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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

[CINEMA] Jorge Furtado debate Woody Allen


Diane Keaton e Woddy Allen em Annie Hall


ZERO HORA, 30 de agosto de 2010 | N° 16443

Um dos melhores filmes de Woody Allen (e seguramente o maior na história das piores traduções de títulos), Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977) é a atração de hoje no projeto Cineterapia. A exibição, gratuita e aberta ao público, ocorre nesta segunda-feira, às 20h, no Cinebancários (General Câmara, 424).

Para esta sessão, o cineasta Jorge Furtado (O Homem que Copiava, Meu Tio Matou um Cara) participará do bate-papo que pretende jogar um pouco de luz sobre a história de Alvy Singer (Allen), um humorista judeu e divorciado que faz análise há 15 anos e acaba se apaixonando por Annie Hall (Diane Keaton), uma cantora em início de carreira com um temperamento que não aceita atalhos e explicações fáceis. O filme conquistou os Oscar de melhor filme, melhor diretor, melhor atriz e melhor roteiro original em 1978.

Além de Furtado, estarão presentes os terapeutas Cínthya Verri e Roberto Azambuja.

No projeto Cineterapia, grandes nomes da produção cultural gaúcha são convidados para analisar, junto do público, clássicos do cinema que, de alguma forma, abordam a saúde afetiva em suas tramas. Reservas de ingressos deverão ser feitas por email pelo atendimento@clinicaverri.com.br.

sábado, 28 de agosto de 2010

Peek-a-Boo


Esao Andrews'
"Megan"
9"x 12" oil on wood, 2006




Ele tinha quase dois metros de loirice inédita porque era russo. Nunca tinha visto um russo antes. Só em provas de patinação no gelo.

Cara alto é quase sempre desengonçado ou parece jogador de basquete. Ele, não. Era grande, grande mesmo. Enorme. Coordenado. Minha amiga e eu viramos monotemáticas - só falávamos o quanto era dourado, alvo, olhos azuis, cílios quase brancos. Será que os pentelhos eram assim? E a inevitável pergunta seguinte:

- Será que era todo proporcional?

O dilema sobre o tamanho do segredo do tal semi-albino nos tirou o sono. Não podíamos sair daquele hotel sem descobrir a anatomia supostamente avantajada do sujeito. Afinal, éramos duas adolescentes de mochila pela Europa. Não fomos até lá para pouca sacanagem. O mínimo era conseguir dar uma espiada no privativo made in Moscou.

Era todo animado o moço e nossa praia era a tequila. Andávamos em altíssimo nível de preparo físico alcoólico. É fácil presumir: planejamos embriagá-lo.

- Vamos sair e tomar umas tequilas?

- Tequilas? Nunca tomei.

A comunicação foi rolando entre o inglês nível intermediário e o espanhol sofrível do recém chegado ao país. Mas entendeu “tequila”e nós entendemos o “nunca tomei”. Feito. Estava ralado.

Saiu feliz com a gente pela ronda em Madrid. Um martelinho, uma dançadinha; um martelinho, uma salsa. Já estávamos rindo pelo balcão.

- Está gostando da tequila?

- Oh, tequila “сzabui”.

- Quê?

- “Czabui”.

Mas a cara era um pouco torta. Estava achando ardida, concluímos. Ou seria forte? Só podia ser forte. Tequila ouro é forte mesmo, concordamos.

Cinco bares depois, muitos ritmos calientes, merengues e até um sambinha achamos por lá. E muita tequila. O gigantão, inteiraço; nós, olhos lacrimejantes, vertigem.

- Gostou da tequila?
- “Czabui”
- Que porra é “czabui”?

O bartender, rindo de gorjeta, dispara:

- “Czabui” é débil.

- Débil?

- É, como fraco.

Perestroika ganhou um novo sentido. Terminamos carregadas para o quarto. Sorte que era mesmo grande o tal Yuri.

Nada melhor que um intercâmbio pra curar do ensino médio.

Peek-a-Boo


Esao Andrews'
"Megan"
9"x 12" oil on wood, 2006




Ele tinha quase dois metros de loirice inédita porque era russo. Nunca tinha visto um russo antes. Só em provas de patinação no gelo.

Cara alto é quase sempre desengonçado ou parece jogador de basquete. Ele, não. Era grande, grande mesmo. Enorme. Coordenado. Minha amiga e eu viramos monotemáticas - só falávamos o quanto era dourado, alvo, olhos azuis, cílios quase brancos. Será que os pentelhos eram assim? E a inevitável pergunta seguinte:

- Será que era todo proporcional?

O dilema sobre o tamanho do segredo do tal semi-albino nos tirou o sono. Não podíamos sair daquele hotel sem descobrir a anatomia supostamente avantajada do sujeito. Afinal, éramos duas adolescentes de mochila pela Europa. Não fomos até lá para pouca sacanagem. O mínimo era conseguir dar uma espiada no privativo made in Moscou.

Era todo animado o moço e nossa praia era a tequila. Andávamos em altíssimo nível de preparo físico alcoólico. É fácil presumir: planejamos embriagá-lo.

- Vamos sair e tomar umas tequilas?

- Tequilas? Nunca tomei.

A comunicação foi rolando entre o inglês nível intermediário e o espanhol sofrível do recém chegado ao país. Mas entendeu “tequila”e nós entendemos o “nunca tomei”. Feito. Estava ralado.

Saiu feliz com a gente pela ronda em Madrid. Um martelinho, uma dançadinha; um martelinho, uma salsa. Já estávamos rindo pelo balcão.

- Está gostando da tequila?

- Oh, tequila “сzabui”.

- Quê?

- “Czabui”.

Mas a cara era um pouco torta. Estava achando ardida, concluímos. Ou seria forte? Só podia ser forte. Tequila ouro é forte mesmo, concordamos.

Cinco bares depois, muitos ritmos calientes, merengues e até um sambinha achamos por lá. E muita tequila. O gigantão, inteiraço; nós, olhos lacrimejantes, vertigem.

- Gostou da tequila?
- “Czabui”
- Que porra é “czabui”?

O bartender, rindo de gorjeta, dispara:

- “Czabui” é débil.

- Débil?

- É, como fraco.

Perestroika ganhou um novo sentido. Terminamos carregadas para o quarto. Sorte que era mesmo grande o tal Yuri.

Nada melhor que um intercâmbio pra curar do ensino médio.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

CINETERAPIA EXIBE NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA

>>Cineterapia: A exibição de
[Noivo Neurótico, Noiva Nervosa]
acontece no Cine Bancários,
rua General Câmara, n° 424,
às 20h, dia 30 de agosto, segunda-feira,
sempre com entrada franca.




Um dos filmes prediletos de Jorge Furtado ganha sessão gratuita
no Cinebancários nesta segunda (30/8)

Um clássico de Woody Allen e reflexões de Jorge Furtado, a dobradinha não poderia ser mais convidativa na 6ª edição do Cineterapia.

Com entrada franca, será exibido o filme "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", um dos ponto altos do humor irreverente e inteligente de Allen, vencedor de quatro Oscar em 1978, de melhor filme, melhor diretor, melhor atriz (Diane Keaton) e melhor roteiro original. A sessão acontece nesta segunda (30/8), às 20h, no Cinebancários (Rua General Câmara, 424 ˆ Centro), em Porto Alegre.

O projeto disponibiliza clássicos que abordam a saúde afetiva e ainda possibilita análise comportamental por destacados pensadores, psiquiatras e escritores gaúchos. A mediação da conversa fica por conta dos terapeutas Cínthya Verri e Roberto Azambuja.

Reservas de ingressos deverão ser feitas por email pelo atendimento@clinicaverri.com.br

Leia Mais>> Espaço Cultural Clínica Verri
Leia Mais>> Saiu na ZERO HORA

CINETERAPIA EXIBE NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA

>>Cineterapia: A exibição de
[Noivo Neurótico, Noiva Nervosa]
acontece no Cine Bancários,
rua General Câmara, n° 424,
às 20h, dia 30 de agosto, segunda-feira,
sempre com entrada franca.




Um dos filmes prediletos de Jorge Furtado ganha sessão gratuita
no Cinebancários nesta segunda (30/8)

Um clássico de Woody Allen e reflexões de Jorge Furtado, a dobradinha não poderia ser mais convidativa na 6ª edição do Cineterapia.

Com entrada franca, será exibido o filme "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", um dos ponto altos do humor irreverente e inteligente de Allen, vencedor de quatro Oscar em 1978, de melhor filme, melhor diretor, melhor atriz (Diane Keaton) e melhor roteiro original. A sessão acontece nesta segunda (30/8), às 20h, no Cinebancários (Rua General Câmara, 424 ˆ Centro), em Porto Alegre.

O projeto disponibiliza clássicos que abordam a saúde afetiva e ainda possibilita análise comportamental por destacados pensadores, psiquiatras e escritores gaúchos. A mediação da conversa fica por conta dos terapeutas Cínthya Verri e Roberto Azambuja.

Reservas de ingressos deverão ser feitas por email pelo atendimento@clinicaverri.com.br

Leia Mais>> Espaço Cultural Clínica Verri
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domingo, 22 de agosto de 2010

O Velho-do-saco da Gula [Crônica Falada 20.08.2010]


Isabelle Caro, em campanha para Nolita

Eu descobri que estava sofrendo de transtorno alimentar quando procurei na embalagem o quadradinho com as informações nutricionais. Até aí, tudo bem, mas a caixinha em questão era de sabonete.

A neurose é converter a composição de alimentos em bulas de remédios. Catar calorias em uma barra de sabão parece bizarro, mas não é uma atitude isolada e exclusiva.

Avançamos na fiscalização, além do controle do excesso. São atitudes fóbicas à comida mais do que preventivas. Atualmente, a normalidade é a restrição alimentar. Não se enxerga naturalidade feminina em relação ao alimento. Ela tem medo da comida, pânico de engordar. Ao sobrepeso, prefere cigarro, vomitar após a refeição ou exercícios físicos para punir a sobremesa. Cada vez mais corriqueiro como subir na balança do supermercado.

Talvez o surgimento do velho-do-saco da gula tenha sido na cozinha, quando a mãe fazia chantagem: oferecia o sorvete se a filha comesse o bife. O simples ato hipervalorizava o doce e inventava o salgado como castigo. Na época, entrávamos no terreno das proibições.

Nas festas de aniversário podemos comer “tudo o que queremos”. Essa tradição subentende a necessidade de polícia aos desejos em todos os outros dias. Não é à toa que temos tanto medo de atender ao apetite. A fome é o fantasma das adultas.

Personalidades adeptas aos movimentos anti-anorexia ainda são escassas, o debate é pequeno perto dos anúncios, dos outdoors, das atrizes ossudas, das modelos sem saboneteiras, das revistas enviesadas. Emagrecemos a verdade, desidratamos a inteligência, recebemos soro com imagens alteradas por photoshop. A moda é corrigir fotos de bebê no perfil do facebook antes de exibir aos amigos.

Eu descobri que estava recuperada no momento em que não sabia dizer a um amigo se o creme de leite que usamos no molho tinha sido “normal” ou “light”. Doença é quando perdemos o direito de nos distrair.

Somos o velho-do-saco. Ele não está debaixo da cama, mas debaixo da mesa.

>>Assista esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 20/08/10


O Velho-do-saco da Gula


Isabelle Caro, em campanha para Nolita

Eu descobri que estava sofrendo de transtorno alimentar quando procurei na embalagem o quadradinho com as informações nutricionais. Até aí, tudo bem, mas a caixinha em questão era de sabonete.

A neurose é converter a composição de alimentos em bulas de remédios. Catar calorias em uma barra de sabão parece bizarro, mas não é uma atitude isolada e exclusiva.

Avançamos na fiscalização, além do controle do excesso. São atitudes fóbicas à comida mais do que preventivas. Atualmente, a normalidade é a restrição alimentar. Não se enxerga naturalidade feminina em relação ao alimento. Ela tem medo da comida, pânico de engordar. Ao sobrepeso, prefere cigarro, vomitar após a refeição ou exercícios físicos para punir a sobremesa. Cada vez mais corriqueiro como subir na balança do supermercado.

Talvez o surgimento do velho-do-saco da gula tenha sido na cozinha, quando a mãe fazia chantagem: oferecia o sorvete se a filha comesse o bife. O simples ato hipervalorizava o doce e inventava o salgado como castigo. Na época, entrávamos no terreno das proibições.

Nas festas de aniversário podemos comer “tudo o que queremos”. Essa tradição subentende a necessidade de polícia aos desejos em todos os outros dias. Não é à toa que temos tanto medo de atender ao apetite. A fome é o fantasma das adultas.

Personalidades adeptas aos movimentos anti-anorexia ainda são escassas, o debate é pequeno perto dos anúncios, dos outdoors, das atrizes ossudas, das modelos sem saboneteiras, das revistas enviesadas. Emagrecemos a verdade, desidratamos a inteligência, recebemos soro com imagens alteradas por photoshop. A moda é corrigir fotos de bebê no perfil do facebook antes de exibir aos amigos.

Eu descobri que estava recuperada no momento em que não sabia dizer a um amigo se o creme de leite que usamos no molho tinha sido “normal” ou “light”. Doença é quando perdemos o direito de nos distrair.

Somos o velho-do-saco. Ele não está debaixo da cama, mas debaixo da mesa.

>>Assista esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 20/08/10


O Velho-do-saco da Gula


Isabelle Caro, em campanha para Nolita

Eu descobri que estava sofrendo de transtorno alimentar quando procurei na embalagem o quadradinho com as informações nutricionais. Até aí, tudo bem, mas a caixinha em questão era de sabonete.

A neurose é converter a composição de alimentos em bulas de remédios. Catar calorias em uma barra de sabão parece bizarro, mas não é uma atitude isolada e exclusiva.

Avançamos na fiscalização, além do controle do excesso. São atitudes fóbicas à comida mais do que preventivas. Atualmente, a normalidade é a restrição alimentar. Não se enxerga naturalidade feminina em relação ao alimento. Ela tem medo da comida, pânico de engordar. Ao sobrepeso, prefere cigarro, vomitar após a refeição ou exercícios físicos para punir a sobremesa. Cada vez mais corriqueiro como subir na balança do supermercado.

Talvez o surgimento do velho-do-saco da gula tenha sido na cozinha, quando a mãe fazia chantagem: oferecia o sorvete se a filha comesse o bife. O simples ato hipervalorizava o doce e inventava o salgado como castigo. Na época, entrávamos no terreno das proibições.

Nas festas de aniversário podemos comer “tudo o que queremos”. Essa tradição subentende a necessidade de polícia aos desejos em todos os outros dias. Não é à toa que temos tanto medo de atender ao apetite. A fome é o fantasma das adultas.

Personalidades adeptas aos movimentos anti-anorexia ainda são escassas, o debate é pequeno perto dos anúncios, dos outdoors, das atrizes ossudas, das modelos sem saboneteiras, das revistas enviesadas. Emagrecemos a verdade, desidratamos a inteligência, recebemos soro com imagens alteradas por photoshop. A moda é corrigir fotos de bebê no perfil do facebook antes de exibir aos amigos.

Eu descobri que estava recuperada no momento em que não sabia dizer a um amigo se o creme de leite que usamos no molho tinha sido “normal” ou “light”. Doença é quando perdemos o direito de nos distrair.

Somos o velho-do-saco. Ele não está debaixo da cama, mas debaixo da mesa.

>>Assista esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 20/08/10


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Boca de Siri [Crônica Falada no TalkRadio]


Raphaël Vicenzi's at his own www.mydeadpony.com


A palavra tem poderes mágicos. Freud chamou de Talking Cure. Quando ficamos magoados, dá-se o mesmo: é na contação do problema que achamos alívio – repetimos, repetimos e repetimos à exaustão o que aconteceu. Depois, passa.

Conhecemos esse poder da linguagem intuitivamente, é claro. Isso é uma capacidade latente desenvolvida desde a infância: aprendemos a pedir desculpas de verdade, a confessar nosso amor, a implorar ajuda. É uma ponte extraordinária entre a imaginação e a realidade.

Por causa disso que, antigamente, não se pronunciavam palavras como “câncer” ou “diabo”. Dizia-se, apenas, “aquela doença”ou “ o coisa-ruim”. Acreditavam que as pestilências restariam afastadas, impedidas de acontecer, uma vez que a voz não desse o contorno. Logo, o homem teria o poder de atrair ou repelir a sorte – um ganho secundário de inestimável valor. Uma ilusão tentadora e portanto mantida por décadas. Até hoje encontramos algumas senhoras que mantém o hábito.

A inquisição dos livros parece ter voltado à moda. Psicopedagogas desaconselham o uso do livro “Teresa, que Esperava as Uvas”, da ficcionista gaúcha Monique Revillion, nas escolas públicas. Onze mil unidades foram distribuídas para auxílio no ensino pelo governo. O argumento é simples: o conteúdo é inadequado e não trasmite bons valores aos jovens. Um dos contos da obra agraciada com dois Prêmios Açorianos, incluindo o de Livro do Ano, descreve um sequestro onde se passa um estupro. As cenas de violência estão presentes em "Os Primeiros que Chegaram", que narra do ponto de vista da criminosa. Há frases como "arriou as calças dela, levantou a blusa e comeu ela duas vezes" e "(Zonha, o criminoso) deu um tiro no olho dele. (...) Ele ficou lá meio pendurado, com um furo na cabeça."

Não há fundamento nestas declarações. Posicionar-se contra a divulgação da realidade nacional é uma atitude, no mínimo, ingênua. Uma crença improvável diante de toda a mídia disponível. É incongruente com a linguagem do aluno e, além disso, uma tentativa de fazer da cultura um lugar de religião.

Provocar a fala é a grande arte dos terapeutas. Provocar o raciocínio é a grande arte do educador. Inspirar o silêncio é trabalho do ditador.

Só o que faltava que, além da boca, os leitores sejam obrigados a estampar olhos de siri.


>> Ouça esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa TalkRadio
Na rádio Itapema FM
Apresentação Katia Suman [@katiasuman]
Para ouvir o TalkRadio do dia 17.08.2010 -
Clique aqui

Boca de Siri


Raphaël Vicenzi's at his own www.mydeadpony.com


A palavra tem poderes mágicos. Freud chamou de Talking Cure. Quando ficamos magoados, dá-se o mesmo: é na contação do problema que achamos alívio – repetimos, repetimos e repetimos à exaustão o que aconteceu. Depois, passa.

Conhecemos esse poder da linguagem intuitivamente, é claro. Isso é uma capacidade latente desenvolvida desde a infância: aprendemos a pedir desculpas de verdade, a confessar nosso amor, a implorar ajuda. É uma ponte extraordinária entre a imaginação e a realidade.

Por causa disso que, antigamente, não se pronunciavam palavras como “câncer” ou “diabo”. Dizia-se, apenas, “aquela doença”ou “ o coisa-ruim”. Acreditavam que as pestilências restariam afastadas, impedidas de acontecer, uma vez que a voz não desse o contorno. Logo, o homem teria o poder de atrair ou repelir a sorte – um ganho secundário de inestimável valor. Uma ilusão tentadora e portanto mantida por décadas. Até hoje encontramos algumas senhoras que mantém o hábito.

A inquisição dos livros parece ter voltado à moda. Psicopedagogas desaconselham o uso do livro “Teresa, que Esperava as Uvas”, da ficcionista gaúcha Monique Revillion, nas escolas públicas. Onze mil unidades foram distribuídas para auxílio no ensino pelo governo. O argumento é simples: o conteúdo é inadequado e não trasmite bons valores aos jovens. Um dos contos da obra agraciada com dois Prêmios Açorianos, incluindo o de Livro do Ano, descreve um sequestro onde se passa um estupro. As cenas de violência estão presentes em "Os Primeiros que Chegaram", que narra do ponto de vista da criminosa. Há frases como "arriou as calças dela, levantou a blusa e comeu ela duas vezes" e "(Zonha, o criminoso) deu um tiro no olho dele. (...) Ele ficou lá meio pendurado, com um furo na cabeça."

Não há fundamento nestas declarações. Posicionar-se contra a divulgação da realidade nacional é uma atitude, no mínimo, ingênua. Uma crença improvável diante de toda a mídia disponível. É incongruente com a linguagem do aluno e, além disso, uma tentativa de fazer da cultura um lugar de religião.

Provocar a fala é a grande arte dos terapeutas. Provocar o raciocínio é a grande arte do educador. Inspirar o silêncio é trabalho do ditador.

Só o que faltava que, além da boca, os leitores sejam obrigados a estampar olhos de siri.


>> Ouça esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa TalkRadio
Na rádio Itapema FM
Apresentação Katia Suman [@katiasuman]
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Boca de Siri


Raphaël Vicenzi's at his own www.mydeadpony.com


A palavra tem poderes mágicos. Freud chamou de Talking Cure. Quando ficamos magoados, dá-se o mesmo: é na contação do problema que achamos alívio – repetimos, repetimos e repetimos à exaustão o que aconteceu. Depois, passa.

Conhecemos esse poder da linguagem intuitivamente, é claro. Isso é uma capacidade latente desenvolvida desde a infância: aprendemos a pedir desculpas de verdade, a confessar nosso amor, a implorar ajuda. É uma ponte extraordinária entre a imaginação e a realidade.

Por causa disso que, antigamente, não se pronunciavam palavras como “câncer” ou “diabo”. Dizia-se, apenas, “aquela doença”ou “ o coisa-ruim”. Acreditavam que as pestilências restariam afastadas, impedidas de acontecer, uma vez que a voz não desse o contorno. Logo, o homem teria o poder de atrair ou repelir a sorte – um ganho secundário de inestimável valor. Uma ilusão tentadora e portanto mantida por décadas. Até hoje encontramos algumas senhoras que mantém o hábito.

A inquisição dos livros parece ter voltado à moda. Psicopedagogas desaconselham o uso do livro “Teresa, que Esperava as Uvas”, da ficcionista gaúcha Monique Revillion, nas escolas públicas. Onze mil unidades foram distribuídas para auxílio no ensino pelo governo. O argumento é simples: o conteúdo é inadequado e não trasmite bons valores aos jovens. Um dos contos da obra agraciada com dois Prêmios Açorianos, incluindo o de Livro do Ano, descreve um sequestro onde se passa um estupro. As cenas de violência estão presentes em "Os Primeiros que Chegaram", que narra do ponto de vista da criminosa. Há frases como "arriou as calças dela, levantou a blusa e comeu ela duas vezes" e "(Zonha, o criminoso) deu um tiro no olho dele. (...) Ele ficou lá meio pendurado, com um furo na cabeça."

Não há fundamento nestas declarações. Posicionar-se contra a divulgação da realidade nacional é uma atitude, no mínimo, ingênua. Uma crença improvável diante de toda a mídia disponível. É incongruente com a linguagem do aluno e, além disso, uma tentativa de fazer da cultura um lugar de religião.

Provocar a fala é a grande arte dos terapeutas. Provocar o raciocínio é a grande arte do educador. Inspirar o silêncio é trabalho do ditador.

Só o que faltava que, além da boca, os leitores sejam obrigados a estampar olhos de siri.


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Apresentação Katia Suman [@katiasuman]
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domingo, 15 de agosto de 2010

Corpo são, mente sã. [Crônica Falada no TalkRadio]

Beatriz Martin Vidal - at www.beatriz.carbonmade.com


Fabrício machucou as costas. Na hora de entrar no carro, de manhã, meu namorado girou o tronco sobre a cintura. Os músculos resultaram mais curtos que a ideia: puxaram a vértebra como uma roupa torcida. A dor lancinante veio na hora.

Depois de destrancar os ossos com o osteopata, de tratar o machucado com medicação, ele sobrecarregou os ombros. A vida sobre o teclado pode ser muito perigosa. Embora tenha grande preparo físico para mouse e digitação profissional, como do escritor, desabilitou as costas exigindo mais e mais do pescoço e dos membros superiores. Resultado: tendinites agudas. E dor.

Dois dias, mais tarde, durante o almoço, viu-se supreso:

- Não sei de onde apareceu esta irritação. Eu me sinto irado! Não parece que vem de mim. É uma sensação diferente. Minha paciência se esgotou. Vontade de arrebentar tudo.

- Sério que não faz ideia?, perguntei.

Era sério. Para ele, tudo o que aconteceu, o padecimento dos braços e dos tendões nada tinha que ver com seu nervosismo.

Foi com Fernando Pessoa que aprendi que “quando estou doente, estou doente, ideias e tudo. Não estou doente para outra coisa”. Ao deixar o cigarro, por exemplo, chorava noites a fio - jurava que não passava por abstinência. Com sinusite, quase acabei o namoro. Fui salva pelo antibiótico.

Temos um erro de crença: achamos que o pensamento vale mais que a sensação ou o sentimento. Mas é o corpo que decide. Ele interage primeiro, sinaliza, dita o ambiente, o cenário e o tom do raciocínio. É assim desde criança. Na infância ficamos chatos quando temos sono. Somos incapazes de perceber que aquele incômodo não passa de cansaço. Por mais que os pais indiquem a cama como solução ao choro, teimamos em ficar acordados.

O fenômeno da intolerância pela exaustão jamais termina. Ao contrário: fica especializado, ramificado e melhor distribuído. A regência do humor depende da afinação física.

Gripados, devemos contar com a constipação nasal e do discernimento; com a falta de forças nas pernas e no riso. Ao sofrermos contusões, precisamos esperar o baque no espírito.

Meu namorado reclamava da velhice antecipada. Não era. É infância malcurada.


>> Ouça esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa TalkRadio
Na rádio Itapema FM
Apresentação Katia Suman [@katiasuman]
Para ouvir o TalkRadio do dia 10.08.2010 -
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Corpo são, mente sã.

Beatriz Martin Vidal - at www.beatriz.carbonmade.com


Fabrício machucou as costas. Na hora de entrar no carro, de manhã, meu namorado girou o tronco sobre a cintura. Os músculos resultaram mais curtos que a ideia: puxaram a vértebra como uma roupa torcida. A dor lancinante veio na hora.

Depois de destrancar os ossos com o osteopata, de tratar o machucado com medicação, ele sobrecarregou os ombros. A vida sobre o teclado pode ser muito perigosa. Embora tenha grande preparo físico para mouse e digitação profissional, como do escritor, desabilitou as costas exigindo mais e mais do pescoço e dos membros superiores. Resultado: tendinites agudas. E dor.

Dois dias, mais tarde, durante o almoço, viu-se supreso:

- Não sei de onde apareceu esta irritação. Eu me sinto irado! Não parece que vem de mim. É uma sensação diferente. Minha paciência se esgotou. Vontade de arrebentar tudo.

- Sério que não faz ideia?, perguntei.

Era sério. Para ele, tudo o que aconteceu, o padecimento dos braços e dos tendões nada tinha que ver com seu nervosismo.

Foi com Fernando Pessoa que aprendi que “quando estou doente, estou doente, ideias e tudo. Não estou doente para outra coisa”. Ao deixar o cigarro, por exemplo, chorava noites a fio - jurava que não passava por abstinência. Com sinusite, quase acabei o namoro. Fui salva pelo antibiótico.

Temos um erro de crença: achamos que o pensamento vale mais que a sensação ou o sentimento. Mas é o corpo que decide. Ele interage primeiro, sinaliza, dita o ambiente, o cenário e o tom do raciocínio. É assim desde criança. Na infância ficamos chatos quando temos sono. Somos incapazes de perceber que aquele incômodo não passa de cansaço. Por mais que os pais indiquem a cama como solução ao choro, teimamos em ficar acordados.

O fenômeno da intolerância pela exaustão jamais termina. Ao contrário: fica especializado, ramificado e melhor distribuído. A regência do humor depende da afinação física.

Gripados, devemos contar com a constipação nasal e do discernimento; com a falta de forças nas pernas e no riso. Ao sofrermos contusões, precisamos esperar o baque no espírito.

Meu namorado reclamava da velhice antecipada. Não era. É infância malcurada.


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Crônica Falada é um quadro do programa TalkRadio
Na rádio Itapema FM
Apresentação Katia Suman [@katiasuman]
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Corpo são, mente sã.

Beatriz Martin Vidal - at www.beatriz.carbonmade.com


Fabrício machucou as costas. Na hora de entrar no carro, de manhã, meu namorado girou o tronco sobre a cintura. Os músculos resultaram mais curtos que a ideia: puxaram a vértebra como uma roupa torcida. A dor lancinante veio na hora.

Depois de destrancar os ossos com o osteopata, de tratar o machucado com medicação, ele sobrecarregou os ombros. A vida sobre o teclado pode ser muito perigosa. Embora tenha grande preparo físico para mouse e digitação profissional, como do escritor, desabilitou as costas exigindo mais e mais do pescoço e dos membros superiores. Resultado: tendinites agudas. E dor.

Dois dias, mais tarde, durante o almoço, viu-se supreso:

- Não sei de onde apareceu esta irritação. Eu me sinto irado! Não parece que vem de mim. É uma sensação diferente. Minha paciência se esgotou. Vontade de arrebentar tudo.

- Sério que não faz ideia?, perguntei.

Era sério. Para ele, tudo o que aconteceu, o padecimento dos braços e dos tendões nada tinha que ver com seu nervosismo.

Foi com Fernando Pessoa que aprendi que “quando estou doente, estou doente, ideias e tudo. Não estou doente para outra coisa”. Ao deixar o cigarro, por exemplo, chorava noites a fio - jurava que não passava por abstinência. Com sinusite, quase acabei o namoro. Fui salva pelo antibiótico.

Temos um erro de crença: achamos que o pensamento vale mais que a sensação ou o sentimento. Mas é o corpo que decide. Ele interage primeiro, sinaliza, dita o ambiente, o cenário e o tom do raciocínio. É assim desde criança. Na infância ficamos chatos quando temos sono. Somos incapazes de perceber que aquele incômodo não passa de cansaço. Por mais que os pais indiquem a cama como solução ao choro, teimamos em ficar acordados.

O fenômeno da intolerância pela exaustão jamais termina. Ao contrário: fica especializado, ramificado e melhor distribuído. A regência do humor depende da afinação física.

Gripados, devemos contar com a constipação nasal e do discernimento; com a falta de forças nas pernas e no riso. Ao sofrermos contusões, precisamos esperar o baque no espírito.

Meu namorado reclamava da velhice antecipada. Não era. É infância malcurada.


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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Perigos Fundamentais [Crônica Falada - 04.08.2010]


Quando pequenos, somos destemidos, não conhecemos os riscos, não projetamos consequências. É natural disparar pela calçada e pela rua, considerar que o meio fio não passa de um degrau.

Quando pequenos, os pais sofrem principalmente porque são as testemunhas dos perigos que nunca percebemos. Cada susto é transferido, o pavor é transmitido e somos livres para nos arriscar. Cada todler que corre estrada afora tem um pai horrorizado por trás. Cada menino e menina perdido na beira-mar tem um adulto desesperado fazendo telefone sem-fio entre os banhistas.

O comércio sabe disso. Naturalmente, desenvolveram um produto que promete acabar com este sofrimento: uma coleira. Isso mesmo, uma coleira para crianças. De fato, mais parece uma peiteira com guia nas costas. Tem velcros para ajuste ao tórax, à altura e ao tamanho do infante; tem em fomato de girafinha, de vaquinha e de sapo.

No início, a resposta é unânime:

- Que horror, uma coleira!

Asco diante da possibilidade. O que me intriga são os depoimentos paterno e maternos gerando curiosidade e interesse nos outros. A carência é sempre persuasiva. As conversas são facilmente encontradas na internet, especialmente em sites que promovem a venda. Dentre esses relatos, uma criança de três anos afirma que a mãe fica muito mais segura quando ele usa o dispositivo. Verdade absoluta: a coleira com guia serve aos pais em primeiro lugar.

Mães defendem argumentando que é útil em aeroportos, parques lotados, shows, eventos populosos, no supermercado, na praia. Mas, como não é prática comum, todos os olhares são dirigidos ao pequeno encoleirado, os vizinhos cochicham, alguns desaforam:

- Seu filho não é um cão.

De modo que é impossível que essa pessoa, ao crescer, não recorde de sua humilhação pública.

Em segundo lugar, se o adulto se responsabiliza inteiramente pela mobilidade infantil, nada impedirá este jovem de exigir o mesmo tipo de disponibilidade por várias décadas depois. Quando será hora de aprender a cair? Quando chegará o momento em que ele pode se cuidar sozinho?

A coleira representa um atestado de incompetência, a afirmação de que ele é incapaz de se deslocar sozinho. Essa informação, por si só é muito grave. A ilusão de que poderemos nos independizar ao caminhar é fundamental. A crença nisso será transformada na fé em nós mesmo.

Titubeando descobrimos o tamanho de nosso passo; pelo desequilíbrio encontraremos nosso centro. O processo de descoberta dos limites também ajuda na futura desconstrução dos mesmos. Segurança no andar pertence aos quadrúpedes.

Viver compreende os perigos no coração. Amar só é possível para quem os suporta.


>>Assista esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 04/08/10


Perigos Fundamentais



Quando pequenos, somos destemidos, não conhecemos os riscos, não projetamos consequências. É natural disparar pela calçada e pela rua, considerar que o meio fio não passa de um degrau.

Quando pequenos, os pais sofrem principalmente porque são as testemunhas dos perigos que nunca percebemos. Cada susto é transferido, o pavor é transmitido e somos livres para nos arriscar. Cada todler que corre estrada afora tem um pai horrorizado por trás. Cada menino e menina perdido na beira-mar tem um adulto desesperado fazendo telefone sem-fio entre os banhistas.

O comércio sabe disso. Naturalmente, desenvolveram um produto que promete acabar com este sofrimento: uma coleira. Isso mesmo, uma coleira para crianças. De fato, mais parece uma peiteira com guia nas costas. Tem velcros para ajuste ao tórax, à altura e ao tamanho do infante; tem em fomato de girafinha, de vaquinha e de sapo.

No início, a resposta é unânime:

- Que horror, uma coleira!

Asco diante da possibilidade. O que me intriga são os depoimentos paterno e maternos gerando curiosidade e interesse nos outros. A carência é sempre persuasiva. As conversas são facilmente encontradas na internet, especialmente em sites que promovem a venda. Dentre esses relatos, uma criança de três anos afirma que a mãe fica muito mais segura quando ele usa o dispositivo. Verdade absoluta: a coleira com guia serve aos pais em primeiro lugar.

Mães defendem argumentando que é útil em aeroportos, parques lotados, shows, eventos populosos, no supermercado, na praia. Mas, como não é prática comum, todos os olhares são dirigidos ao pequeno encoleirado, os vizinhos cochicham, alguns desaforam:

- Seu filho não é um cão.

De modo que é impossível que essa pessoa, ao crescer, não recorde de sua humilhação pública.

Em segundo lugar, se o adulto se responsabiliza inteiramente pela mobilidade infantil, nada impedirá este jovem de exigir o mesmo tipo de disponibilidade por várias décadas depois. Quando será hora de aprender a cair? Quando chegará o momento em que ele pode se cuidar sozinho?

A coleira representa um atestado de incompetência, a afirmação de que ele é incapaz de se deslocar sozinho. Essa informação, por si só é muito grave. A ilusão de que poderemos nos independizar ao caminhar é fundamental. A crença nisso será transformada na fé em nós mesmo.

Titubeando descobrimos o tamanho de nosso passo; pelo desequilíbrio encontraremos nosso centro. O processo de descoberta dos limites também ajuda na futura desconstrução dos mesmos. Segurança no andar pertence aos quadrúpedes.

Viver compreende os perigos no coração. Amar só é possível para quem os suporta.


>>Assista esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 04/08/10


Perigos Fundamentais



Quando pequenos, somos destemidos, não conhecemos os riscos, não projetamos consequências. É natural disparar pela calçada e pela rua, considerar que o meio fio não passa de um degrau.

Quando pequenos, os pais sofrem principalmente porque são as testemunhas dos perigos que nunca percebemos. Cada susto é transferido, o pavor é transmitido e somos livres para nos arriscar. Cada todler que corre estrada afora tem um pai horrorizado por trás. Cada menino e menina perdido na beira-mar tem um adulto desesperado fazendo telefone sem-fio entre os banhistas.

O comércio sabe disso. Naturalmente, desenvolveram um produto que promete acabar com este sofrimento: uma coleira. Isso mesmo, uma coleira para crianças. De fato, mais parece uma peiteira com guia nas costas. Tem velcros para ajuste ao tórax, à altura e ao tamanho do infante; tem em fomato de girafinha, de vaquinha e de sapo.

No início, a resposta é unânime:

- Que horror, uma coleira!

Asco diante da possibilidade. O que me intriga são os depoimentos paterno e maternos gerando curiosidade e interesse nos outros. A carência é sempre persuasiva. As conversas são facilmente encontradas na internet, especialmente em sites que promovem a venda. Dentre esses relatos, uma criança de três anos afirma que a mãe fica muito mais segura quando ele usa o dispositivo. Verdade absoluta: a coleira com guia serve aos pais em primeiro lugar.

Mães defendem argumentando que é útil em aeroportos, parques lotados, shows, eventos populosos, no supermercado, na praia. Mas, como não é prática comum, todos os olhares são dirigidos ao pequeno encoleirado, os vizinhos cochicham, alguns desaforam:

- Seu filho não é um cão.

De modo que é impossível que essa pessoa, ao crescer, não recorde de sua humilhação pública.

Em segundo lugar, se o adulto se responsabiliza inteiramente pela mobilidade infantil, nada impedirá este jovem de exigir o mesmo tipo de disponibilidade por várias décadas depois. Quando será hora de aprender a cair? Quando chegará o momento em que ele pode se cuidar sozinho?

A coleira representa um atestado de incompetência, a afirmação de que ele é incapaz de se deslocar sozinho. Essa informação, por si só é muito grave. A ilusão de que poderemos nos independizar ao caminhar é fundamental. A crença nisso será transformada na fé em nós mesmo.

Titubeando descobrimos o tamanho de nosso passo; pelo desequilíbrio encontraremos nosso centro. O processo de descoberta dos limites também ajuda na futura desconstrução dos mesmos. Segurança no andar pertence aos quadrúpedes.

Viver compreende os perigos no coração. Amar só é possível para quem os suporta.


>>Assista esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman
Crônica de @cinthyaverri exibida em 04/08/10


sábado, 7 de agosto de 2010

QUANDO A ARTE CONTEMPLA A CIÊNCIA

McEwan lança romance do clima

POR CINTHYA VERRI

Em romance a ser publicado pela Companhia das Letras,
McEwan costura enredos que exorcizam Freud, Spinoza e Nietzsche

“Solar” propõe um tratado sobre a culpa ao avaliar as decisões de um físico premiado pela Academia Sueca. Ian McEwan sobe os termômetros do mercado e inaugura a literatura sobre as alterações climáticas. A sátira amarga aborda um tema nevrálgico da atualidade – o aquecimento global.

Um dos grandes autores britânicos, Ian McEwan, dos sucessos Na Praia e Reparação, lança Solar. Ainda inédito no Brasil, debutou em março deste ano no Reino Unido e em Portugal. Apelidado de “Ian Macabro”, o romancista, que completou 62 anos no dia 21 de junho, assumiu o bom humor. Uma guinada em toda a trajetória marcada pela seriedade. Porém, quem pensa que graça é leveza, engana-se: serve apenas para tocar em pontos ainda mais obscuros.

Em entrevista ao The Daily Telegraph, antecipou sua preocupação com o novo romance: “Eu quero tentar e de modo útil esbater as diferenças entre os dois reinos (ciência e arte). Por um lado, existe a tradição científica. Os cientistas apoiam-se nos ombros de gigantes, como os escritores. Por outro lado, nas artes é que se fazem descobertas. Por isso, estou discutindo com, ou pelo menos brincando com a ideia de que a arte nunca avança”.

De fato, McEwan levou a cabo sua ambição. Traduziu com alta fidelidade conceitos da física e da mecânica quântica. Solar, que sairá no Brasil pela Companhia das Letras, assume condição híbrida, científico-artística. Ensina e entretém.

Acompanhamos o protagonista e anti-heroi Michael Beard e sua inquetação em sobrepor a genialidade profissional a problemas de excesso de peso e dilemas com mulheres.

A sabedoria ficcional de Ian McEwan pode matar de inveja qualquer estudioso de psicanálise e filosofia. Arruma enredos para exorcizar Freud, Garma, Winnicott, Spinoza e Nietzsche. Afinal, sua obsessão é como a culpa influencia destinos.

Em Reparação, apresentou-nos Briony. A menina escritora que, ao caluniar o namorado da irmã, ocasiona a morte dele na guerra. Com a atitude impulsiva e orgulhosa, a menina sente que arranjou o curso da tragédia, mas não desejava efetivamente que isso acontecesse. Depois do processo espelhado nas páginas, Briony responsabiliza-se por quem ela é, por agir daquele modo quando ainda era uma criança. Livra a culpa e permite-se viver. Ela concebeu, por meio da literatura, um mundo onde os dois, a irmã e o namorado, poderiam ver-se novamente e se amar. É a expressão legítima de quem compreende o acaso e sua imperiosidade.

Michael Beard, personagem central de Solar, exibe justamente o reverso. É sutil a diferença, porque, à primeira vista, se poderia concluir que é um homem sem remorso; que a própria ausência de culpa incita o desenvolvimento da personalidade sedutora e sociopática; capaz de usar qualquer um que cruzasse seu caminho para, sem escrúpulos, extrair vantagens para si. Desse modo se comporta em seus cinco casamentos e com todas as amantes; no trabalho, apropria-se das pesquisas de outro homem, incrimina um terceiro em um assassinato; atribui-se a autoria de relatos alheios para usar em suas palestras; premedita o uso de verbas e patenteia invenções que não foram suas.

Ao exame com mais cuidado, encontramos um homem arrogante e inábil, incapaz de viver bem. Gênio da física, Michael Beard escreveu um trabalho original que lhe rendeu o Prêmio Nobel. Partiu de Einstein e descobriu uma leitura inédita, curiosamente, sobre a interrelação dos elementos: a chamada conflação. Ela ocorre quando duas ou mais pessoas ou conceitos, que compartilhem algumas características em comum, tornam-se mistas, até aparentarem uma única identidade – as diferenças parecem perdidas.

Não é à toa: a ideia se assemelha ao borramento ético do personagem; à dificuldade de Beard em apreciar qualquer um de modo independente. Não soube nunca se colocar no lugar do outro, antecipar, sentir empatia ou mesmo cuidar de alguém. Principalmente, porque não sabia cuidar de si mesmo.

Freud, em seu famoso artigo Criminosos por um Sentimento de Culpa, ensinou que a atitude criminosa pode ser gerada pela culpa; o mesmo avalia Nietzche, quando fala dos Delinquentes Pálidos pela interlocução de Zaratustra. Mas foi Paulo Sérgio Rosa Guedes, nos ombros desses gigantes, quem descreveu a conduta com clareza e simplicidade. Em A Paixão – Caminhos e Descaminhos, anuncia o quanto o sentimento de culpa é um sistema, um artifício de ver e agir que instalamos sobre o raciocínio. Com ele nos mantemos em busca do poder; nós é que sabemos como deveria ser; quando nossas ideias valem mais que a realidade; e é possível acreditar que existe um deus e que somos melhores do que ele.

Neste ponto, reconhecemos que culpa e onipotência são a mesma coisa. Na epígrafe, John Updike é empregado para afinar o tom da narrativa nesse sentido: “Que lhe dá grande prazer, faz Rabbit sentir-se rico, contemplar o desperdício do mundo, saber que a terra também é mortal”.

Paulo Sérgio explica:

“1. O sentimento de culpa nunca é consequência de algo, e sim, causa.

2. O sentimento de culpa é sempre oposto, antagônico, à vivência de responsabilidade pessoal. São sentimentos auto-excludentes apesar de, na linguagem comum, serem vistos como sinônimos.

3. O sentimento de culpa é sempre um delírio de grandeza, uma ilusão de onipotência, uma convicção absoluta de ter poder.”

Nossa reação diante do devir, especialmente diante do que nos desagrada, é condenar a realidade. Sentimo-nos poderosos: julgamos o acaso e chamamos de sorte ou azar.

Michael Beard é o exemplo típico dessa inversão. Quando chega ao Polo Norte, por exemplo, conhece que é uma questão de acidente geográfico, mas assinala que está no topo do mundo e que todos, inclusive a ex-mulher, estão abaixo dele. Nessa oportunidade, quando passou a ser admirado pelos companheiros de viagem, não pôde evitar de achar graça em virar o queridinho do grupo, mas se considerou rebaixado por dar valor às pessoas. Ao examinar a condição humana, pondera que “é a melhor, não, é a mais interessante das raças, talvez não a melhor imaginável, mas a melhor disponível”. Confia que poderíamos ser salvos de nossa natureza através da implementação de leis e do respeito à elas. Michael alcança concluir, por um relance, que não superaria a humanidade dentro dele; medita que, na hora da morte, provavelmente estaria usando meias díspares, teria emails por responder, camisas ainda estariam sem botões, a luz do corredor permaneceria com defeito, restariam contas a pagar, amigos esperando por uma resposta e amantes por conquistar. “Esquecimento, a última palavra em organização, seria seu único consolo.”

É contra essa verdade que Michael se dedica e, evidentemente, fracassa.

É um livro trágico e cômico, igual a nossa existência.

Reparação e Solar apresentam a riqueza, a dimensão da força e o antagonismo da culpa e da responsabilidade. Por serem óbvios, tão difíceis de ver. Precisamos de todas as versões disponíveis. Prova de que a arte, de fato, não avança. Não tem sentido. É como a vida: um eterno retorno.

Médica, psicoterapeuta
cinthya@clinicaverri.com.br

Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Cultura, p. 6
07 de agosto de 2010 | N° 16420
Porto Alegre (RS)
Leia na Zero>> clique aqui

QUANDO A ARTE CONTEMPLA A CIÊNCIA

McEwan lança romance do clima

POR CINTHYA VERRI


Em romance a ser publicado pela Companhia das Letras,
McEwan costura enredos que exorcizam Freud, Spinoza e Nietzsche

“Solar” propõe um tratado sobre a culpa ao avaliar as decisões de um físico premiado pela Academia Sueca. Ian McEwan sobe os termômetros do mercado e inaugura a literatura sobre as alterações climáticas. A sátira amarga aborda um tema nevrálgico da atualidade – o aquecimento global.

Um dos grandes autores britânicos, Ian McEwan, dos sucessos Na Praia e Reparação, lança Solar. Ainda inédito no Brasil, debutou em março deste ano no Reino Unido e em Portugal. Apelidado de “Ian Macabro”, o romancista, que completou 62 anos no dia 21 de junho, assumiu o bom humor. Uma guinada em toda a trajetória marcada pela seriedade. Porém, quem pensa que graça é leveza, engana-se: serve apenas para tocar em pontos ainda mais obscuros.

Em entrevista ao The Daily Telegraph, antecipou sua preocupação com o novo romance: “Eu quero tentar e de modo útil esbater as diferenças entre os dois reinos (ciência e arte). Por um lado, existe a tradição científica. Os cientistas apoiam-se nos ombros de gigantes, como os escritores. Por outro lado, nas artes é que se fazem descobertas. Por isso, estou discutindo com, ou pelo menos brincando com a ideia de que a arte nunca avança”.

De fato, McEwan levou a cabo sua ambição. Traduziu com alta fidelidade conceitos da física e da mecânica quântica. Solar, que sairá no Brasil pela Companhia das Letras, assume condição híbrida, científico-artística. Ensina e entretém.

Acompanhamos o protagonista e anti-heroi Michael Beard e sua inquetação em sobrepor a genialidade profissional a problemas de excesso de peso e dilemas com mulheres.

A sabedoria ficcional de Ian McEwan pode matar de inveja qualquer estudioso de psicanálise e filosofia. Arruma enredos para exorcizar Freud, Garma, Winnicott, Spinoza e Nietzsche. Afinal, sua obsessão é como a culpa influencia destinos.

Em Reparação, apresentou-nos Briony. A menina escritora que, ao caluniar o namorado da irmã, ocasiona a morte dele na guerra. Com a atitude impulsiva e orgulhosa, a menina sente que arranjou o curso da tragédia, mas não desejava efetivamente que isso acontecesse. Depois do processo espelhado nas páginas, Briony responsabiliza-se por quem ela é, por agir daquele modo quando ainda era uma criança. Livra a culpa e permite-se viver. Ela concebeu, por meio da literatura, um mundo onde os dois, a irmã e o namorado, poderiam ver-se novamente e se amar. É a expressão legítima de quem compreende o acaso e sua imperiosidade.

Michael Beard, personagem central de Solar, exibe justamente o reverso. É sutil a diferença, porque, à primeira vista, se poderia concluir que é um homem sem remorso; que a própria ausência de culpa incita o desenvolvimento da personalidade sedutora e sociopática; capaz de usar qualquer um que cruzasse seu caminho para, sem escrúpulos, extrair vantagens para si. Desse modo se comporta em seus cinco casamentos e com todas as amantes; no trabalho, apropria-se das pesquisas de outro homem, incrimina um terceiro em um assassinato; atribui-se a autoria de relatos alheios para usar em suas palestras; premedita o uso de verbas e patenteia invenções que não foram suas.

Ao exame com mais cuidado, encontramos um homem arrogante e inábil, incapaz de viver bem. Gênio da física, Michael Beard escreveu um trabalho original que lhe rendeu o Prêmio Nobel. Partiu de Einstein e descobriu uma leitura inédita, curiosamente, sobre a interrelação dos elementos: a chamada conflação. Ela ocorre quando duas ou mais pessoas ou conceitos, que compartilhem algumas características em comum, tornam-se mistas, até aparentarem uma única identidade – as diferenças parecem perdidas.

Não é à toa: a ideia se assemelha ao borramento ético do personagem; à dificuldade de Beard em apreciar qualquer um de modo independente. Não soube nunca se colocar no lugar do outro, antecipar, sentir empatia ou mesmo cuidar de alguém. Principalmente, porque não sabia cuidar de si mesmo.

Freud, em seu famoso artigo Criminosos por um Sentimento de Culpa, ensinou que a atitude criminosa pode ser gerada pela culpa; o mesmo avalia Nietzche, quando fala dos Delinquentes Pálidos pela interlocução de Zaratustra. Mas foi Paulo Sérgio Rosa Guedes, nos ombros desses gigantes, quem descreveu a conduta com clareza e simplicidade. Em A Paixão – Caminhos e Descaminhos, anuncia o quanto o sentimento de culpa é um sistema, um artifício de ver e agir que instalamos sobre o raciocínio. Com ele nos mantemos em busca do poder; nós é que sabemos como deveria ser; quando nossas ideias valem mais que a realidade; e é possível acreditar que existe um deus e que somos melhores do que ele.

Neste ponto, reconhecemos que culpa e onipotência são a mesma coisa. Na epígrafe, John Updike é empregado para afinar o tom da narrativa nesse sentido: “Que lhe dá grande prazer, faz Rabbit sentir-se rico, contemplar o desperdício do mundo, saber que a terra também é mortal”.

Paulo Sérgio explica:

“1. O sentimento de culpa nunca é consequência de algo, e sim, causa.

2. O sentimento de culpa é sempre oposto, antagônico, à vivência de responsabilidade pessoal. São sentimentos auto-excludentes apesar de, na linguagem comum, serem vistos como sinônimos.

3. O sentimento de culpa é sempre um delírio de grandeza, uma ilusão de onipotência, uma convicção absoluta de ter poder.”

Nossa reação diante do devir, especialmente diante do que nos desagrada, é condenar a realidade. Sentimo-nos poderosos: julgamos o acaso e chamamos de sorte ou azar.

Michael Beard é o exemplo típico dessa inversão. Quando chega ao Polo Norte, por exemplo, conhece que é uma questão de acidente geográfico, mas assinala que está no topo do mundo e que todos, inclusive a ex-mulher, estão abaixo dele. Nessa oportunidade, quando passou a ser admirado pelos companheiros de viagem, não pôde evitar de achar graça em virar o queridinho do grupo, mas se considerou rebaixado por dar valor às pessoas. Ao examinar a condição humana, pondera que “é a melhor, não, é a mais interessante das raças, talvez não a melhor imaginável, mas a melhor disponível”. Confia que poderíamos ser salvos de nossa natureza através da implementação de leis e do respeito à elas. Michael alcança concluir, por um relance, que não superaria a humanidade dentro dele; medita que, na hora da morte, provavelmente estaria usando meias díspares, teria emails por responder, camisas ainda estariam sem botões, a luz do corredor permaneceria com defeito, restariam contas a pagar, amigos esperando por uma resposta e amantes por conquistar. “Esquecimento, a última palavra em organização, seria seu único consolo.”

É contra essa verdade que Michael se dedica e, evidentemente, fracassa.

É um livro trágico e cômico, igual a nossa existência.

Reparação e Solar apresentam a riqueza, a dimensão da força e o antagonismo da culpa e da responsabilidade. Por serem óbvios, tão difíceis de ver. Precisamos de todas as versões disponíveis. Prova de que a arte, de fato, não avança. Não tem sentido. É como a vida: um eterno retorno.

Médica, psicoterapeuta
cinthya@clinicaverri.com.br


Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Cultura, p. 6
07 de agosto de 2010 | N° 16420
Porto Alegre (RS)
Leia na Zero>> clique aqui

QUANDO A ARTE CONTEMPLA A CIÊNCIA

McEwan lança romance do clima

POR CINTHYA VERRI


Em romance a ser publicado pela Companhia das Letras,
McEwan costura enredos que exorcizam Freud, Spinoza e Nietzsche

“Solar” propõe um tratado sobre a culpa ao avaliar as decisões de um físico premiado pela Academia Sueca. Ian McEwan sobe os termômetros do mercado e inaugura a literatura sobre as alterações climáticas. A sátira amarga aborda um tema nevrálgico da atualidade – o aquecimento global.

Um dos grandes autores britânicos, Ian McEwan, dos sucessos Na Praia e Reparação, lança Solar. Ainda inédito no Brasil, debutou em março deste ano no Reino Unido e em Portugal. Apelidado de “Ian Macabro”, o romancista, que completou 62 anos no dia 21 de junho, assumiu o bom humor. Uma guinada em toda a trajetória marcada pela seriedade. Porém, quem pensa que graça é leveza, engana-se: serve apenas para tocar em pontos ainda mais obscuros.

Em entrevista ao The Daily Telegraph, antecipou sua preocupação com o novo romance: “Eu quero tentar e de modo útil esbater as diferenças entre os dois reinos (ciência e arte). Por um lado, existe a tradição científica. Os cientistas apoiam-se nos ombros de gigantes, como os escritores. Por outro lado, nas artes é que se fazem descobertas. Por isso, estou discutindo com, ou pelo menos brincando com a ideia de que a arte nunca avança”.

De fato, McEwan levou a cabo sua ambição. Traduziu com alta fidelidade conceitos da física e da mecânica quântica. Solar, que sairá no Brasil pela Companhia das Letras, assume condição híbrida, científico-artística. Ensina e entretém.

Acompanhamos o protagonista e anti-heroi Michael Beard e sua inquetação em sobrepor a genialidade profissional a problemas de excesso de peso e dilemas com mulheres.

A sabedoria ficcional de Ian McEwan pode matar de inveja qualquer estudioso de psicanálise e filosofia. Arruma enredos para exorcizar Freud, Garma, Winnicott, Spinoza e Nietzsche. Afinal, sua obsessão é como a culpa influencia destinos.

Em Reparação, apresentou-nos Briony. A menina escritora que, ao caluniar o namorado da irmã, ocasiona a morte dele na guerra. Com a atitude impulsiva e orgulhosa, a menina sente que arranjou o curso da tragédia, mas não desejava efetivamente que isso acontecesse. Depois do processo espelhado nas páginas, Briony responsabiliza-se por quem ela é, por agir daquele modo quando ainda era uma criança. Livra a culpa e permite-se viver. Ela concebeu, por meio da literatura, um mundo onde os dois, a irmã e o namorado, poderiam ver-se novamente e se amar. É a expressão legítima de quem compreende o acaso e sua imperiosidade.

Michael Beard, personagem central de Solar, exibe justamente o reverso. É sutil a diferença, porque, à primeira vista, se poderia concluir que é um homem sem remorso; que a própria ausência de culpa incita o desenvolvimento da personalidade sedutora e sociopática; capaz de usar qualquer um que cruzasse seu caminho para, sem escrúpulos, extrair vantagens para si. Desse modo se comporta em seus cinco casamentos e com todas as amantes; no trabalho, apropria-se das pesquisas de outro homem, incrimina um terceiro em um assassinato; atribui-se a autoria de relatos alheios para usar em suas palestras; premedita o uso de verbas e patenteia invenções que não foram suas.

Ao exame com mais cuidado, encontramos um homem arrogante e inábil, incapaz de viver bem. Gênio da física, Michael Beard escreveu um trabalho original que lhe rendeu o Prêmio Nobel. Partiu de Einstein e descobriu uma leitura inédita, curiosamente, sobre a interrelação dos elementos: a chamada conflação. Ela ocorre quando duas ou mais pessoas ou conceitos, que compartilhem algumas características em comum, tornam-se mistas, até aparentarem uma única identidade – as diferenças parecem perdidas.

Não é à toa: a ideia se assemelha ao borramento ético do personagem; à dificuldade de Beard em apreciar qualquer um de modo independente. Não soube nunca se colocar no lugar do outro, antecipar, sentir empatia ou mesmo cuidar de alguém. Principalmente, porque não sabia cuidar de si mesmo.

Freud, em seu famoso artigo Criminosos por um Sentimento de Culpa, ensinou que a atitude criminosa pode ser gerada pela culpa; o mesmo avalia Nietzche, quando fala dos Delinquentes Pálidos pela interlocução de Zaratustra. Mas foi Paulo Sérgio Rosa Guedes, nos ombros desses gigantes, quem descreveu a conduta com clareza e simplicidade. Em A Paixão – Caminhos e Descaminhos, anuncia o quanto o sentimento de culpa é um sistema, um artifício de ver e agir que instalamos sobre o raciocínio. Com ele nos mantemos em busca do poder; nós é que sabemos como deveria ser; quando nossas ideias valem mais que a realidade; e é possível acreditar que existe um deus e que somos melhores do que ele.

Neste ponto, reconhecemos que culpa e onipotência são a mesma coisa. Na epígrafe, John Updike é empregado para afinar o tom da narrativa nesse sentido: “Que lhe dá grande prazer, faz Rabbit sentir-se rico, contemplar o desperdício do mundo, saber que a terra também é mortal”.

Paulo Sérgio explica:

“1. O sentimento de culpa nunca é consequência de algo, e sim, causa.

2. O sentimento de culpa é sempre oposto, antagônico, à vivência de responsabilidade pessoal. São sentimentos auto-excludentes apesar de, na linguagem comum, serem vistos como sinônimos.

3. O sentimento de culpa é sempre um delírio de grandeza, uma ilusão de onipotência, uma convicção absoluta de ter poder.”

Nossa reação diante do devir, especialmente diante do que nos desagrada, é condenar a realidade. Sentimo-nos poderosos: julgamos o acaso e chamamos de sorte ou azar.

Michael Beard é o exemplo típico dessa inversão. Quando chega ao Polo Norte, por exemplo, conhece que é uma questão de acidente geográfico, mas assinala que está no topo do mundo e que todos, inclusive a ex-mulher, estão abaixo dele. Nessa oportunidade, quando passou a ser admirado pelos companheiros de viagem, não pôde evitar de achar graça em virar o queridinho do grupo, mas se considerou rebaixado por dar valor às pessoas. Ao examinar a condição humana, pondera que “é a melhor, não, é a mais interessante das raças, talvez não a melhor imaginável, mas a melhor disponível”. Confia que poderíamos ser salvos de nossa natureza através da implementação de leis e do respeito à elas. Michael alcança concluir, por um relance, que não superaria a humanidade dentro dele; medita que, na hora da morte, provavelmente estaria usando meias díspares, teria emails por responder, camisas ainda estariam sem botões, a luz do corredor permaneceria com defeito, restariam contas a pagar, amigos esperando por uma resposta e amantes por conquistar. “Esquecimento, a última palavra em organização, seria seu único consolo.”

É contra essa verdade que Michael se dedica e, evidentemente, fracassa.

É um livro trágico e cômico, igual a nossa existência.

Reparação e Solar apresentam a riqueza, a dimensão da força e o antagonismo da culpa e da responsabilidade. Por serem óbvios, tão difíceis de ver. Precisamos de todas as versões disponíveis. Prova de que a arte, de fato, não avança. Não tem sentido. É como a vida: um eterno retorno.

Médica, psicoterapeuta
cinthya@clinicaverri.com.br


Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Cultura, p. 6
07 de agosto de 2010 | N° 16420
Porto Alegre (RS)
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