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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Boca de Siri


Raphaël Vicenzi's at his own www.mydeadpony.com


A palavra tem poderes mágicos. Freud chamou de Talking Cure. Quando ficamos magoados, dá-se o mesmo: é na contação do problema que achamos alívio – repetimos, repetimos e repetimos à exaustão o que aconteceu. Depois, passa.

Conhecemos esse poder da linguagem intuitivamente, é claro. Isso é uma capacidade latente desenvolvida desde a infância: aprendemos a pedir desculpas de verdade, a confessar nosso amor, a implorar ajuda. É uma ponte extraordinária entre a imaginação e a realidade.

Por causa disso que, antigamente, não se pronunciavam palavras como “câncer” ou “diabo”. Dizia-se, apenas, “aquela doença”ou “ o coisa-ruim”. Acreditavam que as pestilências restariam afastadas, impedidas de acontecer, uma vez que a voz não desse o contorno. Logo, o homem teria o poder de atrair ou repelir a sorte – um ganho secundário de inestimável valor. Uma ilusão tentadora e portanto mantida por décadas. Até hoje encontramos algumas senhoras que mantém o hábito.

A inquisição dos livros parece ter voltado à moda. Psicopedagogas desaconselham o uso do livro “Teresa, que Esperava as Uvas”, da ficcionista gaúcha Monique Revillion, nas escolas públicas. Onze mil unidades foram distribuídas para auxílio no ensino pelo governo. O argumento é simples: o conteúdo é inadequado e não trasmite bons valores aos jovens. Um dos contos da obra agraciada com dois Prêmios Açorianos, incluindo o de Livro do Ano, descreve um sequestro onde se passa um estupro. As cenas de violência estão presentes em "Os Primeiros que Chegaram", que narra do ponto de vista da criminosa. Há frases como "arriou as calças dela, levantou a blusa e comeu ela duas vezes" e "(Zonha, o criminoso) deu um tiro no olho dele. (...) Ele ficou lá meio pendurado, com um furo na cabeça."

Não há fundamento nestas declarações. Posicionar-se contra a divulgação da realidade nacional é uma atitude, no mínimo, ingênua. Uma crença improvável diante de toda a mídia disponível. É incongruente com a linguagem do aluno e, além disso, uma tentativa de fazer da cultura um lugar de religião.

Provocar a fala é a grande arte dos terapeutas. Provocar o raciocínio é a grande arte do educador. Inspirar o silêncio é trabalho do ditador.

Só o que faltava que, além da boca, os leitores sejam obrigados a estampar olhos de siri.


>> Ouça esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa TalkRadio
Na rádio Itapema FM
Apresentação Katia Suman [@katiasuman]
Para ouvir o TalkRadio do dia 17.08.2010 -
Clique aqui

10 comentários:

  1. Fico triste, como educadora, de ver esse tipo de regresso.

    Ótimo texto!

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  2. Muito bom o teu blog, querida! E concordo em partes com essa parte do livro para os adolescentes. Acho desnecessário continuar incluindo assuntos de baixo calão entre estes, mas temos (entre tantas) obras que todos devem ter lido, como, A moreninha e Dom Casmurro, que são ditos clássicos da literatura, encharcados de baixarias, mas ditos de forma mais polida, portanto, mais aceita. Vai entender!
    Beijos...
    Mari Ahlert

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  3. Excelente, sou professora e não vejo sentido em mascarar as coisas no ambiente em que mais devemos escancará-las, discutir, ver e sentir, de fato, o peso da realidade. Outro erro das escolas é querer transformar literatura em livro didático, não é, literatura não tem propósito didático, não há uma preocupação com transmissão de "valores", é arte, se justifica em si e deve ser consumida e apreciada como tal.
    Adorei o texto, beijo

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  4. Muito legal, muito bom. Provocar a fala é o que nos dá ganhos. Beijo, beijo

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  5. Adoro seus textos, mas com este não concordo.
    Não vejo sentido em usar palavras de tão baixo calão. É como se quiséssemos que tais jovens saíssem por ai dizendo coisas do tipo "vou comer aquela menina", "arriei as calças para cagar"... poxa, as escolas estão querendo educar estes jovens ou acostuma-los a falar uma lingua que não é considerada culta e que se usada no futuro vai lhe render a perda de muitos trabalhos?
    Sim, devemos tratar de realidades, mas não necessariamente de uma forma grossa.
    Cinthya, você que escreve de forma tão clara, e abusando de uma linguagem culta não concorda que, estes jovens vão as escolas para buscarem orientação e educação para o futuro? Me decepciona ver que escolas preguem tais conceitos de fala a uma população já carente de educação.

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  6. ah, sei la, entendo a importancia de se expressar, etc...

    convenhamos, já temos taaanta coisa pesada para ouvir e assistir.

    Os adolescentes já sofrem influencias tão fortes que instigam essa agressividade, essa curiosidade morbida. Tbem acho desnecessário esse tipo de livro nas escolas. Tem muita coisa boa para se ler antes de chegar nele, não é mesmo!?

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  7. Pois é...
    Não devemos confundir as coisas - defender palavras de baixo calão usadas como forma de expressão popular por autores é uma coisa. Usá-las nas escolas (não esquecer escola=local de ENSINO) divulgando palavras/expressões de baixo calão entre crianças/adolescentes é outra. Até porque, todos sabemos e não adianta "tapar o sol com a peneira", que nossa rede pública de ensino carece, e muito, de qualidade e de professores qualificados.
    E não se trata de "ditadura", mas de raciocínio lógico. Temos que cuidar as informações que passamos já que não há qualidade na interpretação. O que provavelmente acontecerá será o acréscimo de alguns palavrões e incitação à violência nas escolas.
    Para tratar com assuntos polêmicos temos que ter qualidade. Aqui ainda não há.

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  8. Fernanda, Ludmila e Rose:

    na minha opinião, como expressei no texto e na rádio - não acredito que a inclusão de um livro que narra coloquialmente a violência seja desvirtuar a escola. Não acredito nisso.

    Uma obra polêmica e realista é uma ótima oportunidade de agarrar o jovem na leitura, de despertar o furor nas palavras. Não é o fim do desenvolvimento da linguagem, nem a redução do vocabulário. É um motivo a mais para se aproximar. Igual que alfabetizar através de letras de RAP: nunca se conseguiu tanto sucesso na aprendizagem.

    Para mim, parece uma onda moralista que quer a pureza, almeja a assepsia no ensino. E sempre que buscamos as alturas, nos apartamos de quem precisa.

    A sala de aula é o lugar de ver de tudo e, principalmente, falar sobre tudo com.

    De solidão com esses temas, já basta a televisão, o computador e o resto da mídia.

    Um beijão pra vocês e adorei o feedback. Coisa boa a crítica.

    Cín

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  9. Olá Cín.
    Houve um acompanhamento com esses jovens que aprenderam atráves de músicas de RAP?
    Uma coisa é chamar atenção dos jovens para seu comparecimento em aulas, atráves de letras de RAP (muito populares) e outra é acompanhar seu desenvolvimento e ver como foi utilizado o "conhecimento" adquirido.

    Houve este estudo CIENTÍFICO ? Apenas a afirmação em cima do que se supõe e da popularidade em salas de aula é precoce..

    Abraços!

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  10. Existe algo mais chulo, violento e imoral que as notícias estampadas diariamente nos telejornais?

    Como alguém pode querer policiar a literatura?

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