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sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

A Secreta Voz

Ouço a voz,
a secreta voz.
Por trás dos ruídos da televisão e do microondas e das ondas eletroestáticas e das vozes da rua e da família no vizinho e dos carros e motos e ônibus e caminhões e camionetas com mudanças e das mudanças e dos móveis todos arrastando e das faxineiras com seus rádios na AM e dos homens com seus rádios na AM e das bicicletas e dos jornaleiros e da água da chuva e do vento e da água dos banhos e dos chuveiros e das louças sendo lavadas e das comidas sendo comidas e dos jogos no estádio ao longe e das torcidas e das brigas distorcidas e da estrada que zune e dos faróis trocando as cores e das árvores caindo e do telefone tocando e do som de dentro dele e uma infinidade de sons que se somam e se confluem numa onda espiralada que vai afunilando-se pelo meu canal auditivo e vibrando o tambor que conta pro cérebro o que passa lá fora.
Mas ouço a voz,
a secreta voz.
Que me conta a minha verdade; e se posso filtrar tudo lá fora (lá fora nos sons que nem sei, lá fora no céu dos pensamentos) eu consigo ouvir.
Meu desejos sussurrados e secretos - esses que não conto pra ninguém. Esses que sou eu mais do que tudo que aparento, do que digo. São os não ditos - nem benditos, nem malditos.
Ouço a voz, a secreta voz, que sussurra: vai.
Como uma brisa rasteira e do sul, vento terral, baixo, úmido. Vai - ela diz. Com o 'a' bem vocalizado, espichado e comprido: vaaai... Com reticências ao fim. Depois, seguem-se uma infinidade de pedidos, todos muito válidos e vivos. E todos os quereres vão-se interpondo como num bordado ou num crochê. Vai...
Essa é a secreta voz. Cantou-a Vinícius. Personificou-a Vinícius. Viveu-a Vinícius. E Carlos - que foi ser gauche na vida.
E eu, agora que a ouço, compreendo. Não há como não me atender. O sussuro é doce.
E Vou.

A Secreta Voz

Ouço a voz,
a secreta voz.
Por trás dos ruídos da televisão e do microondas e das ondas eletroestáticas e das vozes da rua e da família no vizinho e dos carros e motos e ônibus e caminhões e camionetas com mudanças e das mudanças e dos móveis todos arrastando e das faxineiras com seus rádios na AM e dos homens com seus rádios na AM e das bicicletas e dos jornaleiros e da água da chuva e do vento e da água dos banhos e dos chuveiros e das louças sendo lavadas e das comidas sendo comidas e dos jogos no estádio ao longe e das torcidas e das brigas distorcidas e da estrada que zune e dos faróis trocando as cores e das árvores caindo e do telefone tocando e do som de dentro dele e uma infinidade de sons que se somam e se confluem numa onda espiralada que vai afunilando-se pelo meu canal auditivo e vibrando o tambor que conta pro cérebro o que passa lá fora.
Mas ouço a voz,
a secreta voz.
Que me conta a minha verdade; e se posso filtrar tudo lá fora (lá fora nos sons que nem sei, lá fora no céu dos pensamentos) eu consigo ouvir.
Meu desejos sussurrados e secretos - esses que não conto pra ninguém. Esses que sou eu mais do que tudo que aparento, do que digo. São os não ditos - nem benditos, nem malditos.
Ouço a voz, a secreta voz, que sussurra: vai.
Como uma brisa rasteira e do sul, vento terral, baixo, úmido. Vai - ela diz. Com o 'a' bem vocalizado, espichado e comprido: vaaai... Com reticências ao fim. Depois, seguem-se uma infinidade de pedidos, todos muito válidos e vivos. E todos os quereres vão-se interpondo como num bordado ou num crochê. Vai...
Essa é a secreta voz. Cantou-a Vinícius. Personificou-a Vinícius. Viveu-a Vinícius. E Carlos - que foi ser gauche na vida.
E eu, agora que a ouço, compreendo. Não há como não me atender. O sussuro é doce.
E Vou.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Construir uma Casa


Não sei ainda como se faz. Ainda. Mas por dentro de mim, já está. Com seus pisos de tijolos e mosaicos de cerâmica. Com seus vértices, com seus telhados, com seus espaços de estar. A casa ainda não está pronta fora - mas eu estou pronta pra ela: pra casa no morro, de paredes feito braços amorosos a receber-nos e aos que convidarmos. Tudo perfeito. Seja qual for o processo, será perfeito - porque estou pronta pra ele. Todo o risco de qualquer criação. Todo riso, também. Sou sorrisos de planejamento. Ah, como estou pronta pra ela... Preparei-me toda, todo esse tempo, pra receber a casa. Vou recebê-la - também eu com braços de aconchegar. Canto-a desde muito pequena, essa casa de colher pimenta e sal com a mão. Venho cantando na estrada, pra casa agora eu vou. E não será nela que enfim serei feliz. Sou, agora, mais que felicidade. Sou o riso da coragem que me dá, do amor pela terra, do amor em mim. Sou hoje, a estrada onde cantarolo, indo pra casa e pra sua vista de imensidão.

Construir uma Casa


Não sei ainda como se faz. Ainda. Mas por dentro de mim, já está. Com seus pisos de tijolos e mosaicos de cerâmica. Com seus vértices, com seus telhados, com seus espaços de estar. A casa ainda não está pronta fora - mas eu estou pronta pra ela: pra casa no morro, de paredes feito braços amorosos a receber-nos e aos que convidarmos. Tudo perfeito. Seja qual for o processo, será perfeito - porque estou pronta pra ele. Todo o risco de qualquer criação. Todo riso, também. Sou sorrisos de planejamento. Ah, como estou pronta pra ela... Preparei-me toda, todo esse tempo, pra receber a casa. Vou recebê-la - também eu com braços de aconchegar. Canto-a desde muito pequena, essa casa de colher pimenta e sal com a mão. Venho cantando na estrada, pra casa agora eu vou. E não será nela que enfim serei feliz. Sou, agora, mais que felicidade. Sou o riso da coragem que me dá, do amor pela terra, do amor em mim. Sou hoje, a estrada onde cantarolo, indo pra casa e pra sua vista de imensidão.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Poesia (Leitura e além)

Hoje encontrei um arquivo chamado ‘poesia’.
Assim - com pê minúsculo. Abri o arquivo. Dizia no topo: poesia (Somente leitura).
O papel estava em branco.
Pois é...
Poesia: com letra minúscula, para leitura somente: é uma tela em branco.
Isso não existe. Não é poesia.
Poesia é para deitar, para coçar, para transar, para comer, para beber, para verter, para ter, para destemer, para sonhar, para mexer, para crescer, para o que quer que ela seja. Viver é poesia.

Poesia somente leitura não existe. Definitivamente.

Poesia (Leitura e além)

Hoje encontrei um arquivo chamado ‘poesia’.
Assim - com pê minúsculo. Abri o arquivo. Dizia no topo: poesia (Somente leitura).
O papel estava em branco.
Pois é...
Poesia: com letra minúscula, para leitura somente: é uma tela em branco.
Isso não existe. Não é poesia.
Poesia é para deitar, para coçar, para transar, para comer, para beber, para verter, para ter, para destemer, para sonhar, para mexer, para crescer, para o que quer que ela seja. Viver é poesia.

Poesia somente leitura não existe. Definitivamente.

Boca Viva

A boca viva que tenho é voraz. Sedenta de palavras a serem ditas. E não me calo...
Silencio-me, mas não me calo.
Silenciar, significa ver-me sem palavras a dizer. Calar, significa entrouxar as palavras e devolvê-las ao mar.
Hoje, com mais silêncio presente em mim, vejo-me mais silenciosa. Há muito menos a ser dito. Mas não, ainda não me calo.

Boca Viva

A boca viva que tenho é voraz. Sedenta de palavras a serem ditas. E não me calo...
Silencio-me, mas não me calo.
Silenciar, significa ver-me sem palavras a dizer. Calar, significa entrouxar as palavras e devolvê-las ao mar.
Hoje, com mais silêncio presente em mim, vejo-me mais silenciosa. Há muito menos a ser dito. Mas não, ainda não me calo.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Parreira


(Oscar Capeche - Bodegón con Uvas)
Minhas irmãs e eu.
Colocamo-nos em uma parreira. Penduramos os nossos cachos de suculentas uvas de palavras. As palavras são envolvidas em delicadas cascas transparentes, prontas a serem sorvidas, com ou sem sementes.
Costumamos temer engolir as sementes das uvas. É porque as sementes, quando engolidas junto com o doce da polpa, na hora de serem digeridas, podem causar inflamação. Essa inflamação será na ponta inútil e, por isso mesmo, misteriosa do intestino: o apêndice. O apêndice também tem um pouco o formato de um cachinho. Um cachinho de intestino. Que inflamado, dói. Em geral, precisa de operação para retirada.
As sementes das nossas uvas não vão pro intestino. Vão ao coração. Também ele pode ficar um pouco inflamado. Mas se inflamar, será de paixão. O coração pega fogo às vezes. Nossas uvas de palavras aos cachos, têm sementes flamejantes. Delas nascem pequenos calores do bem. Esses focos calorentos chamam a atenção do portador pra região inflamada. Será preciso fazer algo a respeito. Em geral, a operação necessária não será de retirada. O foco que inflama precisará de cuidados - que pode resultar em reavivamento de partes mortas.
Nossos cachos têm forma de púbis, de tripa, de balão, de árvore. São como nuvens pras quais se imagina uma forma e um nome.
São beijos de fruta, de trato amoroso e consumo indicado em abundância.

Parreira


(Oscar Capeche - Bodegón con Uvas)
Minhas irmãs e eu.
Colocamo-nos em uma parreira. Penduramos os nossos cachos de suculentas uvas de palavras. As palavras são envolvidas em delicadas cascas transparentes, prontas a serem sorvidas, com ou sem sementes.
Costumamos temer engolir as sementes das uvas. É porque as sementes, quando engolidas junto com o doce da polpa, na hora de serem digeridas, podem causar inflamação. Essa inflamação será na ponta inútil e, por isso mesmo, misteriosa do intestino: o apêndice. O apêndice também tem um pouco o formato de um cachinho. Um cachinho de intestino. Que inflamado, dói. Em geral, precisa de operação para retirada.
As sementes das nossas uvas não vão pro intestino. Vão ao coração. Também ele pode ficar um pouco inflamado. Mas se inflamar, será de paixão. O coração pega fogo às vezes. Nossas uvas de palavras aos cachos, têm sementes flamejantes. Delas nascem pequenos calores do bem. Esses focos calorentos chamam a atenção do portador pra região inflamada. Será preciso fazer algo a respeito. Em geral, a operação necessária não será de retirada. O foco que inflama precisará de cuidados - que pode resultar em reavivamento de partes mortas.
Nossos cachos têm forma de púbis, de tripa, de balão, de árvore. São como nuvens pras quais se imagina uma forma e um nome.
São beijos de fruta, de trato amoroso e consumo indicado em abundância.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Descabimento


E tu...
Apolo cibernético
A exibir-se pra mim
Eu, a fã.
Eu, o afã
Arfando todo
Renascendo
E o desejo
(ah, o desejo...)
A alucinar-me
Lupificar-me
(foi a lua?)
Foi o sol
O sol
Apolíneo-dionisíaco
Que vi em ti
Através de ti
Tua imagem
Desnuda
De carne e sangue e veias
E alma
É sol de meu desejo
A iluminar todo meu dia
A repousar-me os olhos
De toda a feiúra do mundo
A imagem muda e móvel
Fez-se feroz desalinho
Aninhando-se
Carente de mim
E me vendo
E me tendo
Toda
Vivos, sem dúvida
Sem pensar
Embalando-nos
Sou a manhã cheia de sono
A tarde morna de maçã
A noite negra enluarada
Refletindo o sol
Reflito
Sobre tua pele lisa e macia
E clara
E salivo
Como quem deseja o doce
Como quem precisa
E te preciso, amor meu
E que bem é precisar-te
Necessária saudade
Prescindível saudade
E ter-te
Mesmo que de frente
Pela janela
Mesmo que feito de luz
Literalmente
É gozar em azáfama
De todos os eus
Que somos

(é descaber-se).

Descabimento


E tu...
Apolo cibernético
A exibir-se pra mim
Eu, a fã.
Eu, o afã
Arfando todo
Renascendo
E o desejo
(ah, o desejo...)
A alucinar-me
Lupificar-me
(foi a lua?)
Foi o sol
O sol
Apolíneo-dionisíaco
Que vi em ti
Através de ti
Tua imagem
Desnuda
De carne e sangue e veias
E alma
É sol de meu desejo
A iluminar todo meu dia
A repousar-me os olhos
De toda a feiúra do mundo
A imagem muda e móvel
Fez-se feroz desalinho
Aninhando-se
Carente de mim
E me vendo
E me tendo
Toda
Vivos, sem dúvida
Sem pensar
Embalando-nos
Sou a manhã cheia de sono
A tarde morna de maçã
A noite negra enluarada
Refletindo o sol
Reflito
Sobre tua pele lisa e macia
E clara
E salivo
Como quem deseja o doce
Como quem precisa
E te preciso, amor meu
E que bem é precisar-te
Necessária saudade
Prescindível saudade
E ter-te
Mesmo que de frente
Pela janela
Mesmo que feito de luz
Literalmente
É gozar em azáfama
De todos os eus
Que somos

(é descaber-se).

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Do Esquecimento



Conversávamos na sala, destituída de sofá, estante e livros. As mudanças deixam as sombras do que já se foi. Fica o que ainda não se tem. Famoso Porvir. Um envelope vazio - cheio de possibilidades. A sala, eu e você. Enfim, estávamos conversando sobre a capacidade de esquecer.
- Tu acha que esquecer é bom?
Não. Não foi assim a pergunta. Inclusive, já esqueci como foi. Vou dizer como ficou em mim.

Maravilhosa capacidade
De esquecer
Dom tão amigo
Meu e teu
E tu, o bem-vindo

Um esquecedor
Das desimportâncias
A meu lado
Ter-te
E mais a frente
Ver-nos
Toda a gente em nós
Que se apaixonou
Dom suavidade

De ser junto
No mar de carinhos
Que rufla e ronrona
No peito nosso
De se dar ao agora.

Foi assim que ficou em mim. O resto, já esqueci.

Do Esquecimento



Conversávamos na sala, destituída de sofá, estante e livros. As mudanças deixam as sombras do que já se foi. Fica o que ainda não se tem. Famoso Porvir. Um envelope vazio - cheio de possibilidades. A sala, eu e você. Enfim, estávamos conversando sobre a capacidade de esquecer.
- Tu acha que esquecer é bom?
Não. Não foi assim a pergunta. Inclusive, já esqueci como foi. Vou dizer como ficou em mim.

Maravilhosa capacidade
De esquecer
Dom tão amigo
Meu e teu
E tu, o bem-vindo

Um esquecedor
Das desimportâncias
A meu lado
Ter-te
E mais a frente
Ver-nos
Toda a gente em nós
Que se apaixonou
Dom suavidade

De ser junto
No mar de carinhos
Que rufla e ronrona
No peito nosso
De se dar ao agora.

Foi assim que ficou em mim. O resto, já esqueci.

O Grito I



(Fors Ferro, Mujer Bien parada)

O telefone me grita
Mas não quero
Não quero atender
Quem quer que seja
Mesmo que seja você
Não quero
Especialmente se lá dentro dele
Estiver sua voz

O telefone me grita
(Griiiiiita, Griiiiiiita)
Como eu gritava
Ainda agora, com Bethânia
Gritávamos eu, Bethânia e o telefone

Teus beijos nunca mais

Ah! Como eu queria a certeza
De que nunca mais

A certeza
Certeza como chuva quase caindo
Como carro quase partindo
Como sol quase nascido
Estrela que quasímoda

(E nem nada disso é certeza)

Uma certeza
Dessas que se inventa que é certo
Que se está fazendo o certo

Mesmo que desejo arda tanto
Mais que sol sagarana
Que ferida nua ao sal

Me arde o desejo
E sofro a alegria
De tanto sentir

De tanto amar
De gostar demais
De ter coração tão destroçado
Velho
Apertado
Coração
Que diz que tudo está
Ainda tão lá dentro
Que se espremem as coisas todas

Em tão pouco tempo
(por tão pouco temo)
Que será do resto
Que medo me dá
De fixar-me assim
Só de medo

Pra que não exploda
E o nó não aperte ainda mais
O nó do peito

De tanto amar

O Grito I



(Fors Ferro, Mujer Bien parada)

O telefone me grita
Mas não quero
Não quero atender
Quem quer que seja
Mesmo que seja você
Não quero
Especialmente se lá dentro dele
Estiver sua voz

O telefone me grita
(Griiiiiita, Griiiiiiita)
Como eu gritava
Ainda agora, com Bethânia
Gritávamos eu, Bethânia e o telefone

Teus beijos nunca mais

Ah! Como eu queria a certeza
De que nunca mais

A certeza
Certeza como chuva quase caindo
Como carro quase partindo
Como sol quase nascido
Estrela que quasímoda

(E nem nada disso é certeza)

Uma certeza
Dessas que se inventa que é certo
Que se está fazendo o certo

Mesmo que desejo arda tanto
Mais que sol sagarana
Que ferida nua ao sal

Me arde o desejo
E sofro a alegria
De tanto sentir

De tanto amar
De gostar demais
De ter coração tão destroçado
Velho
Apertado
Coração
Que diz que tudo está
Ainda tão lá dentro
Que se espremem as coisas todas

Em tão pouco tempo
(por tão pouco temo)
Que será do resto
Que medo me dá
De fixar-me assim
Só de medo

Pra que não exploda
E o nó não aperte ainda mais
O nó do peito

De tanto amar

O Grito II


(Fors ferro, Mujer Borracha)

Eu
Rasgada por dentro
Das tuas unhas nas mucosas
Sangro
Que me unhas por dentro
Pra sair
E me abrir toda, toda
Me abrir as peles e as carnes
As vísceras
E me extinguir desse corpo
Que jaz com tão menos sentido
(Sem sentir o teu)

Dizer
Que medo

E derrubar o frágil encalço
Que me aparenta ortostática

E a dor é tanta, mas tanta
Que urro
Que me socorro
Desatinada de mim
Em franca abstinência
De peito e ventre


Dói-me tudo tanto
Que queria fazer-te o mesmo
Te judiar todo
Eviscerar-te todo
E descampar-te
Empobrecer-te do riso e do gozo
Secar-te todo com mandinga
Da falta tanta que sinto
Da madeira de teu cheiro
De tua boca rosa
Minha rosa flor
De espinhos encruados na alma
Com o desejo todo
Que arde latente
Que late ardente
Em mim

Que era tua
(Teus beijos nunca mais)

O Grito II


(Fors ferro, Mujer Borracha)

Eu
Rasgada por dentro
Das tuas unhas nas mucosas
Sangro
Que me unhas por dentro
Pra sair
E me abrir toda, toda
Me abrir as peles e as carnes
As vísceras
E me extinguir desse corpo
Que jaz com tão menos sentido
(Sem sentir o teu)

Dizer
Que medo

E derrubar o frágil encalço
Que me aparenta ortostática

E a dor é tanta, mas tanta
Que urro
Que me socorro
Desatinada de mim
Em franca abstinência
De peito e ventre


Dói-me tudo tanto
Que queria fazer-te o mesmo
Te judiar todo
Eviscerar-te todo
E descampar-te
Empobrecer-te do riso e do gozo
Secar-te todo com mandinga
Da falta tanta que sinto
Da madeira de teu cheiro
De tua boca rosa
Minha rosa flor
De espinhos encruados na alma
Com o desejo todo
Que arde latente
Que late ardente
Em mim

Que era tua
(Teus beijos nunca mais)

O Grito III


(Fors Ferro - Las Tres Lunas)

Escrevo tudo
Às golfadas
Depois de tanta ânsia
Tanto ensaio
Saiu tudo assim
Flamejando como a paixão
Imortal e caminhante
Percorrendo-me
Meu percurso
Atrás do que vem detrás

E é atropelo
As costas tão doídas
Os braços
As pernas
De tudo que não alcanço

Na perna
Vai-me a paixão agarrada
Como um bicho desesperado

A noite
Vai-me desengrenagem
Como pesadelo sem dormir
Pintado o negro redundante

Na jaula doirada
Com ninho e artifício
Fictício
Fictício
Canta o passarinho na gaiola

Vejo pouca graça nisso
Mas vai passar

Essa é a certeza
Que eu procurava

Vai passar
Mesmo que passe quando eu passar
Mas vai passar

Serei secreta desejante
Do desejo mais secreto
A liberdade Livre de querer

O Grito III


(Fors Ferro - Las Tres Lunas)

Escrevo tudo
Às golfadas
Depois de tanta ânsia
Tanto ensaio
Saiu tudo assim
Flamejando como a paixão
Imortal e caminhante
Percorrendo-me
Meu percurso
Atrás do que vem detrás

E é atropelo
As costas tão doídas
Os braços
As pernas
De tudo que não alcanço

Na perna
Vai-me a paixão agarrada
Como um bicho desesperado

A noite
Vai-me desengrenagem
Como pesadelo sem dormir
Pintado o negro redundante

Na jaula doirada
Com ninho e artifício
Fictício
Fictício
Canta o passarinho na gaiola

Vejo pouca graça nisso
Mas vai passar

Essa é a certeza
Que eu procurava

Vai passar
Mesmo que passe quando eu passar
Mas vai passar

Serei secreta desejante
Do desejo mais secreto
A liberdade Livre de querer

domingo, 14 de janeiro de 2007

Le Parfum de la Mort


(07.11.06) (obra de JOSÉ ALBERTO FORS FERRO - Desnudo, 2002)


Vim aqui nadar na piscina dos pensamentos impensáveis. Esses que só aparecem no papel de ler depois: recados de mim pra mim.
Quando me telefono e não me atendo é assim: preciso deixar recados.
Saí, fui dar uma volta, volto logo.
Talvez me encontre num vinho espumante... Ótimo, com sua espuma de bolhas. É um ofurô para a alma.
Quem dera pudesse mandar um táxi te buscar, agora que não estás.
Também tu saíste, homem.
Sei porque falo contigo e não respondes. Ficas desaparecido com toda essa culpa. Atraente culpa essa que faz pensar que és um homem muito importante: mais importante que todos os fatos reais implicados e equacionando para qualquer resultado - que pesas mais que a realidade em si.
Entretanto (sabe gente, é tanta coisa pra gente saber...), é difícil que nos vejamos tão fatalmente reais.
Morte-vida-vida-morte.
Uma vez, teve uma mulher caquética que fui atender no plantão. No instante em que toquei seu pulso, eu o senti filigramando. E parou.
- Parou? – pensei.
Tinha parado. Fui tentar ressucitar o corpo de ossos da mulher. Que desagradável. Morreu, enfim. Melhor do que jazer com tubos e escaras numa cama, na minha opinião.
Tinha cheiro de morte no quarto. Cheiro de morte é o cheiro de água parada em pia entupida, sabe? Cheiro de água parada é cheiro de água parada, mesmo quando a água parada é a do corpo. Isso é cheiro de morte e será meu cheiro quando morrer. Eu mesma não vou sentir; melhor assim.
Mas esse é cheiro de morte recente. Depois fica outro cheiro. Vi uma exumação, certa vez. Uma mulher gorda (gorda de cinema): gorda mesmo. Abriram o caixão: as flores secas, tudo horrível. Lavaram o corpo inchado ademais de obeso. Tanto faz se somos gordos ou magros: depois viramos um balão. Lavaram as larvas com uma mangueira. Elas são iguais as que dão na geladeira quando cortam a luz da casa e passa um tempo. Larvinhas de Pasteur. As larvinhas branquinhas. Abriram a mulher e saiu o cheiro da coliquação: o pulmão estava uma gosma verde-enegrecida. Isso e o cheiro.

E o cheiro ficou: mesmo depois do banho demorado que tomei, mesmo depois de ter lavado as narinas até as coanas (aquela parte bem lá de trás das narinas). Quando liguei o secador de cabelos, o jato de vento quente passado em frente ao meu nariz encaminhou a réstia ao endereço do cérebro. Uma vez lido o cheiro, revi a gorda arreganhada na mesa de necrópsia. Ceninha patética. Arrepios.
O balão que viramos é dos gases que se criam. São as bactérias que fazem... Elas vivem mais que nós. O corpo já morto e a natureza não pára. Depois vamos liquefazendo. Depois as larvinhas. As unhas ainda crescem. E os cabelos também.
O primeiro cadáver que dissequei tinha as unhas cor-de-rosa. Rosa pink. Talvez o pink fosse do formol. Mas podíamos ver que as unhas tinham crescido porque o esmalte estava da metade unha para a frente.
Depois dissequei o corpo de um homem: foi ótimo. Sempre tinha querido ver como era um mamilo por baixo da pele. O mamilo é quase nada: é uma tampinha. Quando a pele, descolando do músculo, é levantada não tem nada por baixo: o mamilo fica na pele que se destampa. É uma tampinha. Mas o mamilo é uma coisa gostosa de lamber.
De um orgasmo, resta aquele silêncio tão grande, tão grande... Sempre vejo que morri. Penso se quando eu morrer vai ser assim por mais tempo.
Parece que o que busco é isso: esse silêncio mortal de gozar. Qualquer coisa que proporcione isso é o melhor da vida. Escrever, por exemplo. A folha em branco me enche de tesão e desafio. O que ela quer comigo? Espumante, ofurô, tudo dá tesão. Os mamilos e a morte, também. Só a água parada não dá tesão. Exceto pras larvinhas.
Por isso gosto do mar. O mar não tem preguiça de remexer sua água. Por isso é que ele sobrevive mais que todos os seres vivos - mesmo que os seres tenham vindo dele. O mar é movimento.

A palavra é movimento. No momento em que passa a existir, ela é movimento. Logo se cristaliza, como se fosse uma lembrança do movimento. Quando lemos, já não é mais. Já é o cristal. São como gotas de água que se cristalizam no momento em que nascem em um clima friíssimo.
Pessoas não são como as palavras. Pessoas não são feitas para a cristalização. São puro movimento. Não são matéria.
Vês? Não podemos ter um ao outro porque não se pode pegar para si um movimento: só podemos pegar um cristal.
E os cristais se quebram, você sabe. Podemos fluir, apenas. Não posso esperar e deixar o espumante de hoje. Nem posso esperar por coisa nenhuma. Preciso ir.

Esperança: coisa que nos cristaliza - deixa a água parada, com cheiro de morte.

(...) Necrochorume ou produto da coliquação - é o líquido biodegradável oriundo do processo de decomposição dos corpos ou partes.

Le Parfum de la Mort


(07.11.06) (obra de JOSÉ ALBERTO FORS FERRO - Desnudo, 2002)


Vim aqui nadar na piscina dos pensamentos impensáveis. Esses que só aparecem no papel de ler depois: recados de mim pra mim.
Quando me telefono e não me atendo é assim: preciso deixar recados.
Saí, fui dar uma volta, volto logo.
Talvez me encontre num vinho espumante... Ótimo, com sua espuma de bolhas. É um ofurô para a alma.
Quem dera pudesse mandar um táxi te buscar, agora que não estás.
Também tu saíste, homem.
Sei porque falo contigo e não respondes. Ficas desaparecido com toda essa culpa. Atraente culpa essa que faz pensar que és um homem muito importante: mais importante que todos os fatos reais implicados e equacionando para qualquer resultado - que pesas mais que a realidade em si.
Entretanto (sabe gente, é tanta coisa pra gente saber...), é difícil que nos vejamos tão fatalmente reais.
Morte-vida-vida-morte.
Uma vez, teve uma mulher caquética que fui atender no plantão. No instante em que toquei seu pulso, eu o senti filigramando. E parou.
- Parou? – pensei.
Tinha parado. Fui tentar ressucitar o corpo de ossos da mulher. Que desagradável. Morreu, enfim. Melhor do que jazer com tubos e escaras numa cama, na minha opinião.
Tinha cheiro de morte no quarto. Cheiro de morte é o cheiro de água parada em pia entupida, sabe? Cheiro de água parada é cheiro de água parada, mesmo quando a água parada é a do corpo. Isso é cheiro de morte e será meu cheiro quando morrer. Eu mesma não vou sentir; melhor assim.
Mas esse é cheiro de morte recente. Depois fica outro cheiro. Vi uma exumação, certa vez. Uma mulher gorda (gorda de cinema): gorda mesmo. Abriram o caixão: as flores secas, tudo horrível. Lavaram o corpo inchado ademais de obeso. Tanto faz se somos gordos ou magros: depois viramos um balão. Lavaram as larvas com uma mangueira. Elas são iguais as que dão na geladeira quando cortam a luz da casa e passa um tempo. Larvinhas de Pasteur. As larvinhas branquinhas. Abriram a mulher e saiu o cheiro da coliquação: o pulmão estava uma gosma verde-enegrecida. Isso e o cheiro.

E o cheiro ficou: mesmo depois do banho demorado que tomei, mesmo depois de ter lavado as narinas até as coanas (aquela parte bem lá de trás das narinas). Quando liguei o secador de cabelos, o jato de vento quente passado em frente ao meu nariz encaminhou a réstia ao endereço do cérebro. Uma vez lido o cheiro, revi a gorda arreganhada na mesa de necrópsia. Ceninha patética. Arrepios.
O balão que viramos é dos gases que se criam. São as bactérias que fazem... Elas vivem mais que nós. O corpo já morto e a natureza não pára. Depois vamos liquefazendo. Depois as larvinhas. As unhas ainda crescem. E os cabelos também.
O primeiro cadáver que dissequei tinha as unhas cor-de-rosa. Rosa pink. Talvez o pink fosse do formol. Mas podíamos ver que as unhas tinham crescido porque o esmalte estava da metade unha para a frente.
Depois dissequei o corpo de um homem: foi ótimo. Sempre tinha querido ver como era um mamilo por baixo da pele. O mamilo é quase nada: é uma tampinha. Quando a pele, descolando do músculo, é levantada não tem nada por baixo: o mamilo fica na pele que se destampa. É uma tampinha. Mas o mamilo é uma coisa gostosa de lamber.
De um orgasmo, resta aquele silêncio tão grande, tão grande... Sempre vejo que morri. Penso se quando eu morrer vai ser assim por mais tempo.
Parece que o que busco é isso: esse silêncio mortal de gozar. Qualquer coisa que proporcione isso é o melhor da vida. Escrever, por exemplo. A folha em branco me enche de tesão e desafio. O que ela quer comigo? Espumante, ofurô, tudo dá tesão. Os mamilos e a morte, também. Só a água parada não dá tesão. Exceto pras larvinhas.
Por isso gosto do mar. O mar não tem preguiça de remexer sua água. Por isso é que ele sobrevive mais que todos os seres vivos - mesmo que os seres tenham vindo dele. O mar é movimento.

A palavra é movimento. No momento em que passa a existir, ela é movimento. Logo se cristaliza, como se fosse uma lembrança do movimento. Quando lemos, já não é mais. Já é o cristal. São como gotas de água que se cristalizam no momento em que nascem em um clima friíssimo.
Pessoas não são como as palavras. Pessoas não são feitas para a cristalização. São puro movimento. Não são matéria.
Vês? Não podemos ter um ao outro porque não se pode pegar para si um movimento: só podemos pegar um cristal.
E os cristais se quebram, você sabe. Podemos fluir, apenas. Não posso esperar e deixar o espumante de hoje. Nem posso esperar por coisa nenhuma. Preciso ir.

Esperança: coisa que nos cristaliza - deixa a água parada, com cheiro de morte.

(...) Necrochorume ou produto da coliquação - é o líquido biodegradável oriundo do processo de decomposição dos corpos ou partes.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

A Navalha


A página em branco é dura como uma tábua. Disseram-me isso; e eu, que antes nem havia notado como ela realmente é dura.
Antes das primeiras linhas esboçadas, é como um mar sem ondas, como céu negro de poluição. Poluída que ainda é dos pensamentos tortos e mesclados, das palavras ditas pela metade no céu dos pensamentos. Bem ali, aonde eles se vão como pipas ao sabor das correntes. Acorrentada que estava a eles, a cada um deles, antes de perceber a afiada navalha de minha consciência. E desde este momento de percepção, venho pelo caminho tentando receber orientação de mim. Fico atenta. Muito atenta.
Gasto todo meu combustível ansiênico, a ansiedade capaz de combustão, para encontrar-me comigo. Todos os dias, ao longo de cada um dos dias, luto por não me perder de vista.
Um jogo em que se escolhe a posição do observador: observo desde dentro, desde os olhos, nariz e ouvidos; depois, desde um pouco mais ali detrás, desde a nuca, desde o lobo occipital; mais além, desde um pouco mais atrás, atrás do nó dos ossos da cabeça, bem posterior. E como num vácuo, num aspirador, sou dragada com força ímpar, pro sul da imensidão. E de lá se me vou. Partindo no êxtase de criar. Ali, me parto em caquinhos e pedacinhos ínfimos. E deles, me (des)faço em outros mais ínfimos ainda. Até que sou eu mesma todo o resto. Todo o mundo da percepção sem sentidos. Sou o eterno da minha espera infinda pelo que já sou.
Assim que, quando meus quereres afloram, não mais busco compreendê-los com as pipas do pensar. Deixo o querer agir-me. Sou a ação de querer. Não há questionamento ao desejo. Ele é o meu senhor e meu paraíso. Não posso descrevê-lo. Tento descobrir-me através das ações. E posterior a elas, nunca antes delas. Vou descobrindo quem sou no momento, a cada momento. E, em sendo assim, caso o telefone toque e eu me dispuser a falar, falo. Caso toque a campainha, o interfone, o alarme de incêndio, o alarme das ambulâncias e outros flagrantes da realidade emergencial da vida, farei o que farejar.
A instância ultra-anímica de mim é comando e guia, a quem obedeço cega e pronta, como um cão adestrado e temeroso de desobedecer-me. E me acarinho por isso, recompenso-me grande e generosamente a cada passo tomado sem questionar. Ou ainda, ou também e mais ainda, há recompensa pelo agir impensado. Frutos gratuitos e constantes da benevolência maior, da natureza em si, vêm a mim como sopros, em ondas de beijos, todos muito graciosos e delicados, que me trazem ao gozo espetacular de viver sendo parte de minha natureza mais íntima, a mais oculta e honesta virgindade do instante que se desabrocha para mim.

A Navalha


A página em branco é dura como uma tábua. Disseram-me isso; e eu, que antes nem havia notado como ela realmente é dura.
Antes das primeiras linhas esboçadas, é como um mar sem ondas, como céu negro de poluição. Poluída que ainda é dos pensamentos tortos e mesclados, das palavras ditas pela metade no céu dos pensamentos. Bem ali, aonde eles se vão como pipas ao sabor das correntes. Acorrentada que estava a eles, a cada um deles, antes de perceber a afiada navalha de minha consciência. E desde este momento de percepção, venho pelo caminho tentando receber orientação de mim. Fico atenta. Muito atenta.
Gasto todo meu combustível ansiênico, a ansiedade capaz de combustão, para encontrar-me comigo. Todos os dias, ao longo de cada um dos dias, luto por não me perder de vista.
Um jogo em que se escolhe a posição do observador: observo desde dentro, desde os olhos, nariz e ouvidos; depois, desde um pouco mais ali detrás, desde a nuca, desde o lobo occipital; mais além, desde um pouco mais atrás, atrás do nó dos ossos da cabeça, bem posterior. E como num vácuo, num aspirador, sou dragada com força ímpar, pro sul da imensidão. E de lá se me vou. Partindo no êxtase de criar. Ali, me parto em caquinhos e pedacinhos ínfimos. E deles, me (des)faço em outros mais ínfimos ainda. Até que sou eu mesma todo o resto. Todo o mundo da percepção sem sentidos. Sou o eterno da minha espera infinda pelo que já sou.
Assim que, quando meus quereres afloram, não mais busco compreendê-los com as pipas do pensar. Deixo o querer agir-me. Sou a ação de querer. Não há questionamento ao desejo. Ele é o meu senhor e meu paraíso. Não posso descrevê-lo. Tento descobrir-me através das ações. E posterior a elas, nunca antes delas. Vou descobrindo quem sou no momento, a cada momento. E, em sendo assim, caso o telefone toque e eu me dispuser a falar, falo. Caso toque a campainha, o interfone, o alarme de incêndio, o alarme das ambulâncias e outros flagrantes da realidade emergencial da vida, farei o que farejar.
A instância ultra-anímica de mim é comando e guia, a quem obedeço cega e pronta, como um cão adestrado e temeroso de desobedecer-me. E me acarinho por isso, recompenso-me grande e generosamente a cada passo tomado sem questionar. Ou ainda, ou também e mais ainda, há recompensa pelo agir impensado. Frutos gratuitos e constantes da benevolência maior, da natureza em si, vêm a mim como sopros, em ondas de beijos, todos muito graciosos e delicados, que me trazem ao gozo espetacular de viver sendo parte de minha natureza mais íntima, a mais oculta e honesta virgindade do instante que se desabrocha para mim.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Conto das Contas



Mania de consagrar as contas. Que mania essa!
Sou apaixonada por minhas contas e dívidas.
Aguardo sua chegada vestida de conta telefônica, de condomínio, de luz, de água. Várias roupas utiliza, sempre tão versátil essa paixão. Encontro-me automaticamente com minha angústia. Encontro marcado, no início de cada mês.
Tenho colaboradores. Os porteiros sorriem e me passam os envelopes, tão delicados – entregam-me flores. O dia de hoje é um domingo. Assim aprendi. Portanto, sendo domingo, há o prenúncio inequívoco da segunda-feira. E minha tão pouca disponibilidade para ela. Que acontece hoje comigo? Uma certa dor no pescoço, na nuca, mais precisamente. Mais à direita. Olha como fico importante: com minhas contas, problema sério a ser resolvido. Preciso organizar-me, mas ao mesmo tempo, resisto e sigo fingindo que isso não precisa ser feito por mim. Que isso não demandará maior energia minha. Afinal, exige ou não que seja posta minha energia nisso?
Por que não relaxar simplesmente?
Mantenho-me atrelada a elas como quem fica atrelada a uma paixão mal resolvida – "dessas que a gente tem ciúme e se encharca de perfume, faz que tenta se matar..." Que me matar, qual nada! Não levantaria para mim outro algoz que não esse (sou fiel), o de ver-me atrelada à grandiosidade de minhas dívidas. É assim: vendo que devo, vejo que outros me devem. E logo ali mora a grandeza. "Ah, sim, pessoas me devem - Vou cobrá-las. E aí, morrerão fuziladas por minha cobrança, tão poderosa que sou. Sentir-se-ão traídas, usadas, extorquidas. Serei motivo de ódio e não posso deixar meu posto de preferida".
Ou posso?
Eis a questão do momento: estarei traindo minhas contas ao pagá-las? Terminarei com a existência delas?
Não, nem assim.
Nem que eu as pagasse todas – existiria uma dívida outra. Esse sim, parece ser o mote dessa zorra toda... Que dívida é essa, senhoras e senhores?
Psicanalistas responderiam, claro.
Mas o fato é que há uma sensação de dívida de não sei bem de que, a qual pareço preencher com as contas. Pareço-me preenchida devendo dinheiro, quando o que devo, não sei o que é. Devo? Serei eu essa não-pagante da vida? E vou mantendo essa coisinha dentro de mim - de quem precisa arranjar como pagar: o quê? Não sei.
Esta é a culpa, senhores e senhoras. A culpa é assim. É todo um sistema que empresta lógica ao que não pode ser logicificado. Sistemática que ilude o atraso da morte...
03 de dezembro de 2006. Hoje, domingo, pele clara e sol quente. Condicionamos o ar, na nossa rebeldia contra a natureza. Isso que dentro de nós se rebela infinitas vezes à realidade. Essa rebeldia é que nos move a criar no mundo, a modificar o ambiente, a modificar o que vemos, para que tudo fique um pouco mais próximo do que desejamos.
(...) Na tragédia grega, "hamartia" é um erro de julgamento do herói que leva a uma catástrofe, mas o título também pode ser interpretado como "uma missão dada pelos deuses aos homens para serem felizes", segundo Rondon.
Os gregos ainda possuíam uma visão determinista da hamartia: é algo inseparável do destino do homem, que não pode ser evitado, e que por isso causa sofrimento.

Conto das Contas



Mania de consagrar as contas. Que mania essa!
Sou apaixonada por minhas contas e dívidas.
Aguardo sua chegada vestida de conta telefônica, de condomínio, de luz, de água. Várias roupas utiliza, sempre tão versátil essa paixão. Encontro-me automaticamente com minha angústia. Encontro marcado, no início de cada mês.
Tenho colaboradores. Os porteiros sorriem e me passam os envelopes, tão delicados – entregam-me flores. O dia de hoje é um domingo. Assim aprendi. Portanto, sendo domingo, há o prenúncio inequívoco da segunda-feira. E minha tão pouca disponibilidade para ela. Que acontece hoje comigo? Uma certa dor no pescoço, na nuca, mais precisamente. Mais à direita. Olha como fico importante: com minhas contas, problema sério a ser resolvido. Preciso organizar-me, mas ao mesmo tempo, resisto e sigo fingindo que isso não precisa ser feito por mim. Que isso não demandará maior energia minha. Afinal, exige ou não que seja posta minha energia nisso?
Por que não relaxar simplesmente?
Mantenho-me atrelada a elas como quem fica atrelada a uma paixão mal resolvida – "dessas que a gente tem ciúme e se encharca de perfume, faz que tenta se matar..." Que me matar, qual nada! Não levantaria para mim outro algoz que não esse (sou fiel), o de ver-me atrelada à grandiosidade de minhas dívidas. É assim: vendo que devo, vejo que outros me devem. E logo ali mora a grandeza. "Ah, sim, pessoas me devem - Vou cobrá-las. E aí, morrerão fuziladas por minha cobrança, tão poderosa que sou. Sentir-se-ão traídas, usadas, extorquidas. Serei motivo de ódio e não posso deixar meu posto de preferida".
Ou posso?
Eis a questão do momento: estarei traindo minhas contas ao pagá-las? Terminarei com a existência delas?
Não, nem assim.
Nem que eu as pagasse todas – existiria uma dívida outra. Esse sim, parece ser o mote dessa zorra toda... Que dívida é essa, senhoras e senhores?
Psicanalistas responderiam, claro.
Mas o fato é que há uma sensação de dívida de não sei bem de que, a qual pareço preencher com as contas. Pareço-me preenchida devendo dinheiro, quando o que devo, não sei o que é. Devo? Serei eu essa não-pagante da vida? E vou mantendo essa coisinha dentro de mim - de quem precisa arranjar como pagar: o quê? Não sei.
Esta é a culpa, senhores e senhoras. A culpa é assim. É todo um sistema que empresta lógica ao que não pode ser logicificado. Sistemática que ilude o atraso da morte...
03 de dezembro de 2006. Hoje, domingo, pele clara e sol quente. Condicionamos o ar, na nossa rebeldia contra a natureza. Isso que dentro de nós se rebela infinitas vezes à realidade. Essa rebeldia é que nos move a criar no mundo, a modificar o ambiente, a modificar o que vemos, para que tudo fique um pouco mais próximo do que desejamos.
(...) Na tragédia grega, "hamartia" é um erro de julgamento do herói que leva a uma catástrofe, mas o título também pode ser interpretado como "uma missão dada pelos deuses aos homens para serem felizes", segundo Rondon.
Os gregos ainda possuíam uma visão determinista da hamartia: é algo inseparável do destino do homem, que não pode ser evitado, e que por isso causa sofrimento.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Sopros da Alma

As conversas carregam em si sopros que vêm de dentro da alma.
A alma sopra feito nuvem de fantasia.
Assim que, discutir o sexo é quase tão íntimo como fazê-lo. Mais íntimo até. Traduzir em palavras o tabu, a vergonha, a falta de orgasmo, de beijo.

As faltas todas são tão difíceis de serem ditas, que calam.
Mas caladas, elas sangram do lado de dentro.

Sopros da Alma

As conversas carregam em si sopros que vêm de dentro da alma.
A alma sopra feito nuvem de fantasia.
Assim que, discutir o sexo é quase tão íntimo como fazê-lo. Mais íntimo até. Traduzir em palavras o tabu, a vergonha, a falta de orgasmo, de beijo.

As faltas todas são tão difíceis de serem ditas, que calam.
Mas caladas, elas sangram do lado de dentro.

Indo

Onde fui com as contas
De pérolas
Que fiz o colar
E pus no pescoço
E me surpreendo
Sou a surpresa de mim
Tão imensamentente desconhecida
Flor do Cairo
E as associações
Essas sim
São o tesouro maior
Que me dizem de que sou feita
De poesia
De mar e sal grosso
De alecrim
Que traz o amor pra mim
De onde menos suponho
De onde ouso me por
Sem saber
(claro, sem nada saber)
Só vendo
Só vento
E só
Uma pasagem
Um incêndio

E as crianças gritandinho
Seus gritinhos
De riso e cor
Aprontando
Aprontando-se pra vida
Que nunca vem
Nós é que vamos.

Indo

Onde fui com as contas
De pérolas
Que fiz o colar
E pus no pescoço
E me surpreendo
Sou a surpresa de mim
Tão imensamentente desconhecida
Flor do Cairo
E as associações
Essas sim
São o tesouro maior
Que me dizem de que sou feita
De poesia
De mar e sal grosso
De alecrim
Que traz o amor pra mim
De onde menos suponho
De onde ouso me por
Sem saber
(claro, sem nada saber)
Só vendo
Só vento
E só
Uma pasagem
Um incêndio

E as crianças gritandinho
Seus gritinhos
De riso e cor
Aprontando
Aprontando-se pra vida
Que nunca vem
Nós é que vamos.

Ensaio



Ensaio-me nos textos de ensaio.
Já vi que vou ensaiando ao longo dos textos que se me vêm.
Adiando a estréia de logo mais, parece-me. Vai saber.
Pois agora...
Escrevo pra ninguém.
Então, diante do nada, vão surgindo as palavras que declaro e não penso. De onde vêm elas? Da ausência, presumo: adventos da falta e da ausência pungente e presente a cada momento do dia.

O dia, oco que é, vai-se recheando do que surge. E eu? Vou-me recheando das palavras. Fico-me com as palavras - toda retorcida - como numa roupa justa.
(03.12.06)

Ensaio



Ensaio-me nos textos de ensaio.
Já vi que vou ensaiando ao longo dos textos que se me vêm.
Adiando a estréia de logo mais, parece-me. Vai saber.
Pois agora...
Escrevo pra ninguém.
Então, diante do nada, vão surgindo as palavras que declaro e não penso. De onde vêm elas? Da ausência, presumo: adventos da falta e da ausência pungente e presente a cada momento do dia.

O dia, oco que é, vai-se recheando do que surge. E eu? Vou-me recheando das palavras. Fico-me com as palavras - toda retorcida - como numa roupa justa.
(03.12.06)

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

Trocadilhos


Viciada em trocadilhos
Vícios Vários
Como o de auto-expor-me a mim
Em prosa poética que é a linguagem da vida
Com voz que falseteia mas não desafina
E perna que costura na parede de rocha da montanha
(Que deixei de escalar)

Com Corpo que se mergulha
No rio límipido Tapajós
E nunca marajoara
No rio sujo do Tacacá
Que cura porres na amazônia
Floresta onde pari a mim e ao meu país
De bananas vermelhas e folhas largas
Onde cantei ao povo de mim
Tão desafinada e caótica que sou

(realmente sou)

Ainda assim sou amada
E mesmo fora da forma que sonharam
E mesmo com os sete furos auriculares
Buracos no umbigo e na sobrancelha
Buracos onde orbitam meus olhos
Onde orbita minha língua cáustica
Buracos de onde vertem meus sonhos
Buracos onde penetram poesia e lirismo
Buracos
Toda esburacada que sou
Asfalto de cobertura barata
Lenhado de chuva e vento
E caminhões desgovernados de metilfenidato
Pedra lenhada de mar
De meu surfar tão desengonçado
Os pés que bato desordenadamente
E o prazer de brincar
E também o mar me ama
E aos músculos que pouco me sustentam

Mas eis que a cada dia mais me sustento
Na medida em que os esforço a sustentar-me
Cada vez chego mais longe
E me alongo
A cada dia um milímetro mais
Mais longe e mais perto de mim
Mais me expando ao mundo
Mais o mundo se expande
Num bailar de acasalamento
Entre eu e o amor do mundo
Que me aceita bem mais do que esperava

Quanto mais desisto agradar
Quanto mais me alongo adentro em mim
E me mareio
Mais o mundo se abre e se arreganha a me receber
Mais amor dou sem fronteiras
Sem pré-aquecimento do forno
Mais cresce a massa
A massa oca e esburacada que sou
Mais contém (em suas trabéculas esgarçadas de vida)
Mais as fraturo, mais se reforçam
Mais a vida venta em mim
Mais sopro de mim ao vento
E ele me leva


Aos longínquos desertos pessoais de quem me encontra
E me recebe
E me emociona a cada janela aberta que encontro
A cada um que abre suas persianas e seus vidros
Mais me encho de vida
Quanto mais vida sou e dou
Quanto mais espontânea fico
Ao vaguear por entre meus bosques
Também eles esburacados
De clareiras abertas a facão
De onde vejo a lua cheia
Ou minguante ou crescente
Ou não a vejo quando não está
Em eclipse
Vejo a escuridão e o vazio
Transbordando de possibilidades
As possibilidades que sou
Todos os dias
Todas as noites
Desenluaradas
Desestreladas
No escuro fundo de mim
Viro o bicho intuitivo
Que escapa ao tsunami do mundo
Quando a ânsia de viver me bóia
No esgoto de ganância financeira
Bóio
E broto
Adubada do podre que esqueceu de desaparecer
Vergo
E cresço de meus excrementos
E afloro
Floresço enfim
Num querer bruto e apaixonado
Enraivecido e colérico
E a facão
Rasgo as clareiras do mundo que se fecha sobre mim
De novo e de novo e de novo

Pela infinitésima vez

Lá vou
A facão
Abrindo clareiras e buracos pra ver a lua e o sol
E o céu e o mar de brincar
De amar

Paro um segundo e contemplo
A seguir novo passo
Cada um mais desequilibrado
Para reagrupar o equilíbrio ao mover-me
Porque é o movimento que me sustenta
E não o contrário
É ao mover-me que me equilibro
E isso aprendi em tenra idade
E nunca mais esqueci
Embora em registro extra-piramidal
Torno a recordar-me se me faço consciente
Do passo
Do abraço
E do dirigir(me)
Câmbio analógico da vida
Que reduz a velocidade quando a vejo
Que fica lenta
Lentíssima
O número de batidas que vai determinar o compasso
Não é o mesmo número de notas que ouço
Pauta, Clave, Notas, Valores, Figuras, Ligadura
Ponto de Aumento
Acento Métrico, Síncope e Contratempo
Aprendizado da mínima
Aprendizagem contínua
Aprendizagem ao máximo
Trocadura ínfima
Trocas duras íntimas
Faço disso meu viver
O viciadiço de viver
O vício ardiço e caniço
De pesca e caça
De mim

Onde for
Qualquer lugar, tempo, espaço, rio
Cascatas doces e amargas
Gélidas e trôpegas cascatas
Aos tropeções nos buracos das pedras
Nos buracos das agulhas
Onde passam camelos
Onde todos adentram o reino celeste
Onde cada um atinge seu paraíso
Onde sou deusa
Onde sou a deusa Lilith
Geradora de meu universo
Extremamente ocupada em mamar-me
Em fertilizar-me de nu e cru
Em amar ao revés
Onde descuido e cuido de mim
Mais parece o mundo engolir-me
E gozar-me.

Ouço o Cartola
Disfarço e choro
Indisfarçadamente
Meu pranto sempre tem hora




Trocadilhos


Viciada em trocadilhos
Vícios Vários
Como o de auto-expor-me a mim
Em prosa poética que é a linguagem da vida
Com voz que falseteia mas não desafina
E perna que costura na parede de rocha da montanha
(Que deixei de escalar)

Com Corpo que se mergulha
No rio límipido Tapajós
E nunca marajoara
No rio sujo do Tacacá
Que cura porres na amazônia
Floresta onde pari a mim e ao meu país
De bananas vermelhas e folhas largas
Onde cantei ao povo de mim
Tão desafinada e caótica que sou

(realmente sou)

Ainda assim sou amada
E mesmo fora da forma que sonharam
E mesmo com os sete furos auriculares
Buracos no umbigo e na sobrancelha
Buracos onde orbitam meus olhos
Onde orbita minha língua cáustica
Buracos de onde vertem meus sonhos
Buracos onde penetram poesia e lirismo
Buracos
Toda esburacada que sou
Asfalto de cobertura barata
Lenhado de chuva e vento
E caminhões desgovernados de metilfenidato
Pedra lenhada de mar
De meu surfar tão desengonçado
Os pés que bato desordenadamente
E o prazer de brincar
E também o mar me ama
E aos músculos que pouco me sustentam

Mas eis que a cada dia mais me sustento
Na medida em que os esforço a sustentar-me
Cada vez chego mais longe
E me alongo
A cada dia um milímetro mais
Mais longe e mais perto de mim
Mais me expando ao mundo
Mais o mundo se expande
Num bailar de acasalamento
Entre eu e o amor do mundo
Que me aceita bem mais do que esperava

Quanto mais desisto agradar
Quanto mais me alongo adentro em mim
E me mareio
Mais o mundo se abre e se arreganha a me receber
Mais amor dou sem fronteiras
Sem pré-aquecimento do forno
Mais cresce a massa
A massa oca e esburacada que sou
Mais contém (em suas trabéculas esgarçadas de vida)
Mais as fraturo, mais se reforçam
Mais a vida venta em mim
Mais sopro de mim ao vento
E ele me leva


Aos longínquos desertos pessoais de quem me encontra
E me recebe
E me emociona a cada janela aberta que encontro
A cada um que abre suas persianas e seus vidros
Mais me encho de vida
Quanto mais vida sou e dou
Quanto mais espontânea fico
Ao vaguear por entre meus bosques
Também eles esburacados
De clareiras abertas a facão
De onde vejo a lua cheia
Ou minguante ou crescente
Ou não a vejo quando não está
Em eclipse
Vejo a escuridão e o vazio
Transbordando de possibilidades
As possibilidades que sou
Todos os dias
Todas as noites
Desenluaradas
Desestreladas
No escuro fundo de mim
Viro o bicho intuitivo
Que escapa ao tsunami do mundo
Quando a ânsia de viver me bóia
No esgoto de ganância financeira
Bóio
E broto
Adubada do podre que esqueceu de desaparecer
Vergo
E cresço de meus excrementos
E afloro
Floresço enfim
Num querer bruto e apaixonado
Enraivecido e colérico
E a facão
Rasgo as clareiras do mundo que se fecha sobre mim
De novo e de novo e de novo

Pela infinitésima vez

Lá vou
A facão
Abrindo clareiras e buracos pra ver a lua e o sol
E o céu e o mar de brincar
De amar

Paro um segundo e contemplo
A seguir novo passo
Cada um mais desequilibrado
Para reagrupar o equilíbrio ao mover-me
Porque é o movimento que me sustenta
E não o contrário
É ao mover-me que me equilibro
E isso aprendi em tenra idade
E nunca mais esqueci
Embora em registro extra-piramidal
Torno a recordar-me se me faço consciente
Do passo
Do abraço
E do dirigir(me)
Câmbio analógico da vida
Que reduz a velocidade quando a vejo
Que fica lenta
Lentíssima
O número de batidas que vai determinar o compasso
Não é o mesmo número de notas que ouço
Pauta, Clave, Notas, Valores, Figuras, Ligadura
Ponto de Aumento
Acento Métrico, Síncope e Contratempo
Aprendizado da mínima
Aprendizagem contínua
Aprendizagem ao máximo
Trocadura ínfima
Trocas duras íntimas
Faço disso meu viver
O viciadiço de viver
O vício ardiço e caniço
De pesca e caça
De mim

Onde for
Qualquer lugar, tempo, espaço, rio
Cascatas doces e amargas
Gélidas e trôpegas cascatas
Aos tropeções nos buracos das pedras
Nos buracos das agulhas
Onde passam camelos
Onde todos adentram o reino celeste
Onde cada um atinge seu paraíso
Onde sou deusa
Onde sou a deusa Lilith
Geradora de meu universo
Extremamente ocupada em mamar-me
Em fertilizar-me de nu e cru
Em amar ao revés
Onde descuido e cuido de mim
Mais parece o mundo engolir-me
E gozar-me.

Ouço o Cartola
Disfarço e choro
Indisfarçadamente
Meu pranto sempre tem hora




Post Mortem


Acordei às três horas da manhã com uma dor aguda dentro da minha cabeça. A dor gritava, em espículas. Ter dor de cabeça não é comum para mim.
Nunca tinha sentido uma dor tão forte.
Levantei-me da cama e caí. Com vertigens, sono e dor, fui ao banheiro. Com náuseas e mais dor, vomitei. Mais dor.
Meu primeiro pensamento foi: ‘o que foi que eu fiz?’.
O pensamento seguinte: ‘comi alguma coisa que me fez mal? Nem bebi, nem nada’.
Eu tinha medo de viver sozinha, de não poder alcançar socorro se algo acontecesse. Isso tudo pairava muito no fundo, não que fosse medo admitido em voz alta.
Fui ao chuveiro lavar a cabeça, ver se a água alterava a captação da dor que faziam as terminações livres dos nervos na minha cabeça – isso também pensei na hora.
‘Estou morrendo. É um aneurisma roto e estou morrendo’.
Pensei mais. E em termos técnicos.
Assim que, uma vez fora do chuveiro, de joelhos, com a caixinha de remédios aberta, depois dos comprimidos tomados - dois analgésicos, um antinflamatório e um benzodiazepínico sublingual – finalmente, ocorreu-me: estou com muita dor de cabeça, acontece. Pode ser que eu morra mesmo, acontece. Não é culpa minha.
Aí fui... Rindo de mim, dos meus termos técnicos todos... Feliz por me auto-socorrer da melhor maneira que pude. Fui até a cama e deitei-me. Ainda com muita dor.
Eu comecei a me ninar cantando Chico Buarque:
já passou, já passou...
Sem medo. Eu estava lá. Por fim, adormeci.



(...)The brain has many arterial blood vessels that supply blood pumped by the heart. When the wall of a blood vessel becomes weak and/or thin, it forms a bulge or a bubble. This bulge or bubble is called an aneurysm.
An aneurysm may press on areas of the brain and cause various symptoms (below). Aneurysms may also rupture, causing bleeding in the brain. This bleeding results in subarachnoid hemorrhage (bleeding into the subarachnoid space of the brain) - severe "thunderclap" headache if the aneurysm ruptures.

Post Mortem


Acordei às três horas da manhã com uma dor aguda dentro da minha cabeça. A dor gritava, em espículas. Ter dor de cabeça não é comum para mim.
Nunca tinha sentido uma dor tão forte.
Levantei-me da cama e caí. Com vertigens, sono e dor, fui ao banheiro. Com náuseas e mais dor, vomitei. Mais dor.
Meu primeiro pensamento foi: ‘o que foi que eu fiz?’.
O pensamento seguinte: ‘comi alguma coisa que me fez mal? Nem bebi, nem nada’.
Eu tinha medo de viver sozinha, de não poder alcançar socorro se algo acontecesse. Isso tudo pairava muito no fundo, não que fosse medo admitido em voz alta.
Fui ao chuveiro lavar a cabeça, ver se a água alterava a captação da dor que faziam as terminações livres dos nervos na minha cabeça – isso também pensei na hora.
‘Estou morrendo. É um aneurisma roto e estou morrendo’.
Pensei mais. E em termos técnicos.
Assim que, uma vez fora do chuveiro, de joelhos, com a caixinha de remédios aberta, depois dos comprimidos tomados - dois analgésicos, um antinflamatório e um benzodiazepínico sublingual – finalmente, ocorreu-me: estou com muita dor de cabeça, acontece. Pode ser que eu morra mesmo, acontece. Não é culpa minha.
Aí fui... Rindo de mim, dos meus termos técnicos todos... Feliz por me auto-socorrer da melhor maneira que pude. Fui até a cama e deitei-me. Ainda com muita dor.
Eu comecei a me ninar cantando Chico Buarque:
já passou, já passou...
Sem medo. Eu estava lá. Por fim, adormeci.



(...)The brain has many arterial blood vessels that supply blood pumped by the heart. When the wall of a blood vessel becomes weak and/or thin, it forms a bulge or a bubble. This bulge or bubble is called an aneurysm.
An aneurysm may press on areas of the brain and cause various symptoms (below). Aneurysms may also rupture, causing bleeding in the brain. This bleeding results in subarachnoid hemorrhage (bleeding into the subarachnoid space of the brain) - severe "thunderclap" headache if the aneurysm ruptures.

A Gorda e o Sanduíche




Cozinhávamos. Ele comentou comigo que, quando morava nos Estados Unidos, assistia com alguns colegas o desempenho frente a um apetite brutal de uma obesa com quem também trabalhava.
Disse-me que ela, na hora do almoço, preparava o maior sanduíche da terra, embalava-o junto com seu baldinho de refrigerante açucarado e partia para o carro. Lá chegando, subia a capota de seu carro conversível – convertendo-o. Colocava óculos escuros. E, uma vez lá dentro, com óculos, com capota, convertia-se ela por sobre o sanduíche e a bebida. O ritual era repetido todos os dias.
De modo que, a polpuda senhora em questão sustenta, além dos kilogramas todos, minha hipótese sobre a ardilosidade dos envergonhados.
Um tímido é o mais notado em qualquer festa. O envergonhado faz-se o mais visível ao recobrir-se com o glitter de seus pudores. Eu, quase despudorada, tenho meus desejos de fama comumente vistos com antipatia. Efetivamente, não passo pela faixa dos anônimos. Mas parece que a áurea timidez que paira sobre o ardiloso é também um mecanismo protetor – a fragilidade é a maior força do constrangido.
Assim, a senhora do exemplo não só foi notada e registrada - e relembrada - por quem me falou dela, mas também superfaturava com o peso os olhares dos outros colegas. Escondendo-se, aparecia mais que todos os outros que ali almoçavam.
Não me canso das bizarrices do mundo.




(...) A sandwich is a food item typically consisting of two pieces of leavened bread between which are laid one or more layers of meat, vegetable, cheese, together with optional or traditionally provided condiments, sauces, and other accompaniments. The bread is used as is, lightly buttered, or covered in a flavoured oil to enhance flavour and texture.

A Gorda e o Sanduíche




Cozinhávamos. Ele comentou comigo que, quando morava nos Estados Unidos, assistia com alguns colegas o desempenho frente a um apetite brutal de uma obesa com quem também trabalhava.
Disse-me que ela, na hora do almoço, preparava o maior sanduíche da terra, embalava-o junto com seu baldinho de refrigerante açucarado e partia para o carro. Lá chegando, subia a capota de seu carro conversível – convertendo-o. Colocava óculos escuros. E, uma vez lá dentro, com óculos, com capota, convertia-se ela por sobre o sanduíche e a bebida. O ritual era repetido todos os dias.
De modo que, a polpuda senhora em questão sustenta, além dos kilogramas todos, minha hipótese sobre a ardilosidade dos envergonhados.
Um tímido é o mais notado em qualquer festa. O envergonhado faz-se o mais visível ao recobrir-se com o glitter de seus pudores. Eu, quase despudorada, tenho meus desejos de fama comumente vistos com antipatia. Efetivamente, não passo pela faixa dos anônimos. Mas parece que a áurea timidez que paira sobre o ardiloso é também um mecanismo protetor – a fragilidade é a maior força do constrangido.
Assim, a senhora do exemplo não só foi notada e registrada - e relembrada - por quem me falou dela, mas também superfaturava com o peso os olhares dos outros colegas. Escondendo-se, aparecia mais que todos os outros que ali almoçavam.
Não me canso das bizarrices do mundo.




(...) A sandwich is a food item typically consisting of two pieces of leavened bread between which are laid one or more layers of meat, vegetable, cheese, together with optional or traditionally provided condiments, sauces, and other accompaniments. The bread is used as is, lightly buttered, or covered in a flavoured oil to enhance flavour and texture.