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quinta-feira, 22 de julho de 2010

INGRATA REPRISE - ou - Um movimento de ética no cinema.


Ken Wong's Salene

Para tudo existe uma ciência. Para prescrever uma medicação, para receita de bolo, para montar seus móveis em casa. Na hora de recomendar uma experiência para um amigo, precisamos de todo o cuidado. É um momento ansioso, onde o que dizemos pode ser determinante. Especialmente em relação ao cinema. Principalmente em relação ao cinema.

Não gosto que me contem a sinopse, que leiam o resuminho patético do jornal em voz alta: "vida de mulher muda totalmente após se envolver com agente secreto". Pronto. Acabou. Já sei que ele é agente e secreto, já sei que se envolvem, já sei que antes ela era solteira, patati-patatá. Já vi tudo.

Tenho horror dos trailers. Tento chegar atrasada no cinema, afasto os ouvidos, converso, afundo a cabeça no saco de pipoca. Cada vez mais, eles estão para o filme como o Mini-me está para Doctor Evil. Um resumo malformado, uma paródia anã. Uma prévia dos infernos.

Tenho ódio de quem me conta trechos "inocentes" ou anuncia nostradamicamente:

- Tu não imagina o que vai acontecer no final! (Entrega que o desfecho é o contrário do início)

Ou quem diz:

- É igual ao Sexto Sentido!

São comentários "inócuos" que arruinam a experiência, o lazer, o deleite sigiloso da expectativa, a paixão do encontro às escuras.

Ao me aconselhar sobre um longa, minha sogra saiu-se com a pérola:

- E no fim, ele está preso há anos e tudo que ele pede é que falem com ele. Imagina! Em silêncio. O silêncio como pior claustro.

Ah, pois é. Maravilha. Para mim, foi sua letra que me deu claustrofobia. Sinto o pescoço inchando, como um tipo de sapo boi ou anfíbio do gênero. Não dá para conversar depois?

É sadismo antecipar, não sou Glória Kalil, mas recomendo elegância. Elegância pode ser ética.

Ao indicar um título que me entusiasmei ou me emocionei, procuro oferecer o mínimo de linhas:

- É interessante.

Ou ainda preservar a discrição:

- Eu achei que vale a pena, não sei como será para você.

Muitos elogios convidam o sujeito a inflar a expectativa, por conseguinte, o tombo será mais alto.

Quando não gosto, digo apenas:

- É, eu não veria outra vez.

Melhor, muito melhor do que assistir o filme sem ver. Sempre é reprise quando o outro nos conta.


Assista esta crônica falada>>
crônica de @cinthyaverri exibida no @CamaroteTVCOM
dia 21.07.2010. Apresentação: @katiasuman.

INGRATA REPRISE - ou - Um movimento de ética no cinema.


Ken Wong's Salene

Para tudo existe uma ciência. Para prescrever uma medicação, para receita de bolo, para montar seus móveis em casa. Na hora de recomendar uma experiência para um amigo, precisamos de todo o cuidado. É um momento ansioso, onde o que dizemos pode ser determinante. Especialmente em relação ao cinema. Principalmente em relação ao cinema.

Não gosto que me contem a sinopse, que leiam o resuminho patético do jornal em voz alta: "vida de mulher muda totalmente após se envolver com agente secreto". Pronto. Acabou. Já sei que ele é agente e secreto, já sei que se envolvem, já sei que antes ela era solteira, patati-patatá. Já vi tudo.

Tenho horror dos trailers. Tento chegar atrasada no cinema, afasto os ouvidos, converso, afundo a cabeça no saco de pipoca. Cada vez mais, eles estão para o filme como o Mini-me está para Doctor Evil. Um resumo malformado, uma paródia anã. Uma prévia dos infernos.

Tenho ódio de quem me conta trechos "inocentes" ou anuncia nostradamicamente:

- Tu não imagina o que vai acontecer no final! (Entrega que o desfecho é o contrário do início)

Ou quem diz:

- É igual ao Sexto Sentido!

São comentários "inócuos" que arruinam a experiência, o lazer, o deleite sigiloso da expectativa, a paixão do encontro às escuras.

Ao me aconselhar sobre um longa, minha sogra saiu-se com a pérola:

- E no fim, ele está preso há anos e tudo que ele pede é que falem com ele. Imagina! Em silêncio. O silêncio como pior claustro.

Ah, pois é. Maravilha. Para mim, foi sua letra que me deu claustrofobia. Sinto o pescoço inchando, como um tipo de sapo boi ou anfíbio do gênero. Não dá para conversar depois?

É sadismo antecipar, não sou Glória Kalil, mas recomendo elegância. Elegância pode ser ética.

Ao indicar um título que me entusiasmei ou me emocionei, procuro oferecer o mínimo de linhas:

- É interessante.

Ou ainda preservar a discrição:

- Eu achei que vale a pena, não sei como será para você.

Muitos elogios convidam o sujeito a inflar a expectativa, por conseguinte, o tombo será mais alto.

Quando não gosto, digo apenas:

- É, eu não veria outra vez.

Melhor, muito melhor do que assistir o filme sem ver. Sempre é reprise quando o outro nos conta.


Assista esta crônica falada>>
crônica de @cinthyaverri exibida no @CamaroteTVCOM
dia 21.07.2010. Apresentação: @katiasuman.

INGRATA REPRISE - ou - Um movimento de ética no cinema.


Ken Wong's Salene

Para tudo existe uma ciência. Para prescrever uma medicação, para receita de bolo, para montar seus móveis em casa. Na hora de recomendar uma experiência para um amigo, precisamos de todo o cuidado. É um momento ansioso, onde o que dizemos pode ser determinante. Especialmente em relação ao cinema. Principalmente em relação ao cinema.

Não gosto que me contem a sinopse, que leiam o resuminho patético do jornal em voz alta: "vida de mulher muda totalmente após se envolver com agente secreto". Pronto. Acabou. Já sei que ele é agente e secreto, já sei que se envolvem, já sei que antes ela era solteira, patati-patatá. Já vi tudo.

Tenho horror dos trailers. Tento chegar atrasada no cinema, afasto os ouvidos, converso, afundo a cabeça no saco de pipoca. Cada vez mais, eles estão para o filme como o Mini-me está para Doctor Evil. Um resumo malformado, uma paródia anã. Uma prévia dos infernos.

Tenho ódio de quem me conta trechos "inocentes" ou anuncia nostradamicamente:

- Tu não imagina o que vai acontecer no final! (Entrega que o desfecho é o contrário do início)

Ou quem diz:

- É igual ao Sexto Sentido!

São comentários "inócuos" que arruinam a experiência, o lazer, o deleite sigiloso da expectativa, a paixão do encontro às escuras.

Ao me aconselhar sobre um longa, minha sogra saiu-se com a pérola:

- E no fim, ele está preso há anos e tudo que ele pede é que falem com ele. Imagina! Em silêncio. O silêncio como pior claustro.

Ah, pois é. Maravilha. Para mim, foi sua letra que me deu claustrofobia. Sinto o pescoço inchando, como um tipo de sapo boi ou anfíbio do gênero. Não dá para conversar depois?

É sadismo antecipar, não sou Glória Kalil, mas recomendo elegância. Elegância pode ser ética.

Ao indicar um título que me entusiasmei ou me emocionei, procuro oferecer o mínimo de linhas:

- É interessante.

Ou ainda preservar a discrição:

- Eu achei que vale a pena, não sei como será para você.

Muitos elogios convidam o sujeito a inflar a expectativa, por conseguinte, o tombo será mais alto.

Quando não gosto, digo apenas:

- É, eu não veria outra vez.

Melhor, muito melhor do que assistir o filme sem ver. Sempre é reprise quando o outro nos conta.


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crônica de @cinthyaverri exibida no @CamaroteTVCOM
dia 21.07.2010. Apresentação: @katiasuman.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Por que as freiras não morrem? [Crônica Falada 14.07.2010]

Para Cassiano de Oliveira Stahl
e sua abrassagem &
Fabrício Bitolinos Carpinejar,
que não desiste de rir
de mim e comigo.













Cérebro com Alzheimer......................................| |.............................. Cérebro Saudável Centenário

POR QUE AS FREIRAS NÃO MORREM?



Cumpri o primeiro grau sob a guarda das freiras. Peculiar a vida delas no colégio Notre Dame de Passo Fundo. Peculiar é um refinamento para pacato.

Os dormitórios eram simples, adequados ao voto de pobreza; as roupas branco-e-pretas, os refeitórios com mesas retangulares, os fogões industriais, as louças, os talheres – tudo em grande quantidade e tudo igual. Algumas tinham o luxo dos radinhos de pilha na cabeceira. Não desligavam nem na Hora do Brasil.

As irmãs compartilhavam o dia-a-dia: acordar às 5h, rezar, tomar café-da-manhã, abrir as portas aos alunos, aturar o inferno com um sorrisinho celestial:

- Vinde a mim as criancinhas.

O almoço, o lanche, a ceia. Diário cronometrado, rotina precisa e repetitiva como um cuco. O que uma fazia, a outra imitava. Assim é que mantinham a sensação de família bizarra. Clonagem mais do que consanguinidade.

Quando Irmã Odila começou a ler Nora Roberts, ressoaram feito ciborgues com a mesma programação. A biblioteca da escola herdou fartas quantias dos romances açucarados e enfadonhos.

Quando Irmã Renira quis cantar, abraçaram-se em coro para a páscoa, o natal, corpus christi, o escambau.

Quando Irmã Ofélia pegou gosto pelas palavras-cruzadas, virou febre tifóide: entraram em delírio fanático. A Coquetel virou patrocinadora da missa. Colocavam as brochuras marcando o livro sagrado e perdiam as contas entre os capítulos e os versículos. Gênesis 1:12? E elas saiam contando nos dedos:

- o-r-i-g-e-m-d-a-v-i-d-a. Doze letras.

Tanto que acredito que o Código da Vinci é o casamento entre a bíblia e a palavra-cruzada.

Apesar de previsíveis, as irmãs tinham mistérios embaixo dos hábitos. Ingressavam na congregação com menos de vinte anos, quase unânimes na origem ítalo-germânica, vinham do interior do estado, de famílias de poucos recursos. Mas elas nunca morriam, nem adoeciam. Jamais testemunhei enterro de freira. Daí minha desconfiança de que fossem vampiras.


POR QUE AS FEIRAS NÃO FICAM LOUCAS?

Não era vampirismo.

É o que descobriu o epidemiologista Snowdon de Minnesota. O médico, que também formou-se em escola católica, viu que ali existia um grupo excelente para observação e pesquisa. Nasceu o Estudo das Freiras, um dos marcos na análise científica mundial. Poderia ter sido em meu colégio em Passo Fundo (RS), mas foi em outro de igual nome, em Mankato, Estados Unidos

Snowdon e seus pesquisadores avaliaram 678 congregadas de Notre Dame. Desde 1985 são observadas, têm seus genes analisados, anualmente medidas, testadas cognitivamente, catalogadas e, quando morrem, doam seus cérebros para exame necrótico. Isso para agregar e cruzar dados em relação à velhice e à incidência de doenças degenerativas.

É de lá que algumas conclusões causam furor, por exemplo, por terem notado que aquelas praticantes de palavras-cruzadas tinham 30% menos Alzheimer. Essa promessa bombástica fez com que muitos assumissem ao pé-da-letra, abandonassem dietas em troca do ritual de preencher quadradinhos em busca de vocábulos e sinônimos.

Muito mais aprendemos com seus comportamentos uniformes que o gosto pelas cruzadinhas:

- a irmã mais saudável e mais idosa caminhava 7 milhas todos os dias;

- as irmãs mais bem-humoradas e com experiências mais positivas em relação ao passado tendem à longevidade com saúde;

- aquelas que, quando jovens, escrevem seus votos com maior “densidade de ideias” tendem à envelhecer sem demência;

- aquelas que sabem mais idiomas e que continuam estudando e aprendendo tendem à menos eventos degenerativos.

David Snowdon, em palestra, professa que, se tivesse que escolher entre caminhar e fazer o puzzle do jornal, escolheria colocar o pé na estrada.

(Já que a gente não precisa escolher entre um e outro, sugiro que se completem as charadas em cima da esteira.)

Assista esta crônica falada>>
crônica de @cinthyaverri exibida no @CamaroteTVCOM
dia 14.07.2010. Apresentação: @katiasuman.

Por que as freiras não morrem? [Crônica Falada 14.07.2010]

Para Cassiano de Oliveira Stahl
e sua abrassagem &
Fabrício Bitolinos Carpinejar,
que não desiste de rir
de mim e comigo.













Cérebro com Alzheimer......................................| |.............................. Cérebro Saudável Centenário

POR QUE AS FREIRAS NÃO MORREM?



Cumpri o primeiro grau sob a guarda das freiras. Peculiar a vida delas no colégio Notre Dame de Passo Fundo. Peculiar é um refinamento para pacato.

Os dormitórios eram simples, adequados ao voto de pobreza; as roupas branco-e-pretas, os refeitórios com mesas retangulares, os fogões industriais, as louças, os talheres – tudo em grande quantidade e tudo igual. Algumas tinham o luxo dos radinhos de pilha na cabeceira. Não desligavam nem na Hora do Brasil.

As irmãs compartilhavam o dia-a-dia: acordar às 5h, rezar, tomar café-da-manhã, abrir as portas aos alunos, aturar o inferno com um sorrisinho celestial:

- Vinde a mim as criancinhas.

O almoço, o lanche, a ceia. Diário cronometrado, rotina precisa e repetitiva como um cuco. O que uma fazia, a outra imitava. Assim é que mantinham a sensação de família bizarra. Clonagem mais do que consanguinidade.

Quando Irmã Odila começou a ler Nora Roberts, ressoaram feito ciborgues com a mesma programação. A biblioteca da escola herdou fartas quantias dos romances açucarados e enfadonhos.

Quando Irmã Renira quis cantar, abraçaram-se em coro para a páscoa, o natal, corpus christi, o escambau.

Quando Irmã Ofélia pegou gosto pelas palavras-cruzadas, virou febre tifóide: entraram em delírio fanático. A Coquetel virou patrocinadora da missa. Colocavam as brochuras marcando o livro sagrado e perdiam as contas entre os capítulos e os versículos. Gênesis 1:12? E elas saiam contando nos dedos:

- o-r-i-g-e-m-d-a-v-i-d-a. Doze letras.

Tanto que acredito que o Código da Vinci é o casamento entre a bíblia e a palavra-cruzada.

Apesar de previsíveis, as irmãs tinham mistérios embaixo dos hábitos. Ingressavam na congregação com menos de vinte anos, quase unânimes na origem ítalo-germânica, vinham do interior do estado, de famílias de poucos recursos. Mas elas nunca morriam, nem adoeciam. Jamais testemunhei enterro de freira. Daí minha desconfiança de que fossem vampiras.


POR QUE AS FEIRAS NÃO FICAM LOUCAS?

Não era vampirismo.

É o que descobriu o epidemiologista Snowdon de Minnesota. O médico, que também formou-se em escola católica, viu que ali existia um grupo excelente para observação e pesquisa. Nasceu o Estudo das Freiras, um dos marcos na análise científica mundial. Poderia ter sido em meu colégio em Passo Fundo (RS), mas foi em outro de igual nome, em Mankato, Estados Unidos

Snowdon e seus pesquisadores avaliaram 678 congregadas de Notre Dame. Desde 1985 são observadas, têm seus genes analisados, anualmente medidas, testadas cognitivamente, catalogadas e, quando morrem, doam seus cérebros para exame necrótico. Isso para agregar e cruzar dados em relação à velhice e à incidência de doenças degenerativas.

É de lá que algumas conclusões causam furor, por exemplo, por terem notado que aquelas praticantes de palavras-cruzadas tinham 30% menos Alzheimer. Essa promessa bombástica fez com que muitos assumissem ao pé-da-letra, abandonassem dietas em troca do ritual de preencher quadradinhos em busca de vocábulos e sinônimos.

Muito mais aprendemos com seus comportamentos uniformes que o gosto pelas cruzadinhas:

- a irmã mais saudável e mais idosa caminhava 7 milhas todos os dias;

- as irmãs mais bem-humoradas e com experiências mais positivas em relação ao passado tendem à longevidade com saúde;

- aquelas que, quando jovens, escrevem seus votos com maior “densidade de ideias” tendem à envelhecer sem demência;

- aquelas que sabem mais idiomas e que continuam estudando e aprendendo tendem à menos eventos degenerativos.

David Snowdon, em palestra, professa que, se tivesse que escolher entre caminhar e fazer o puzzle do jornal, escolheria colocar o pé na estrada.

(Já que a gente não precisa escolher entre um e outro, sugiro que se completem as charadas em cima da esteira.)

Assista esta crônica falada>>
crônica de @cinthyaverri exibida no @CamaroteTVCOM
dia 14.07.2010. Apresentação: @katiasuman.

Por que as freiras não morrem? [Crônica Falada 14.07.2010]

Para Cassiano de Oliveira Stahl
e sua abrassagem &
Fabrício Bitolinos Carpinejar,
que não desiste de rir
de mim e comigo.













Cérebro com Alzheimer......................................| |.............................. Cérebro Saudável Centenário

POR QUE AS FREIRAS NÃO MORREM?



Cumpri o primeiro grau sob a guarda das freiras. Peculiar a vida delas no colégio Notre Dame de Passo Fundo. Peculiar é um refinamento para pacato.

Os dormitórios eram simples, adequados ao voto de pobreza; as roupas branco-e-pretas, os refeitórios com mesas retangulares, os fogões industriais, as louças, os talheres – tudo em grande quantidade e tudo igual. Algumas tinham o luxo dos radinhos de pilha na cabeceira. Não desligavam nem na Hora do Brasil.

As irmãs compartilhavam o dia-a-dia: acordar às 5h, rezar, tomar café-da-manhã, abrir as portas aos alunos, aturar o inferno com um sorrisinho celestial:

- Vinde a mim as criancinhas.

O almoço, o lanche, a ceia. Diário cronometrado, rotina precisa e repetitiva como um cuco. O que uma fazia, a outra imitava. Assim é que mantinham a sensação de família bizarra. Clonagem mais do que consanguinidade.

Quando Irmã Odila começou a ler Nora Roberts, ressoaram feito ciborgues com a mesma programação. A biblioteca da escola herdou fartas quantias dos romances açucarados e enfadonhos.

Quando Irmã Renira quis cantar, abraçaram-se em coro para a páscoa, o natal, corpus christi, o escambau.

Quando Irmã Ofélia pegou gosto pelas palavras-cruzadas, virou febre tifóide: entraram em delírio fanático. A Coquetel virou patrocinadora da missa. Colocavam as brochuras marcando o livro sagrado e perdiam as contas entre os capítulos e os versículos. Gênesis 1:12? E elas saiam contando nos dedos:

- o-r-i-g-e-m-d-a-v-i-d-a. Doze letras.

Tanto que acredito que o Código da Vinci é o casamento entre a bíblia e a palavra-cruzada.

Apesar de previsíveis, as irmãs tinham mistérios embaixo dos hábitos. Ingressavam na congregação com menos de vinte anos, quase unânimes na origem ítalo-germânica, vinham do interior do estado, de famílias de poucos recursos. Mas elas nunca morriam, nem adoeciam. Jamais testemunhei enterro de freira. Daí minha desconfiança de que fossem vampiras.


POR QUE AS FEIRAS NÃO FICAM LOUCAS?

Não era vampirismo.

É o que descobriu o epidemiologista Snowdon de Minnesota. O médico, que também formou-se em escola católica, viu que ali existia um grupo excelente para observação e pesquisa. Nasceu o Estudo das Freiras, um dos marcos na análise científica mundial. Poderia ter sido em meu colégio em Passo Fundo (RS), mas foi em outro de igual nome, em Mankato, Estados Unidos

Snowdon e seus pesquisadores avaliaram 678 congregadas de Notre Dame. Desde 1985 são observadas, têm seus genes analisados, anualmente medidas, testadas cognitivamente, catalogadas e, quando morrem, doam seus cérebros para exame necrótico. Isso para agregar e cruzar dados em relação à velhice e à incidência de doenças degenerativas.

É de lá que algumas conclusões causam furor, por exemplo, por terem notado que aquelas praticantes de palavras-cruzadas tinham 30% menos Alzheimer. Essa promessa bombástica fez com que muitos assumissem ao pé-da-letra, abandonassem dietas em troca do ritual de preencher quadradinhos em busca de vocábulos e sinônimos.

Muito mais aprendemos com seus comportamentos uniformes que o gosto pelas cruzadinhas:

- a irmã mais saudável e mais idosa caminhava 7 milhas todos os dias;

- as irmãs mais bem-humoradas e com experiências mais positivas em relação ao passado tendem à longevidade com saúde;

- aquelas que, quando jovens, escrevem seus votos com maior “densidade de ideias” tendem à envelhecer sem demência;

- aquelas que sabem mais idiomas e que continuam estudando e aprendendo tendem à menos eventos degenerativos.

David Snowdon, em palestra, professa que, se tivesse que escolher entre caminhar e fazer o puzzle do jornal, escolheria colocar o pé na estrada.

(Já que a gente não precisa escolher entre um e outro, sugiro que se completem as charadas em cima da esteira.)

Assista esta crônica falada>>
crônica de @cinthyaverri exibida no @CamaroteTVCOM
dia 14.07.2010. Apresentação: @katiasuman.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Toque Feminino: minha seleção masculina.

Projeto rádio experimental da Unisinos:

Toque Feminino - Programa 4 - Futebol from Jaques Machado on Vimeo.

Saiba que todo mundo faz cocô.



Beatriz Martin Vidal's Geese: http://beatriz.carbonmade.com/


Papa, Madonna, Hitler, Churchill, Jesus Cristo e Chico Xavier.
Todos fazem cocô. E ninguém pensa que eles fazem.

É o óbvio. E, mesmo assim, tentamos disfarçar. Tem gente que queria não fazer. 90% das pessoas que sofrem de prisão de ventre são mulheres. Como duvidar que essa enfermidade é cultural?

Quase todos os casos de câncer de intestino têm relação com a prática de trancar. O corpo é quem decide quando está na hora. Julgamos que o momento é inadequado, queríamos a discrição doméstica.

Sou leve por ter tido um pai que tratava o momento com alegria, recolhia o jornal e se dirigia ao banheiro assoviando; sou prevenida por uma mãe que penou o bullying dos irmãos e acabou sofrendo cirurgias decorrentes do mau hábito. Os dois estimulavam a naturalidade ao evacuar.

Descobri o termo polido “ir aos pés” só na faculdade de medicina. A primeira vez que ouvi, pensei que não “ir aos pés” era dificuldade de alongamento. Na minha casa todo mundo fazia cocô e pronto. Não era “cagar” com força pejorativa e boca aberta, não se “cagava” como o termo empurra, quase um palavrão. Não era "número um" e "número dois", como um disfarce algorítimico de ato necessário.

Basta ver o quanto a porta está fechada na linguagem. Há tudo que é tipo de expressão para fugir da simplicidade: “passar um fax”, “soltar um borrão”, “esvaziar o pote”, “pintar a porcelana”, “obrar”, “ver o marronzinho escorregar”, “soltar o João”, “cortar o rabo do macaco”, “colocar o trem para andar”.

Isso já é educar o corpo a não fazer. Tenho dó daqueles que ficam mais de sete dias sem escoar o intestino. Encontro nisso uma dose de loucura.

Constipação tem um quê de delírio de grandeza: a vergonha é só disfarce para querer estar ali no patamar dos destronados de vaso sanitário.

Ovídio ensina na Arte de Amar que um jeito de esquecer a paixão é pensar em seus defeitos, inclusive, imaginar o ser amado defecando.

Ovídio não entendia nada.

Prova é mãe e pai na escatologia amorosa com seus bebês, diálogos intermináveis sobre o aspecto, a forma, a cor e o cheiro das fezes.

Melhor cara-de-pau que prisão de ventre.


(Esta crônica foi falada no TalkRadio, mas o audio não ficou disponível no site da Itapema FM: será que não se pode falar disso na rádio?? XD)

Saiba que todo mundo faz cocô.



Beatriz Martin Vidal's Geese: http://beatriz.carbonmade.com/


Papa, Madonna, Hitler, Churchill, Jesus Cristo e Chico Xavier.
Todos fazem cocô. E ninguém pensa que eles fazem.

É o óbvio. E, mesmo assim, tentamos disfarçar. Tem gente que queria não fazer. 90% das pessoas que sofrem de prisão de ventre são mulheres. Como duvidar que essa enfermidade é cultural?

Quase todos os casos de câncer de intestino têm relação com a prática de trancar. O corpo é quem decide quando está na hora. Julgamos que o momento é inadequado, queríamos a discrição doméstica.

Sou leve por ter tido um pai que tratava o momento com alegria, recolhia o jornal e se dirigia ao banheiro assoviando; sou prevenida por uma mãe que penou o bullying dos irmãos e acabou sofrendo cirurgias decorrentes do mau hábito. Os dois estimulavam a naturalidade ao evacuar.

Descobri o termo polido “ir aos pés” só na faculdade de medicina. A primeira vez que ouvi, pensei que não “ir aos pés” era dificuldade de alongamento. Na minha casa todo mundo fazia cocô e pronto. Não era “cagar” com força pejorativa e boca aberta, não se “cagava” como o termo empurra, quase um palavrão. Não era "número um" e "número dois", como um disfarce algorítimico de ato necessário.

Basta ver o quanto a porta está fechada na linguagem. Há tudo que é tipo de expressão para fugir da simplicidade: “passar um fax”, “soltar um borrão”, “esvaziar o pote”, “pintar a porcelana”, “obrar”, “ver o marronzinho escorregar”, “soltar o João”, “cortar o rabo do macaco”, “colocar o trem para andar”.

Isso já é educar o corpo a não fazer. Tenho dó daqueles que ficam mais de sete dias sem escoar o intestino. Encontro nisso uma dose de loucura.

Constipação tem um quê de delírio de grandeza: a vergonha é só disfarce para querer estar ali no patamar dos destronados de vaso sanitário.

Ovídio ensina na Arte de Amar que um jeito de esquecer a paixão é pensar em seus defeitos, inclusive, imaginar o ser amado defecando.

Ovídio não entendia nada.

Prova é mãe e pai na escatologia amorosa com seus bebês, diálogos intermináveis sobre o aspecto, a forma, a cor e o cheiro das fezes.

Melhor cara-de-pau que prisão de ventre.


(Esta crônica foi falada no TalkRadio, mas o audio não ficou disponível no site da Itapema FM: será que não se pode falar disso na rádio?? XD)

sábado, 10 de julho de 2010

Descansando em Paz.

Sonhar não custa nada.
E o meu sonho é tão real.

EPITÁFIO

Tomava Rivotril esperando
que o outro dormisse.




(sem scanner aqui na serra,
acabei fotografando a morte)

Com sono, sou irascível. Minha lucidez é delicada. Não sei nem como sobrevivi à residência médica e seus plantões. É um mistério para mim de onde arranjei disposição para anos de noites maldormidas. Fico intratável, pior que qualquer criança. Aliás, gastei a flexibilidade na infância. Não sobrou nada.

Já faz muito que zelo pelo tempo com Morpheus, pela higiene mental de sonhar.

Sonolência, pra mim, pesa mais que a fome no quesito irritação.

Cultivei um berço de dois metros quadrados, meu quarto é quase só cama. Lençois perfumados, fronhas rechonchudas, edredons coloridos, luz amena e suave na cabeceira. Tudo para garantir o pouso do corpo com toda majestade.

Vivia como a Michelle Pfeifer na cena de abertura de “Chéri”:

- Nada como uma cama toda só para a gente!

Aí chegou o Bitols.

Primeiro que o sono pra ele é rodapé da lista: o último que começa e o primeiro que termina. Pra ele, cinco horinhas tá mais que bom. Compreendo e admiro a fibra, achava inclusive superlindo que ele fizesse campanhas pra que eu o esperasse até a última gota da noite. Tive que ajudá-lo a entender que eu precisava mais de descanso que ele, que não era indiferença, que dependia do hábito das oito horas e patati-patatá. Ele se dobrou no romance e aceitou que eu fosse primeiro pra cama.

Ufa.

Depois veio a questão do café. Bitols era capaz de beber negrume em forma de tintura de café, um lodo espesso de cafeína, manhã, tarde e noite. Conclusão: agitação física, tremores e fasciculações musculares durante a madrugada (ui, que ódio! Chutinhos no meio do Lago dos Cisnes da minha cabeça). Recomecei a sabatina, agora com o tema anti-café depois das 22h. O moço se debateu, mas aderiu.

Ufa.

Depois veio a questão sonora. Não que eu não estivesse habituada desde a infância com meu pai serrador de troncos que fazia a casa tremer; estava. Mas é que o Bitols só ronca quando tem asma. Não é que eu quisesse um atleta do espirômetro, mas ele fumava muito antes de dormir. E ignorava a existência da bombinha, do nebulizador, essas coisas que reduzem inflamação pulmonar. Resultado: orquestra de barítonos espantadores de guaxinins imaginários na madrugada. Fiz o rancho na farmácia, convenci que era essencial, que baixa de oxigênio mata neurônios, ou seja, a cada noite com hipóxia ele ficava mais burro, etc. Resmungou, mas passou a praticar.

Ufa.

Depois veio a questão das declarações românticas na madrugada. Descobri que quando durmo viro o Shrek. Ele me abraçava de madrugada:

- Branquinha, eu te amo tanto!

- Tá bem. Me deixa dormir.

Juro. É verídico. Magoei Bitolinos com meu condicionamento militar, mas era automático! Rebati, argumentei, consolei. Fiz o que pude. Por fim, pedi pra que não esperasse comportamento polido. Dormindo, sou um ogro. Sinto muito. É questão de vida ou morte. Compreendeu.

Ufa.

Depois veio a questão do acordamento por qualquer motivo. Por exemplo, no avião. Adoro dormir em viagens. Desde pequena, no banco de trás do monza do pai, nos ônibus, em trem. Qualquer sacolejar me embala. Embarco no avião salivando os sonhos que terei, sempre psicodélicos e aventureiros. Bitols não perde a coca-cola jamais. E achava que eu também não queria desperdiçar o refrigerante ou o prazer do serviço de bordo. Ui, que ódio. No meio do Indiana Jones privê o cara me passa suco de laranja. E o pior: era pura gentileza. Como é difícil entender que sono pra mim é sagrado! Como é que a gente reclama de cavalheirismo? Respirei, baixei o volume da raiva, conversamos, entendeu.

Ufa.

Depois veio a questão da rádio nacional matinal ligada na cabeça dele. Abria os olhos logo cedo e já saía dando notícias altíssimas sobre tudo o que aconteceria no dia. E não é pouco: entrevistas, emails, passagens, homenagens, colunas, matérias, pautas, rádio, tv e jornal, o blog, o consultório poético, o twitter, o Vicente, a Mariana, a mãe, o pai, a ex, a outra ex, o salário, o curso de rock, o amigo, a amiga, o almoço. Eu não consigo com tanta alegria. Eu me afogava na excitação. Era o naufrágio do dia em cinco minutos. Dias e dias de desentendimentos matinais. De ogro passei a anão: virei o Zangado. Ganhei má fama de mal-humorada. Mas ele mesmo diagnosticou o descompasso. Reduziu a marcha. Agora levanta, sai de perto e telefona para alguém.

Ufa.

E agora o Bitols me deu folga e foi ao Rio de Janeiro.

Ufa?

Quem diz que eu conseguia dormir?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Nereu Ramos


Foto do acervo pessoal.

De pedras tortas como conchas
E terra rubra de secar a boca
A rua da minha infância
Vestia moldura de calçada baixa
E rampas para alcançar as rodas
Quando asfaltaram a lomba
Inaugurei o piche com a pele.

Nereu Ramos


Foto do acervo pessoal.

De pedras tortas como conchas
E terra rubra de secar a boca
A rua da minha infância
Vestia moldura de calçada baixa
E rampas para alcançar as rodas
Quando asfaltaram a lomba
Inaugurei o piche com a pele.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sobre Meninas e Lobos [Crônica Falada no Camarote TVCOM]

Sylvia Ji's "Señora de las Sombras"


Saí do aeroporto e corri um táxi no Rio de Janeiro. Sol lindo, céu lindo, mar lindo. Não dá pra puxar assunto sobre o tempo com o motorista. Sobram as notícias da semana:

- Que o senhor acha do caso do Bruno, hein?

- Não quero falar sobre esses assuntos. Esses assuntos trazem uma vibração ruim.

Tá bem. Deixei ele fazer as vezes de maestro do diálogo. Saiu-se com um discurso sobre políticos. Emendou em crimes políticos. Espichou com sentenças sobre corrupção e, de repente:

- É, mas a culpa é do pai dessa menina que não criou direito. Não sabe que se envolver com jogador de futebol é assim? Era uma vagabunda. O importante é ter Jesus no coração. Se tivesse Jesus no coração, não tinha terminado assim.

Pronto. Encerrada a conversa. Realmente, trouxe vibrações ruins, ele não devia ter falado sobre isso. Fechou o tempo pra mim. Passei remoendo a afirmação machista daquele representante do trânsito. Generalizei e tive ódio daqueles que acreditam que uma mulher assassinada pode ser culpada da própria violência que sofreu. Raptada, espancada e desacordada. Por fim, mutilada. Virou comida de cachorro. Seus ossos adubaram o concreto. E a culpa foi dela? Ela que escolheu esse destino?

O Brasil mata dez mulheres por dia há dez anos. Sempre por motivos domésticos. Somos o terceiro país no mundo, atrás da Colômbia e da África do Sul. Achamos que somos emergentes, que nosso país cresce a olhos vistos, temos shoppings, hipermercados, rodovias, cidades, gigantes pela própria natureza. Ainda pré-históricos nos relacionamentos.
Mulheres procuram os consultórios por problemas de sexualidade. São reprimidas desde a infância, criadas para a frigidez. Embotadas no afeto do corpo porque isso ta,bém garante sua vida. Como? Porque uma mulher que tem prazer com o próprio marido é perigosa. Ela pode ter prazer também com outros homens. Uma mulher que não se interessa por sexo é uma fonte de prazer para o parceiro. E só.

Em qualquer das camadas socias assistimos a desigualdade como se fosse banal. A capacidade de assombro está fazendo muita falta.

Aqui não estamos precisando de educação para não bater na mulher. Aqui ainda precisamos educar para não matar a mulher.


Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman.
Crônica de @cinthyaverri exibida em 07/07/10.

Sobre Meninas e Lobos [Crônica Falada no Camarote TVCOM]

Sylvia Ji's "Señora de las Sombras"


Saí do aeroporto e corri um táxi no Rio de Janeiro. Sol lindo, céu lindo, mar lindo. Não dá pra puxar assunto sobre o tempo com o motorista. Sobram as notícias da semana:

- Que o senhor acha do caso do Bruno, hein?

- Não quero falar sobre esses assuntos. Esses assuntos trazem uma vibração ruim.

Tá bem. Deixei ele fazer as vezes de maestro do diálogo. Saiu-se com um discurso sobre políticos. Emendou em crimes políticos. Espichou com sentenças sobre corrupção e, de repente:

- É, mas a culpa é do pai dessa menina que não criou direito. Não sabe que se envolver com jogador de futebol é assim? Era uma vagabunda. O importante é ter Jesus no coração. Se tivesse Jesus no coração, não tinha terminado assim.

Pronto. Encerrada a conversa. Realmente, trouxe vibrações ruins, ele não devia ter falado sobre isso. Fechou o tempo pra mim. Passei remoendo a afirmação machista daquele representante do trânsito. Generalizei e tive ódio daqueles que acreditam que uma mulher assassinada pode ser culpada da própria violência que sofreu. Raptada, espancada e desacordada. Por fim, mutilada. Virou comida de cachorro. Seus ossos adubaram o concreto. E a culpa foi dela? Ela que escolheu esse destino?

O Brasil mata dez mulheres por dia há dez anos. Sempre por motivos domésticos. Somos o terceiro país no mundo, atrás da Colômbia e da África do Sul. Achamos que somos emergentes, que nosso país cresce a olhos vistos, temos shoppings, hipermercados, rodovias, cidades, gigantes pela própria natureza. Ainda pré-históricos nos relacionamentos.
Mulheres procuram os consultórios por problemas de sexualidade. São reprimidas desde a infância, criadas para a frigidez. Embotadas no afeto do corpo porque isso ta,bém garante sua vida. Como? Porque uma mulher que tem prazer com o próprio marido é perigosa. Ela pode ter prazer também com outros homens. Uma mulher que não se interessa por sexo é uma fonte de prazer para o parceiro. E só.

Em qualquer das camadas socias assistimos a desigualdade como se fosse banal. A capacidade de assombro está fazendo muita falta.

Aqui não estamos precisando de educação para não bater na mulher. Aqui ainda precisamos educar para não matar a mulher.


Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman.
Crônica de @cinthyaverri exibida em 07/07/10.

Sobre Meninas e Lobos [Crônica Falada no Camarote TVCOM]

Sylvia Ji's "Señora de las Sombras"


Saí do aeroporto e corri um táxi no Rio de Janeiro. Sol lindo, céu lindo, mar lindo. Não dá pra puxar assunto sobre o tempo com o motorista. Sobram as notícias da semana:

- Que o senhor acha do caso do Bruno, hein?

- Não quero falar sobre esses assuntos. Esses assuntos trazem uma vibração ruim.

Tá bem. Deixei ele fazer as vezes de maestro do diálogo. Saiu-se com um discurso sobre políticos. Emendou em crimes políticos. Espichou com sentenças sobre corrupção e, de repente:

- É, mas a culpa é do pai dessa menina que não criou direito. Não sabe que se envolver com jogador de futebol é assim? Era uma vagabunda. O importante é ter Jesus no coração. Se tivesse Jesus no coração, não tinha terminado assim.

Pronto. Encerrada a conversa. Realmente, trouxe vibrações ruins, ele não devia ter falado sobre isso. Fechou o tempo pra mim. Passei remoendo a afirmação machista daquele representante do trânsito. Generalizei e tive ódio daqueles que acreditam que uma mulher assassinada pode ser culpada da própria violência que sofreu. Raptada, espancada e desacordada. Por fim, mutilada. Virou comida de cachorro. Seus ossos adubaram o concreto. E a culpa foi dela? Ela que escolheu esse destino?

O Brasil mata dez mulheres por dia há dez anos. Sempre por motivos domésticos. Somos o terceiro país no mundo, atrás da Colômbia e da África do Sul. Achamos que somos emergentes, que nosso país cresce a olhos vistos, temos shoppings, hipermercados, rodovias, cidades, gigantes pela própria natureza. Ainda pré-históricos nos relacionamentos.
Mulheres procuram os consultórios por problemas de sexualidade. São reprimidas desde a infância, criadas para a frigidez. Embotadas no afeto do corpo porque isso ta,bém garante sua vida. Como? Porque uma mulher que tem prazer com o próprio marido é perigosa. Ela pode ter prazer também com outros homens. Uma mulher que não se interessa por sexo é uma fonte de prazer para o parceiro. E só.

Em qualquer das camadas socias assistimos a desigualdade como se fosse banal. A capacidade de assombro está fazendo muita falta.

Aqui não estamos precisando de educação para não bater na mulher. Aqui ainda precisamos educar para não matar a mulher.


Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman.
Crônica de @cinthyaverri exibida em 07/07/10.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A Perda Necessária [Crônica Falada no Camarote TVCOM]


David Hockney's 'Pool'


Quando me convidaram para morar na Amazônia, eu fui. Pensei que, se não ousasse, jamais saberia o gosto da costela de tampaqui e a alegria de não ter uma profissão definida e experimentar talentos. Quando me chamaram de volta ao Rio Grande do Sul, eu voltei. Se ficasse lá, jamais saberia o que é abrir e gerenciar uma clínica médica.

Se não é por dentro do movimento, não estamos. É claro que toda decisão tem particularidades. Mas conjecturar e nunca definir um lado significa que tentamos ser perfeitos. É porque acreditamos que a premeditação pode nos salvar de errar, embora o perfeccionismo somente aprisione.

A natureza tem um ciclo a ser cumprido. Toda idade termina, a escola modifica, as relações influenciam, o corpo transgride a forma. A única permanência é a da mudança.

Ninguém consegue ficar parado. Na verdade, nem a dor que vive chantageando novas lembranças.

Quando uma coisa trágica acontece, queríamos que isso fosse diferente e nos mantemos imóveis cuidando da ferida. Não arredamos o pé para continuar desfrutando da autoridade do sofrimento.

Estamos no terreno da loucura. Uma ideia de que o tempo para e espera por nós. Nada pode continuar antes que o impasse se resolva. Ficamos congelados.

O pensamento como um disco riscado, um labirinto, um cachorro atrás do rabo.

O rancor e o mal-estar permanentes, a certeza de que amanhã também estaremos mal. Dá até uma esperança a própria desesperança.

Junto e de lambuja sentiremos a ilusão de comandar os eventos: não concordamos com o que aconteceu, não poderia ter acontecido. Portanto não podemos abandoná-lo. O ressentimento é trancar-se numa desculpa.

É esse o tempo da doença: quando tudo está cristalizado, como se a memória esperasse nossa decisão e, com isso, garantimos a ilusão de não enfrentar o fim e de imortalizar a dúvida.

Não é uma questão de rotina; é a repetição do sofrimento. É por dentro desse emaranhado que vamos evitando de encarar e perder de vez o que é para ser perdido, a perda necessária. Sem abrir mão, não podemos ir adiante.

Trauma dá muito trabalho. Perder custa, mas muito mais custa manter-se contra a corrente.


Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman.
Crônica de @cinthyaverri exibida em 30/06/10.

A Perda Necessária [Crônica Falada no Camarote TVCOM]


David Hockney's 'Pool'


Quando me convidaram para morar na Amazônia, eu fui. Pensei que, se não ousasse, jamais saberia o gosto da costela de tambaqui e a alegria de não ter uma profissão definida e experimentar talentos. Quando me chamaram de volta ao Rio Grande do Sul, eu voltei. Se ficasse lá, jamais saberia o que é abrir e gerenciar uma clínica médica.

Se não é por dentro do movimento, não estamos. É claro que toda decisão tem particularidades. Mas conjecturar e nunca definir um lado significa que tentamos ser perfeitos. É porque acreditamos que a premeditação pode nos salvar de errar, embora o perfeccionismo somente aprisione.

A natureza tem um ciclo a ser cumprido. Toda idade termina, a escola modifica, as relações influenciam, o corpo transgride a forma. A única permanência é a da mudança.

Ninguém consegue ficar parado. Na verdade, nem a dor que vive chantageando novas lembranças.

Quando uma coisa trágica acontece, queríamos que isso fosse diferente e nos mantemos imóveis cuidando da ferida. Não arredamos o pé para continuar desfrutando da autoridade do sofrimento.

Estamos no terreno da loucura. Uma ideia de que o tempo para e espera por nós. Nada pode continuar antes que o impasse se resolva. Ficamos congelados.

O pensamento como um disco riscado, um labirinto, um cachorro atrás do rabo.

O rancor e o mal-estar permanentes, a certeza de que amanhã também estaremos mal. Dá até uma esperança a própria desesperança.

Junto e de lambuja sentiremos a ilusão de comandar os eventos: não concordamos com o que aconteceu, não poderia ter acontecido. Portanto não podemos abandoná-lo. O ressentimento é trancar-se numa desculpa.

É esse o tempo da doença: quando tudo está cristalizado, como se a memória esperasse nossa decisão e, com isso, garantimos a ilusão de não enfrentar o fim e de imortalizar a dúvida.

Não é uma questão de rotina; é a repetição do sofrimento. É por dentro desse emaranhado que vamos evitando de encarar e perder de vez o que é para ser perdido, a perda necessária. Sem abrir mão, não podemos ir adiante.

Trauma dá muito trabalho. Perder custa, mas muito mais custa manter-se contra a corrente.


Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman.
Crônica de @cinthyaverri exibida em 30/06/10.

A Perda Necessária [Crônica Falada no Camarote TVCOM]


David Hockney's 'Pool'


Quando me convidaram para morar na Amazônia, eu fui. Pensei que, se não ousasse, jamais saberia o gosto da costela de tambaqui e a alegria de não ter uma profissão definida e experimentar talentos. Quando me chamaram de volta ao Rio Grande do Sul, eu voltei. Se ficasse lá, jamais saberia o que é abrir e gerenciar uma clínica médica.

Se não é por dentro do movimento, não estamos. É claro que toda decisão tem particularidades. Mas conjecturar e nunca definir um lado significa que tentamos ser perfeitos. É porque acreditamos que a premeditação pode nos salvar de errar, embora o perfeccionismo somente aprisione.

A natureza tem um ciclo a ser cumprido. Toda idade termina, a escola modifica, as relações influenciam, o corpo transgride a forma. A única permanência é a da mudança.

Ninguém consegue ficar parado. Na verdade, nem a dor que vive chantageando novas lembranças.

Quando uma coisa trágica acontece, queríamos que isso fosse diferente e nos mantemos imóveis cuidando da ferida. Não arredamos o pé para continuar desfrutando da autoridade do sofrimento.

Estamos no terreno da loucura. Uma ideia de que o tempo para e espera por nós. Nada pode continuar antes que o impasse se resolva. Ficamos congelados.

O pensamento como um disco riscado, um labirinto, um cachorro atrás do rabo.

O rancor e o mal-estar permanentes, a certeza de que amanhã também estaremos mal. Dá até uma esperança a própria desesperança.

Junto e de lambuja sentiremos a ilusão de comandar os eventos: não concordamos com o que aconteceu, não poderia ter acontecido. Portanto não podemos abandoná-lo. O ressentimento é trancar-se numa desculpa.

É esse o tempo da doença: quando tudo está cristalizado, como se a memória esperasse nossa decisão e, com isso, garantimos a ilusão de não enfrentar o fim e de imortalizar a dúvida.

Não é uma questão de rotina; é a repetição do sofrimento. É por dentro desse emaranhado que vamos evitando de encarar e perder de vez o que é para ser perdido, a perda necessária. Sem abrir mão, não podemos ir adiante.

Trauma dá muito trabalho. Perder custa, mas muito mais custa manter-se contra a corrente.


Crônica Falada é um quadro do programa Camarote TVCOM.
Apresentação @katiasuman.
Crônica de @cinthyaverri exibida em 30/06/10.

SUPERPAIS [Crônica Falada no TalkRadio]

Para Katia Suman,
que tem coragem
de verdade.



Raphael's "The Small Cowper Maddona"

Clarice Lispector uma vez escreveu que o maior desafio de toda mãe é aceitar ficar cada vez menor. Limitar a própria importância e permitir autonomia a um filho é a missão central da criação de alguém.

Cada movimento é uma oportunidade para testemunhar o milagre da competência: temos mais e mais dela a cada dia.

Uma amiga me contou que trocou de empregada. Foi difícil aceitar a saída da doméstica que acompanhava a família há mais de dez anos. Temia ao antecipar a dor que sentiria a filha. Afinal, desde que nasceu, recebia o amparo da senhora. Na limpeza não ia tão bem, mas topava qualquer brincadeira da menina. Eram grandes companheiras.

O resultado foi outro. A criança sentiu a saída, mas em poucos dias estava adaptada, feliz com a funcionária nova e mais: revelou que essa fazia o melhor chá da vida dela. Minha amiga ficou intrigada, que conversa era aquela de chá melhor da vida? O que será que ela infiltrava na xícara?

À tarde foi espiar o evento e descobrir a proeza. Qual não foi a surpresa quando constatou que o chá era o mesmo, a louça ia igual.

Perguntou para a filha qual era a melhoria tão especial. Sem piscar, já tascou a sentença:

- É que ela me entrega muito quente! E eu mesma é que decido quando está bom pra tomar.

Até o chá pode ter aventura. É uma alegria tomar as próprias decisões. Um desejo natural da infância que precisa ser observado e atendido.

Chega a ser cansativo o número de pais queixosos do comportamento dependente de seus jovens, da demora em se independizar. Querem que o filho assuma a própria vida, a economia, as responsabilidades.

Mas como vão proceder ou seguir adiante essas pessoas cujos pais jamais deixaram o posto de grandes decisores? De superprotetores? De sábios poderosos da casa? De geradores de todas as condutas?

É um crime descuidar uma pessoa que tem necessidades especiais. É um crime criar uma pessoa perfeitamente capaz com cuidados desnecessários.

A temperatura é melhor que se decida cada um. A mãe e o pai que aprendam a suportar sua ausência. A ausência é tão importante quanto a presença na hora de crescer.


>>Ouça Esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa TalkRadio na Rádio Itapema. Apresentação @katiasuman. Crônica de @cinthyaverri exibida em 29.06.2010
(arraste a rolagem para 35'de programa):

domingo, 4 de julho de 2010

SUPERPAIS [Crônica Falada no TalkRadio]

Para Katia Suman,
que tem coragem
de verdade.



Raphael's "The Small Cowper Maddona"

Clarice Lispector uma vez escreveu que o maior desafio de toda mãe é aceitar ficar cada vez menor. Limitar a própria importância e permitir autonomia a um filho é a missão central da criação de alguém.

Cada movimento é uma oportunidade para testemunhar o milagre da competência: temos mais e mais dela a cada dia.

Uma amiga me contou que trocou de empregada. Foi difícil aceitar a saída da doméstica que acompanhava a família há mais de dez anos. Temia ao antecipar a dor que sentiria a filha. Afinal, desde que nasceu, recebia o amparo da senhora. Na limpeza não ia tão bem, mas topava qualquer brincadeira da menina. Eram grandes companheiras.

O resultado foi outro. A criança sentiu a saída, mas em poucos dias estava adaptada, feliz com a funcionária nova e mais: revelou que essa fazia o melhor chá da vida dela. Minha amiga ficou intrigada, que conversa era aquela de chá melhor da vida? O que será que ela infiltrava na xícara?

À tarde foi espiar o evento e descobrir a proeza. Qual não foi a surpresa quando constatou que o chá era o mesmo, a louça ia igual.

Perguntou para a filha qual era a melhoria tão especial. Sem piscar, já tascou a sentença:

- É que ela me entrega muito quente! E eu mesma é que decido quando está bom pra tomar.

Até o chá pode ter aventura. É uma alegria tomar as próprias decisões. Um desejo natural da infância que precisa ser observado e atendido.

Chega a ser cansativo o número de pais queixosos do comportamento dependente de seus jovens, da demora em se independizar. Querem que o filho assuma a própria vida, a economia, as responsabilidades.

Mas como vão proceder ou seguir adiante essas pessoas cujos pais jamais deixaram o posto de grandes decisores? De superprotetores? De sábios poderosos da casa? De geradores de todas as condutas?

É um crime descuidar uma pessoa que tem necessidades especiais. É um crime criar uma pessoa perfeitamente capaz com cuidados desnecessários.

A temperatura é melhor que se decida cada um. A mãe e o pai que aprendam a suportar sua ausência. A ausência é tão importante quanto a presença na hora de crescer.


>>Ouça Esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa TalkRadio na Rádio Itapema. Apresentação @katiasuman. Crônica de @cinthyaverri exibida em 29.06.2010
(arraste a rolagem para 35'de programa):

SUPERPAIS [Crônica Falada no TalkRadio]

Para Katia Suman,
que tem coragem
de verdade.



Raphael's "The Small Cowper Maddona"

Clarice Lispector uma vez escreveu que o maior desafio de toda mãe é aceitar ficar cada vez menor. Limitar a própria importância e permitir autonomia a um filho é a missão central da criação de alguém.

Cada movimento é uma oportunidade para testemunhar o milagre da competência: temos mais e mais dela a cada dia.

Uma amiga me contou que trocou de empregada. Foi difícil aceitar a saída da doméstica que acompanhava a família há mais de dez anos. Temia ao antecipar a dor que sentiria a filha. Afinal, desde que nasceu, recebia o amparo da senhora. Na limpeza não ia tão bem, mas topava qualquer brincadeira da menina. Eram grandes companheiras.

O resultado foi outro. A criança sentiu a saída, mas em poucos dias estava adaptada, feliz com a funcionária nova e mais: revelou que essa fazia o melhor chá da vida dela. Minha amiga ficou intrigada, que conversa era aquela de chá melhor da vida? O que será que ela infiltrava na xícara?

À tarde foi espiar o evento e descobrir a proeza. Qual não foi a surpresa quando constatou que o chá era o mesmo, a louça ia igual.

Perguntou para a filha qual era a melhoria tão especial. Sem piscar, já tascou a sentença:

- É que ela me entrega muito quente! E eu mesma é que decido quando está bom pra tomar.

Até o chá pode ter aventura. É uma alegria tomar as próprias decisões. Um desejo natural da infância que precisa ser observado e atendido.

Chega a ser cansativo o número de pais queixosos do comportamento dependente de seus jovens, da demora em se independizar. Querem que o filho assuma a própria vida, a economia, as responsabilidades.

Mas como vão proceder ou seguir adiante essas pessoas cujos pais jamais deixaram o posto de grandes decisores? De superprotetores? De sábios poderosos da casa? De geradores de todas as condutas?

É um crime descuidar uma pessoa que tem necessidades especiais. É um crime criar uma pessoa perfeitamente capaz com cuidados desnecessários.

A temperatura é melhor que se decida cada um. A mãe e o pai que aprendam a suportar sua ausência. A ausência é tão importante quanto a presença na hora de crescer.


>>Ouça Esta Crônica Falada
Crônica Falada é um quadro do programa TalkRadio na Rádio Itapema. Apresentação @katiasuman. Crônica de @cinthyaverri exibida em 29.06.2010
(arraste a rolagem para 35'de programa):

sábado, 3 de julho de 2010

Há vida após a Copa

ZERO HORA
03 de julho de 2010 | N° 16385
Geral | Página 3

O DIA SEGUINTE
Há vida após a Copa
Cínthya Verri*



O que fazer agora que o Brasil saiu da Copa e todos já tinham programado as duas próximas semanas de festa? Foi uma quinzena de entusiasmo e apreensão, onde os problemas poderiam ser adiados, poderíamos nos endividar, a euforia pelo próximo jogo subestimava qualquer responsabilidade sobre casamento, filhos, negócios.


Nada era importante o suficiente para ser resolvido. Ficava-se deslizando entre dois sentimentos, duvidar e acreditar, sendo que quem desconfiava dava sinal de falta de patriotismo.

Já não se tem certeza se a torcida era pelo país ou para interromper o trabalho de manhã ou de tarde e emendar com a comemoração.

Toda idealização traz orfandade. É uma falsa companhia.

O que acontece depois do primeiro dia do fim de um transe coletivo? O rumor inicial é de melancolia: um encanto se quebra, e não existe substituto para colocar no lugar. Chora-se como diante do falecimento de um ente querido. É mais engasgo do que lágrima. Um susto de como serão as coisas daqui para frente. Como a Copa é realizada de quatro em quatro anos, a sensação é de que não haverá vida até 2014.

É um momento de revolta próprio da melancolia, que se transforma em indiferença com a repetição do tema. Curiosamente, o impulso é aceitar com facilidade a derrota para a Holanda. Deve-se entender que aceitar “fácil” é modo de dizer, espécie de truque, como uma criança que confessa, diante da perda de um brinquedo, que não gostava mesmo daquela diversão.

São as primeiras 12 horas, até vir a raiva, a procura louca para pôr a frustração na conta de alguém. Definir um culpado pela tragédia. Trata-se de um mecanismo de proteção: como não funcionou a indiferença e a pontada continua incomodando, o jeito é arrumar logo um bode expiatório para se livrar de qualquer relação com a saída precoce do time.

O preferido será o técnico Dunga. A fé migra com rapidez para o ódio. Ele será identificado como o teimoso e orgulhoso que não convocou Ronaldinho e Ganso e naufragou nas quartas de final como o time de Parreira. Basta acompanhar o Twitter para descobrir que a temporada de caça às bruxas está aberta. Entre os principais tópicos, “Dunga Burro” e “Felipe Melo” ganham as preferências dos desaforos. Até sobrou para Mick Jagger, considerado pé-frio, já que torceu para Inglaterra (que perdeu para a Alemanha) e em seguida para o Brasil (em homenagem ao filho).

Vencer é obrigação, perder é fatalidade

A repulsa vai durar dois dias, entre sábado e domingo. Não se falará de outra coisa que não teorias de conspiração que culminaram na desclassificação. Todos já sabiam que isso aconteceria. Não haverá surpresa. Entra-se no terreno do “se”, o que poderia ter ocorrido com alguma mudança na ordem natural do jogo. Em nenhum instante confia-se na casualidade. A derrota é reconhecida como um erro, não uma eventualidade.

É como se estivéssemos preparados somente para a vitória, representada no hexacampeonato, e nunca para a derrota. Vencer é compreendido como uma obrigação, perder é uma fatalidade. Mas a lógica é justamente o inverso. Esta é a 19ª Copa do Mundo, e o Brasil já chegou a sete finais. Somos bem mais preparados para perder do que para ganhar. É a nossa 12ª desclassificação ao longo de 80 anos. Portanto, é uma novidade bem antiga.

O raciocínio esportivo não pode abolir o lance de dados. Comparar é sadio. Xadrez é um jogo de inteligência: decorar combinações de jogadas e antecipar movimentos fazem um bom enxadrista. Se alguém perdeu a partida, foi porque não soube jogar. Gamão é o contrário, não porque em geral está embaixo dos tabuleiros de xadrez, mas porque funciona com dados. Por mais esperteza e técnica, se alguém ganhou ou perdeu, valeu-se da sorte.

O futebol dispensa o tabuleiro e abraça o acaso. O dado do futebol é roliço, oco, redondo, varia com o vento, com a pegada, com o couro. General do campo, o azar traz o terreno místico que se materializa durante 90 minutos de ações inesperadas. Até a jogada ensaiada depende de macumba. Não há sapo enterrado que um dia não cumpra a promessa de transformar a zebra na rainha da selva.

Precisaríamos de uma final de no mínimo 23 jogos para determinar o vencedor de uma maneira considerada estatisticamente significativa – o que indica que o time mais fraco seria coroado campeão em menos de 5% das vezes. Ou seja, só a partir de 23 contendas entre dois times se poderia determinar o melhor – o melhor de verdade. Sem o dedo do acaso. Isso é obviamente inviável num evento que paralisa o mundo, que cola os pares de olhos na tela como um magneto poderoso. Mais de duas dezenas de finais em 160 dias até o resultado.

Melhor aguentar a desilusão do que tentar provar pelo cansaço quem merecia levantar a Copa. No fundo, justiça no futebol desclassificaria qualquer torcida.

CINTHYA VERRI* | *Médica e psicoterapeuta

Saiu na Zero de hoje [Há vida após a Copa]

ZERO HORA
03 de julho de 2010 | N° 16385
Geral | Página 3

O DIA SEGUINTE
Há vida após a Copa
Cínthya Verri*



O que fazer agora que o Brasil saiu da Copa e todos já tinham programado as duas próximas semanas de festa? Foi uma quinzena de entusiasmo e apreensão, onde os problemas poderiam ser adiados, poderíamos nos endividar, a euforia pelo próximo jogo subestimava qualquer responsabilidade sobre casamento, filhos, negócios.


Nada era importante o suficiente para ser resolvido. Ficava-se deslizando entre dois sentimentos, duvidar e acreditar, sendo que quem desconfiava dava sinal de falta de patriotismo.

Já não se tem certeza se a torcida era pelo país ou para interromper o trabalho de manhã ou de tarde e emendar com a comemoração.

Toda idealização traz orfandade. É uma falsa companhia.

O que acontece depois do primeiro dia do fim de um transe coletivo? O rumor inicial é de melancolia: um encanto se quebra, e não existe substituto para colocar no lugar. Chora-se como diante do falecimento de um ente querido. É mais engasgo do que lágrima. Um susto de como serão as coisas daqui para frente. Como a Copa é realizada de quatro em quatro anos, a sensação é de que não haverá vida até 2014.

É um momento de revolta próprio da melancolia, que se transforma em indiferença com a repetição do tema. Curiosamente, o impulso é aceitar com facilidade a derrota para a Holanda. Deve-se entender que aceitar “fácil” é modo de dizer, espécie de truque, como uma criança que confessa, diante da perda de um brinquedo, que não gostava mesmo daquela diversão.

São as primeiras 12 horas, até vir a raiva, a procura louca para pôr a frustração na conta de alguém. Definir um culpado pela tragédia. Trata-se de um mecanismo de proteção: como não funcionou a indiferença e a pontada continua incomodando, o jeito é arrumar logo um bode expiatório para se livrar de qualquer relação com a saída precoce do time.

O preferido será o técnico Dunga. A fé migra com rapidez para o ódio. Ele será identificado como o teimoso e orgulhoso que não convocou Ronaldinho e Ganso e naufragou nas quartas de final como o time de Parreira. Basta acompanhar o Twitter para descobrir que a temporada de caça às bruxas está aberta. Entre os principais tópicos, “Dunga Burro” e “Felipe Melo” ganham as preferências dos desaforos. Até sobrou para Mick Jagger, considerado pé-frio, já que torceu para Inglaterra (que perdeu para a Alemanha) e em seguida para o Brasil (em homenagem ao filho).

Vencer é obrigação, perder é fatalidade

A repulsa vai durar dois dias, entre sábado e domingo. Não se falará de outra coisa que não teorias de conspiração que culminaram na desclassificação. Todos já sabiam que isso aconteceria. Não haverá surpresa. Entra-se no terreno do “se”, o que poderia ter ocorrido com alguma mudança na ordem natural do jogo. Em nenhum instante confia-se na casualidade. A derrota é reconhecida como um erro, não uma eventualidade.

É como se estivéssemos preparados somente para a vitória, representada no hexacampeonato, e nunca para a derrota. Vencer é compreendido como uma obrigação, perder é uma fatalidade. Mas a lógica é justamente o inverso. Esta é a 19ª Copa do Mundo, e o Brasil já chegou a sete finais. Somos bem mais preparados para perder do que para ganhar. É a nossa 12ª desclassificação ao longo de 80 anos. Portanto, é uma novidade bem antiga.

O raciocínio esportivo não pode abolir o lance de dados. Comparar é sadio. Xadrez é um jogo de inteligência: decorar combinações de jogadas e antecipar movimentos fazem um bom enxadrista. Se alguém perdeu a partida, foi porque não soube jogar. Gamão é o contrário, não porque em geral está embaixo dos tabuleiros de xadrez, mas porque funciona com dados. Por mais esperteza e técnica, se alguém ganhou ou perdeu, valeu-se da sorte.

O futebol dispensa o tabuleiro e abraça o acaso. O dado do futebol é roliço, oco, redondo, varia com o vento, com a pegada, com o couro. General do campo, o azar traz o terreno místico que se materializa durante 90 minutos de ações inesperadas. Até a jogada ensaiada depende de macumba. Não há sapo enterrado que um dia não cumpra a promessa de transformar a zebra na rainha da selva.

Precisaríamos de uma final de no mínimo 23 jogos para determinar o vencedor de uma maneira considerada estatisticamente significativa – o que indica que o time mais fraco seria coroado campeão em menos de 5% das vezes. Ou seja, só a partir de 23 contendas entre dois times se poderia determinar o melhor – o melhor de verdade. Sem o dedo do acaso. Isso é obviamente inviável num evento que paralisa o mundo, que cola os pares de olhos na tela como um magneto poderoso. Mais de duas dezenas de finais em 160 dias até o resultado.

Melhor aguentar a desilusão do que tentar provar pelo cansaço quem merecia levantar a Copa. No fundo, justiça no futebol desclassificaria qualquer torcida.

CINTHYA VERRI* | *Médica e psicoterapeuta

Saiu na Zero de hoje [Há vida após a Copa]

ZERO HORA
03 de julho de 2010 | N° 16385
Geral | Página 3

O DIA SEGUINTE
Há vida após a Copa
Cínthya Verri*



O que fazer agora que o Brasil saiu da Copa e todos já tinham programado as duas próximas semanas de festa? Foi uma quinzena de entusiasmo e apreensão, onde os problemas poderiam ser adiados, poderíamos nos endividar, a euforia pelo próximo jogo subestimava qualquer responsabilidade sobre casamento, filhos, negócios.


Nada era importante o suficiente para ser resolvido. Ficava-se deslizando entre dois sentimentos, duvidar e acreditar, sendo que quem desconfiava dava sinal de falta de patriotismo.

Já não se tem certeza se a torcida era pelo país ou para interromper o trabalho de manhã ou de tarde e emendar com a comemoração.

Toda idealização traz orfandade. É uma falsa companhia.

O que acontece depois do primeiro dia do fim de um transe coletivo? O rumor inicial é de melancolia: um encanto se quebra, e não existe substituto para colocar no lugar. Chora-se como diante do falecimento de um ente querido. É mais engasgo do que lágrima. Um susto de como serão as coisas daqui para frente. Como a Copa é realizada de quatro em quatro anos, a sensação é de que não haverá vida até 2014.

É um momento de revolta próprio da melancolia, que se transforma em indiferença com a repetição do tema. Curiosamente, o impulso é aceitar com facilidade a derrota para a Holanda. Deve-se entender que aceitar “fácil” é modo de dizer, espécie de truque, como uma criança que confessa, diante da perda de um brinquedo, que não gostava mesmo daquela diversão.

São as primeiras 12 horas, até vir a raiva, a procura louca para pôr a frustração na conta de alguém. Definir um culpado pela tragédia. Trata-se de um mecanismo de proteção: como não funcionou a indiferença e a pontada continua incomodando, o jeito é arrumar logo um bode expiatório para se livrar de qualquer relação com a saída precoce do time.

O preferido será o técnico Dunga. A fé migra com rapidez para o ódio. Ele será identificado como o teimoso e orgulhoso que não convocou Ronaldinho e Ganso e naufragou nas quartas de final como o time de Parreira. Basta acompanhar o Twitter para descobrir que a temporada de caça às bruxas está aberta. Entre os principais tópicos, “Dunga Burro” e “Felipe Melo” ganham as preferências dos desaforos. Até sobrou para Mick Jagger, considerado pé-frio, já que torceu para Inglaterra (que perdeu para a Alemanha) e em seguida para o Brasil (em homenagem ao filho).

Vencer é obrigação, perder é fatalidade

A repulsa vai durar dois dias, entre sábado e domingo. Não se falará de outra coisa que não teorias de conspiração que culminaram na desclassificação. Todos já sabiam que isso aconteceria. Não haverá surpresa. Entra-se no terreno do “se”, o que poderia ter ocorrido com alguma mudança na ordem natural do jogo. Em nenhum instante confia-se na casualidade. A derrota é reconhecida como um erro, não uma eventualidade.

É como se estivéssemos preparados somente para a vitória, representada no hexacampeonato, e nunca para a derrota. Vencer é compreendido como uma obrigação, perder é uma fatalidade. Mas a lógica é justamente o inverso. Esta é a 19ª Copa do Mundo, e o Brasil já chegou a sete finais. Somos bem mais preparados para perder do que para ganhar. É a nossa 12ª desclassificação ao longo de 80 anos. Portanto, é uma novidade bem antiga.

O raciocínio esportivo não pode abolir o lance de dados. Comparar é sadio. Xadrez é um jogo de inteligência: decorar combinações de jogadas e antecipar movimentos fazem um bom enxadrista. Se alguém perdeu a partida, foi porque não soube jogar. Gamão é o contrário, não porque em geral está embaixo dos tabuleiros de xadrez, mas porque funciona com dados. Por mais esperteza e técnica, se alguém ganhou ou perdeu, valeu-se da sorte.

O futebol dispensa o tabuleiro e abraça o acaso. O dado do futebol é roliço, oco, redondo, varia com o vento, com a pegada, com o couro. General do campo, o azar traz o terreno místico que se materializa durante 90 minutos de ações inesperadas. Até a jogada ensaiada depende de macumba. Não há sapo enterrado que um dia não cumpra a promessa de transformar a zebra na rainha da selva.

Precisaríamos de uma final de no mínimo 23 jogos para determinar o vencedor de uma maneira considerada estatisticamente significativa – o que indica que o time mais fraco seria coroado campeão em menos de 5% das vezes. Ou seja, só a partir de 23 contendas entre dois times se poderia determinar o melhor – o melhor de verdade. Sem o dedo do acaso. Isso é obviamente inviável num evento que paralisa o mundo, que cola os pares de olhos na tela como um magneto poderoso. Mais de duas dezenas de finais em 160 dias até o resultado.

Melhor aguentar a desilusão do que tentar provar pelo cansaço quem merecia levantar a Copa. No fundo, justiça no futebol desclassificaria qualquer torcida.

CINTHYA VERRI* | *Médica e psicoterapeuta