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sábado, 26 de dezembro de 2009

Meio Céu


M. C. Escher´s Sky and Water I, 1938



Estávamos em uma festa no Ocidente. O calor, tipicamente infernal; lotação similar a do presídio central. Eu me esgueirando até o bar para pedir uma vodka, só com gelo, por favor. Acenava pateticamente o dinheiro como uma caneca entre as grades. Alguns minutos naquele moedor de carne foram mais do que pude suportar. Desisti.

Encarei a fila em direção à pista de dança, algo como andar atrás do trio elétrico em Salvador sem abadá. Alcancei minhas amigas, aliviadíssima. Quando aquela tortura ia terminar? Meu sofrimento devia estar exposto, saindo pelos poros, porque um cara chegou assim:

- Não agüenta mais?

Eu fui obrigada a retribuir sorrindo, admito que me pegou com a guarda baixa.

- Trouxe tua vodka só com gelo.

Agora, aquilo sim não era comum. Não no Ocidente. Não com a multidão da corrida de São Silvestre reunida em uma casa noturna de quase trinta anos de idade. Fiquei pálida; senti o sangue fugir da pele. Olhei atônita. Ele me alcançou o famigerado copinho plástico.

Como se não bastasse a aparição suspeita de perseguidor, o rapaz entabulou a conversa assim:

- É de Peixes, né?

- Não, de onde que tirou esta informação?

- Desculpa, quis dizer que seu ascendente é em Peixes.

Tremi um pouco a base, o gelo havia derretido, o álcool vinha mais puro. Gente, era uma maldição paranormal, o sujeito.

Fiz um ar blasé tentando não aparentar surpresa. Tipo presa que se finge de morta. Após acertar a segunda tentativa, acho que o cara ganhou confiança. Continuou um discurso sobre como era sutil aquilo sobre mim, teceu rápido diagnóstico de que minha lua residia em Gêmeos pelas expressões atordoadas e isso disfarçava muito a influência de virgem como signo solar.

Quase gozei sozinha.

Certo, certo. Odeio cantada zodiacal, mas esse cara era diferente, ele tinha me conseguido o Santo Graal da vodka, afinal de contas. Naquele buraco, o Santo Graal estava mais para Santo Daime: e começava a bater. A carência aceita tudo.

Voltando um pouco a fita, fui parar no Ocidente para curar uma dor de cotovelo das mais terríveis: meu ex já desfilava um novo amor enquanto eu não tinha sequer encaixotado suas fotos. O pretenso guru tabajara caía como um jato d'água naquele carnaval fora de época. E era bem bonitinho.

E beijava bem. Beijava bem mesmo. E dançava gostoso. Quer uma carona, quero sim, enfim, fomos embora e eu estava livre daquele bacanal em que tinha me enfiado.

E foi assim que começou nosso caso escrito nas estrelas.

Marcão. Não é bem nome de cigano, eu sei, mas o superlativo caía bem com seus ombros amplos de natação para curar asma desde pequenininho. Foi uma paixão fulminante. Demorei uns três meses para começar a ouvir o que Marcão falava. Quando a alocução ficou inteligível, percebi que o gigantão tentava ser o Mestre dos Magos.

Sabia que a Marcela ia fazer aquilo. Bem coisa de geminiana com ascendente em Peixes. Ah, só podia, típico Áries com lua em Capricórnio. Ele é de Aquário? Tem que ser Aquário.
Como se não bastasse o horóscopo contínuo em relação aos outros, o morenaço me puxava pela cintura murmurando, vem aqui minha vênus em escorpião. Fui suspirando para aliviar a breguice. Mirava o triângulo das bermudas e me perdia em suas costas largas.

E eu que achei que a cantada já era de mau gosto?

Tentava calar a boca do Marcão, mas ele insistia em me revelar os mistérios do universo. Fim de semana ele me levou no planetário. Achei muito legal, não ia lá desde os nove anos, eu acho. Mas no outro mês, ele queria ir de novo.

Ele me presenteou, quando fizemos quatro meses, com um inesperado e imprescindível Mapa Astral.

Pensei: última chance; em homenagem aos dois metros de peitoral onde adorava dormir, eu iria.

Cheguei na casa do Walter Mercado de Porto Alegre. No hall de entrada, coletaram meus dados fundamentais: data, hora e local de nascimento. Ali, meu nome não servia para nada.

Terminada a sessão adivinhatória da minha personalidade e algumas previsões meteorológicas para o trabalho, o profeta entregou o dito desenho da influência planetária em meu destino e um envelope para que eu alcançasse ao Marcão.

- Que é isso?

- Uma sinastria.

Ele explicou que sinastria é a combinação de dois mapas, um exame de compatibilidade genética, astral para ver se éramos almas gêmeas. Nem abri o patuá do vidente. Fui direto atrás do requerente.

Porra, Marcão, que presente cavalo de tróia foi esse? Ele foi argumentando, calma amor, achei que ia gostar e tal e tal. Entreguei o envelope. Fui para a sala.

Foi partindo meu coração pensar na saudade que sentiria das suas carnes divinas, mas tinha chegado ao limite daquela vida adivinhada. Respirei fundo o silêncio da verdade inadiável. Não dá mais, Marcão. Ensaiei.

- A gente precisa conversar.

- O que houve? Mas já entramos no teu inferno astral?

- Não, Marcão. É retorno de saturno.

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