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quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Conto das Contas



Mania de consagrar as contas. Que mania essa!
Sou apaixonada por minhas contas e dívidas.
Aguardo sua chegada vestida de conta telefônica, de condomínio, de luz, de água. Várias roupas utiliza, sempre tão versátil essa paixão. Encontro-me automaticamente com minha angústia. Encontro marcado, no início de cada mês.
Tenho colaboradores. Os porteiros sorriem e me passam os envelopes, tão delicados – entregam-me flores. O dia de hoje é um domingo. Assim aprendi. Portanto, sendo domingo, há o prenúncio inequívoco da segunda-feira. E minha tão pouca disponibilidade para ela. Que acontece hoje comigo? Uma certa dor no pescoço, na nuca, mais precisamente. Mais à direita. Olha como fico importante: com minhas contas, problema sério a ser resolvido. Preciso organizar-me, mas ao mesmo tempo, resisto e sigo fingindo que isso não precisa ser feito por mim. Que isso não demandará maior energia minha. Afinal, exige ou não que seja posta minha energia nisso?
Por que não relaxar simplesmente?
Mantenho-me atrelada a elas como quem fica atrelada a uma paixão mal resolvida – "dessas que a gente tem ciúme e se encharca de perfume, faz que tenta se matar..." Que me matar, qual nada! Não levantaria para mim outro algoz que não esse (sou fiel), o de ver-me atrelada à grandiosidade de minhas dívidas. É assim: vendo que devo, vejo que outros me devem. E logo ali mora a grandeza. "Ah, sim, pessoas me devem - Vou cobrá-las. E aí, morrerão fuziladas por minha cobrança, tão poderosa que sou. Sentir-se-ão traídas, usadas, extorquidas. Serei motivo de ódio e não posso deixar meu posto de preferida".
Ou posso?
Eis a questão do momento: estarei traindo minhas contas ao pagá-las? Terminarei com a existência delas?
Não, nem assim.
Nem que eu as pagasse todas – existiria uma dívida outra. Esse sim, parece ser o mote dessa zorra toda... Que dívida é essa, senhoras e senhores?
Psicanalistas responderiam, claro.
Mas o fato é que há uma sensação de dívida de não sei bem de que, a qual pareço preencher com as contas. Pareço-me preenchida devendo dinheiro, quando o que devo, não sei o que é. Devo? Serei eu essa não-pagante da vida? E vou mantendo essa coisinha dentro de mim - de quem precisa arranjar como pagar: o quê? Não sei.
Esta é a culpa, senhores e senhoras. A culpa é assim. É todo um sistema que empresta lógica ao que não pode ser logicificado. Sistemática que ilude o atraso da morte...
03 de dezembro de 2006. Hoje, domingo, pele clara e sol quente. Condicionamos o ar, na nossa rebeldia contra a natureza. Isso que dentro de nós se rebela infinitas vezes à realidade. Essa rebeldia é que nos move a criar no mundo, a modificar o ambiente, a modificar o que vemos, para que tudo fique um pouco mais próximo do que desejamos.
(...) Na tragédia grega, "hamartia" é um erro de julgamento do herói que leva a uma catástrofe, mas o título também pode ser interpretado como "uma missão dada pelos deuses aos homens para serem felizes", segundo Rondon.
Os gregos ainda possuíam uma visão determinista da hamartia: é algo inseparável do destino do homem, que não pode ser evitado, e que por isso causa sofrimento.

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