na porta de meu apartamento. Meu marido não estava, apenas as cachorras brincavam pela sala com sua alegria corriqueira. O prédio foi evacuado e, quando os bombeiros chegaram, já era tarde para nós. O ar quente sobe; o vapor, sobe; a fuligem; sobe. Moramos no décimo. 

Ontem, eu morri em um incêndio. Fui mais cedo para casa e decidi tomar um vinho. Estava frustrada e quis dormir logo. Mas uma senhora do nono andar ligou sua estufa em uma extensão. O fio derreteu. O curto-circuito encontrou a cortina e a cortina, o marco de madeira. As chamas derreteram o plástico da mangueira do gás. Houve uma explosão. Não percebi nada. Quando acordei, sufocava de fuligem e fumaça. Demorei alguns segundos para entender o que acontecia. Lembrei dos corpos carbonizados que vi quando estudava medicina legal. Abri a janela. Ouvia ao longe as sirenes chegando. Gritei por socorro. Nas varandas ao redor, uma audiência inútil — como se vissem a novela. Olhei para baixo antes de pular e torci para que ninguém passasse na calçada. 

Ontem, meu marido morreu em um incêndio. Uma senhora do nono andar ligou sua estufa em uma extensão. O fio derreteu. O curto-circuito encontrou a cortina e a cortina, as pinturas à óleo. Foi tudo muito rápido. O síndico bateu nas campainhas e, sem pensar, ele desceu as escadas. Foi quando lembrou das cachorras. Embora tentassem segurá-lo, ele fugiu dez andares para cima e não pode mais descer. 

Ontem, cheguei em casa do trabalho e meu marido perguntou se eu não senti cheiro de fumaça no saguão do prédio. Não, não senti nada. Contou que o síndico o chamou no início da noite e que algum dos apartamentos pegava fogo. Desceram e verificaram que o nono andar estava tomado com nuvens cinzas que aumentavam. Mas aos poucos, foi-se dissipando. Desapareceu silenciosamente como começou. Ninguém sabe o que houve. 

Hoje de manhã, acordamos sem pressa nenhuma. As cachorras viraram o lixo da cozinha, mas isso não me incomodou. Limpamos a sala juntos e acendemos um incenso que queimava docemente. Enquanto tomava banho, meu marido cantava alto que alguns dias são melhores que outros. Concordei calada e chorei de medo. Às vezes, esqueço que viver é tão perigoso.

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