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sábado, 3 de julho de 2010

Há vida após a Copa

ZERO HORA
03 de julho de 2010 | N° 16385
Geral | Página 3

O DIA SEGUINTE
Há vida após a Copa
Cínthya Verri*



O que fazer agora que o Brasil saiu da Copa e todos já tinham programado as duas próximas semanas de festa? Foi uma quinzena de entusiasmo e apreensão, onde os problemas poderiam ser adiados, poderíamos nos endividar, a euforia pelo próximo jogo subestimava qualquer responsabilidade sobre casamento, filhos, negócios.


Nada era importante o suficiente para ser resolvido. Ficava-se deslizando entre dois sentimentos, duvidar e acreditar, sendo que quem desconfiava dava sinal de falta de patriotismo.

Já não se tem certeza se a torcida era pelo país ou para interromper o trabalho de manhã ou de tarde e emendar com a comemoração.

Toda idealização traz orfandade. É uma falsa companhia.

O que acontece depois do primeiro dia do fim de um transe coletivo? O rumor inicial é de melancolia: um encanto se quebra, e não existe substituto para colocar no lugar. Chora-se como diante do falecimento de um ente querido. É mais engasgo do que lágrima. Um susto de como serão as coisas daqui para frente. Como a Copa é realizada de quatro em quatro anos, a sensação é de que não haverá vida até 2014.

É um momento de revolta próprio da melancolia, que se transforma em indiferença com a repetição do tema. Curiosamente, o impulso é aceitar com facilidade a derrota para a Holanda. Deve-se entender que aceitar “fácil” é modo de dizer, espécie de truque, como uma criança que confessa, diante da perda de um brinquedo, que não gostava mesmo daquela diversão.

São as primeiras 12 horas, até vir a raiva, a procura louca para pôr a frustração na conta de alguém. Definir um culpado pela tragédia. Trata-se de um mecanismo de proteção: como não funcionou a indiferença e a pontada continua incomodando, o jeito é arrumar logo um bode expiatório para se livrar de qualquer relação com a saída precoce do time.

O preferido será o técnico Dunga. A fé migra com rapidez para o ódio. Ele será identificado como o teimoso e orgulhoso que não convocou Ronaldinho e Ganso e naufragou nas quartas de final como o time de Parreira. Basta acompanhar o Twitter para descobrir que a temporada de caça às bruxas está aberta. Entre os principais tópicos, “Dunga Burro” e “Felipe Melo” ganham as preferências dos desaforos. Até sobrou para Mick Jagger, considerado pé-frio, já que torceu para Inglaterra (que perdeu para a Alemanha) e em seguida para o Brasil (em homenagem ao filho).

Vencer é obrigação, perder é fatalidade

A repulsa vai durar dois dias, entre sábado e domingo. Não se falará de outra coisa que não teorias de conspiração que culminaram na desclassificação. Todos já sabiam que isso aconteceria. Não haverá surpresa. Entra-se no terreno do “se”, o que poderia ter ocorrido com alguma mudança na ordem natural do jogo. Em nenhum instante confia-se na casualidade. A derrota é reconhecida como um erro, não uma eventualidade.

É como se estivéssemos preparados somente para a vitória, representada no hexacampeonato, e nunca para a derrota. Vencer é compreendido como uma obrigação, perder é uma fatalidade. Mas a lógica é justamente o inverso. Esta é a 19ª Copa do Mundo, e o Brasil já chegou a sete finais. Somos bem mais preparados para perder do que para ganhar. É a nossa 12ª desclassificação ao longo de 80 anos. Portanto, é uma novidade bem antiga.

O raciocínio esportivo não pode abolir o lance de dados. Comparar é sadio. Xadrez é um jogo de inteligência: decorar combinações de jogadas e antecipar movimentos fazem um bom enxadrista. Se alguém perdeu a partida, foi porque não soube jogar. Gamão é o contrário, não porque em geral está embaixo dos tabuleiros de xadrez, mas porque funciona com dados. Por mais esperteza e técnica, se alguém ganhou ou perdeu, valeu-se da sorte.

O futebol dispensa o tabuleiro e abraça o acaso. O dado do futebol é roliço, oco, redondo, varia com o vento, com a pegada, com o couro. General do campo, o azar traz o terreno místico que se materializa durante 90 minutos de ações inesperadas. Até a jogada ensaiada depende de macumba. Não há sapo enterrado que um dia não cumpra a promessa de transformar a zebra na rainha da selva.

Precisaríamos de uma final de no mínimo 23 jogos para determinar o vencedor de uma maneira considerada estatisticamente significativa – o que indica que o time mais fraco seria coroado campeão em menos de 5% das vezes. Ou seja, só a partir de 23 contendas entre dois times se poderia determinar o melhor – o melhor de verdade. Sem o dedo do acaso. Isso é obviamente inviável num evento que paralisa o mundo, que cola os pares de olhos na tela como um magneto poderoso. Mais de duas dezenas de finais em 160 dias até o resultado.

Melhor aguentar a desilusão do que tentar provar pelo cansaço quem merecia levantar a Copa. No fundo, justiça no futebol desclassificaria qualquer torcida.

CINTHYA VERRI* | *Médica e psicoterapeuta

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