Quando pequenos, somos destemidos, não conhecemos os riscos, não projetamos consequências. É natural disparar pela calçada e pela rua, considerar que o meio fio não passa de um degrau.
Quando pequenos, os pais sofrem principalmente porque são as testemunhas dos perigos que nunca percebemos. Cada susto é transferido, o pavor é transmitido e somos livres para nos arriscar. Cada todler que corre estrada afora tem um pai horrorizado por trás. Cada menino e menina perdido na beira-mar tem um adulto desesperado fazendo telefone sem-fio entre os banhistas.
O comércio sabe disso. Naturalmente, desenvolveram um produto que promete acabar com este sofrimento: uma coleira. Isso mesmo, uma coleira para crianças. De fato, mais parece uma peiteira com guia nas costas. Tem velcros para ajuste ao tórax, à altura e ao tamanho do infante; tem em fomato de girafinha, de vaquinha e de sapo.
No início, a resposta é unânime:
- Que horror, uma coleira!
Asco diante da possibilidade. O que me intriga são os depoimentos paterno e maternos gerando curiosidade e interesse nos outros. A carência é sempre persuasiva. As conversas são facilmente encontradas na internet, especialmente em sites que promovem a venda. Dentre esses relatos, uma criança de três anos afirma que a mãe fica muito mais segura quando ele usa o dispositivo. Verdade absoluta: a coleira com guia serve aos pais em primeiro lugar.
Mães defendem argumentando que é útil em aeroportos, parques lotados, shows, eventos populosos, no supermercado, na praia. Mas, como não é prática comum, todos os olhares são dirigidos ao pequeno encoleirado, os vizinhos cochicham, alguns desaforam:
- Seu filho não é um cão.
De modo que é impossível que essa pessoa, ao crescer, não recorde de sua humilhação pública.
Em segundo lugar, se o adulto se responsabiliza inteiramente pela mobilidade infantil, nada impedirá este jovem de exigir o mesmo tipo de disponibilidade por várias décadas depois. Quando será hora de aprender a cair? Quando chegará o momento em que ele pode se cuidar sozinho?
A coleira representa um atestado de incompetência, a afirmação de que ele é incapaz de se deslocar sozinho. Essa informação, por si só é muito grave. A ilusão de que poderemos nos independizar ao caminhar é fundamental. A crença nisso será transformada na fé em nós mesmo.
Titubeando descobrimos o tamanho de nosso passo; pelo desequilíbrio encontraremos nosso centro. O processo de descoberta dos limites também ajuda na futura desconstrução dos mesmos. Segurança no andar pertence aos quadrúpedes.
Viver compreende os perigos no coração. Amar só é possível para quem os suporta.
>>Assista esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 04/08/10
Quando pequenos, os pais sofrem principalmente porque são as testemunhas dos perigos que nunca percebemos. Cada susto é transferido, o pavor é transmitido e somos livres para nos arriscar. Cada todler que corre estrada afora tem um pai horrorizado por trás. Cada menino e menina perdido na beira-mar tem um adulto desesperado fazendo telefone sem-fio entre os banhistas.
O comércio sabe disso. Naturalmente, desenvolveram um produto que promete acabar com este sofrimento: uma coleira. Isso mesmo, uma coleira para crianças. De fato, mais parece uma peiteira com guia nas costas. Tem velcros para ajuste ao tórax, à altura e ao tamanho do infante; tem em fomato de girafinha, de vaquinha e de sapo.
No início, a resposta é unânime:
- Que horror, uma coleira!
Asco diante da possibilidade. O que me intriga são os depoimentos paterno e maternos gerando curiosidade e interesse nos outros. A carência é sempre persuasiva. As conversas são facilmente encontradas na internet, especialmente em sites que promovem a venda. Dentre esses relatos, uma criança de três anos afirma que a mãe fica muito mais segura quando ele usa o dispositivo. Verdade absoluta: a coleira com guia serve aos pais em primeiro lugar.
Mães defendem argumentando que é útil em aeroportos, parques lotados, shows, eventos populosos, no supermercado, na praia. Mas, como não é prática comum, todos os olhares são dirigidos ao pequeno encoleirado, os vizinhos cochicham, alguns desaforam:
- Seu filho não é um cão.
De modo que é impossível que essa pessoa, ao crescer, não recorde de sua humilhação pública.
Em segundo lugar, se o adulto se responsabiliza inteiramente pela mobilidade infantil, nada impedirá este jovem de exigir o mesmo tipo de disponibilidade por várias décadas depois. Quando será hora de aprender a cair? Quando chegará o momento em que ele pode se cuidar sozinho?
A coleira representa um atestado de incompetência, a afirmação de que ele é incapaz de se deslocar sozinho. Essa informação, por si só é muito grave. A ilusão de que poderemos nos independizar ao caminhar é fundamental. A crença nisso será transformada na fé em nós mesmo.
Titubeando descobrimos o tamanho de nosso passo; pelo desequilíbrio encontraremos nosso centro. O processo de descoberta dos limites também ajuda na futura desconstrução dos mesmos. Segurança no andar pertence aos quadrúpedes.
Viver compreende os perigos no coração. Amar só é possível para quem os suporta.
>>Assista esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 04/08/10
São tantas coleiras que os pais gostam de usar... Não levar o filho ao dentista também é uma forma de "encoleirar para assegurar", não é?!
ResponderExcluirÓtimo o texto e não esperaria menos de ti. Pouco te conheço e já é suficiente pra admirar. Muito linda tua existência, obrigada por isso! Beijos todos, Maíra.
Shoooooowwwwwww!!!!!!!!
ResponderExcluirMuito bom vir aqui - como sempre faço discretamente e em silêncio - e ler seus escritos. Mas hoje vou quebrar o jejum de nunca ter comentado pela mais absoluta concordância com tuas ideias. Parabéns, moça, muito bom mesmo vir aqui.
ResponderExcluirSheyla Azevedo