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sábado, 7 de agosto de 2010

QUANDO A ARTE CONTEMPLA A CIÊNCIA

McEwan lança romance do clima

POR CINTHYA VERRI


Em romance a ser publicado pela Companhia das Letras,
McEwan costura enredos que exorcizam Freud, Spinoza e Nietzsche

“Solar” propõe um tratado sobre a culpa ao avaliar as decisões de um físico premiado pela Academia Sueca. Ian McEwan sobe os termômetros do mercado e inaugura a literatura sobre as alterações climáticas. A sátira amarga aborda um tema nevrálgico da atualidade – o aquecimento global.

Um dos grandes autores britânicos, Ian McEwan, dos sucessos Na Praia e Reparação, lança Solar. Ainda inédito no Brasil, debutou em março deste ano no Reino Unido e em Portugal. Apelidado de “Ian Macabro”, o romancista, que completou 62 anos no dia 21 de junho, assumiu o bom humor. Uma guinada em toda a trajetória marcada pela seriedade. Porém, quem pensa que graça é leveza, engana-se: serve apenas para tocar em pontos ainda mais obscuros.

Em entrevista ao The Daily Telegraph, antecipou sua preocupação com o novo romance: “Eu quero tentar e de modo útil esbater as diferenças entre os dois reinos (ciência e arte). Por um lado, existe a tradição científica. Os cientistas apoiam-se nos ombros de gigantes, como os escritores. Por outro lado, nas artes é que se fazem descobertas. Por isso, estou discutindo com, ou pelo menos brincando com a ideia de que a arte nunca avança”.

De fato, McEwan levou a cabo sua ambição. Traduziu com alta fidelidade conceitos da física e da mecânica quântica. Solar, que sairá no Brasil pela Companhia das Letras, assume condição híbrida, científico-artística. Ensina e entretém.

Acompanhamos o protagonista e anti-heroi Michael Beard e sua inquetação em sobrepor a genialidade profissional a problemas de excesso de peso e dilemas com mulheres.

A sabedoria ficcional de Ian McEwan pode matar de inveja qualquer estudioso de psicanálise e filosofia. Arruma enredos para exorcizar Freud, Garma, Winnicott, Spinoza e Nietzsche. Afinal, sua obsessão é como a culpa influencia destinos.

Em Reparação, apresentou-nos Briony. A menina escritora que, ao caluniar o namorado da irmã, ocasiona a morte dele na guerra. Com a atitude impulsiva e orgulhosa, a menina sente que arranjou o curso da tragédia, mas não desejava efetivamente que isso acontecesse. Depois do processo espelhado nas páginas, Briony responsabiliza-se por quem ela é, por agir daquele modo quando ainda era uma criança. Livra a culpa e permite-se viver. Ela concebeu, por meio da literatura, um mundo onde os dois, a irmã e o namorado, poderiam ver-se novamente e se amar. É a expressão legítima de quem compreende o acaso e sua imperiosidade.

Michael Beard, personagem central de Solar, exibe justamente o reverso. É sutil a diferença, porque, à primeira vista, se poderia concluir que é um homem sem remorso; que a própria ausência de culpa incita o desenvolvimento da personalidade sedutora e sociopática; capaz de usar qualquer um que cruzasse seu caminho para, sem escrúpulos, extrair vantagens para si. Desse modo se comporta em seus cinco casamentos e com todas as amantes; no trabalho, apropria-se das pesquisas de outro homem, incrimina um terceiro em um assassinato; atribui-se a autoria de relatos alheios para usar em suas palestras; premedita o uso de verbas e patenteia invenções que não foram suas.

Ao exame com mais cuidado, encontramos um homem arrogante e inábil, incapaz de viver bem. Gênio da física, Michael Beard escreveu um trabalho original que lhe rendeu o Prêmio Nobel. Partiu de Einstein e descobriu uma leitura inédita, curiosamente, sobre a interrelação dos elementos: a chamada conflação. Ela ocorre quando duas ou mais pessoas ou conceitos, que compartilhem algumas características em comum, tornam-se mistas, até aparentarem uma única identidade – as diferenças parecem perdidas.

Não é à toa: a ideia se assemelha ao borramento ético do personagem; à dificuldade de Beard em apreciar qualquer um de modo independente. Não soube nunca se colocar no lugar do outro, antecipar, sentir empatia ou mesmo cuidar de alguém. Principalmente, porque não sabia cuidar de si mesmo.

Freud, em seu famoso artigo Criminosos por um Sentimento de Culpa, ensinou que a atitude criminosa pode ser gerada pela culpa; o mesmo avalia Nietzche, quando fala dos Delinquentes Pálidos pela interlocução de Zaratustra. Mas foi Paulo Sérgio Rosa Guedes, nos ombros desses gigantes, quem descreveu a conduta com clareza e simplicidade. Em A Paixão – Caminhos e Descaminhos, anuncia o quanto o sentimento de culpa é um sistema, um artifício de ver e agir que instalamos sobre o raciocínio. Com ele nos mantemos em busca do poder; nós é que sabemos como deveria ser; quando nossas ideias valem mais que a realidade; e é possível acreditar que existe um deus e que somos melhores do que ele.

Neste ponto, reconhecemos que culpa e onipotência são a mesma coisa. Na epígrafe, John Updike é empregado para afinar o tom da narrativa nesse sentido: “Que lhe dá grande prazer, faz Rabbit sentir-se rico, contemplar o desperdício do mundo, saber que a terra também é mortal”.

Paulo Sérgio explica:

“1. O sentimento de culpa nunca é consequência de algo, e sim, causa.

2. O sentimento de culpa é sempre oposto, antagônico, à vivência de responsabilidade pessoal. São sentimentos auto-excludentes apesar de, na linguagem comum, serem vistos como sinônimos.

3. O sentimento de culpa é sempre um delírio de grandeza, uma ilusão de onipotência, uma convicção absoluta de ter poder.”

Nossa reação diante do devir, especialmente diante do que nos desagrada, é condenar a realidade. Sentimo-nos poderosos: julgamos o acaso e chamamos de sorte ou azar.

Michael Beard é o exemplo típico dessa inversão. Quando chega ao Polo Norte, por exemplo, conhece que é uma questão de acidente geográfico, mas assinala que está no topo do mundo e que todos, inclusive a ex-mulher, estão abaixo dele. Nessa oportunidade, quando passou a ser admirado pelos companheiros de viagem, não pôde evitar de achar graça em virar o queridinho do grupo, mas se considerou rebaixado por dar valor às pessoas. Ao examinar a condição humana, pondera que “é a melhor, não, é a mais interessante das raças, talvez não a melhor imaginável, mas a melhor disponível”. Confia que poderíamos ser salvos de nossa natureza através da implementação de leis e do respeito à elas. Michael alcança concluir, por um relance, que não superaria a humanidade dentro dele; medita que, na hora da morte, provavelmente estaria usando meias díspares, teria emails por responder, camisas ainda estariam sem botões, a luz do corredor permaneceria com defeito, restariam contas a pagar, amigos esperando por uma resposta e amantes por conquistar. “Esquecimento, a última palavra em organização, seria seu único consolo.”

É contra essa verdade que Michael se dedica e, evidentemente, fracassa.

É um livro trágico e cômico, igual a nossa existência.

Reparação e Solar apresentam a riqueza, a dimensão da força e o antagonismo da culpa e da responsabilidade. Por serem óbvios, tão difíceis de ver. Precisamos de todas as versões disponíveis. Prova de que a arte, de fato, não avança. Não tem sentido. É como a vida: um eterno retorno.

Médica, psicoterapeuta
cinthya@clinicaverri.com.br


Publicado no jornal Zero Hora
Caderno Cultura, p. 6
07 de agosto de 2010 | N° 16420
Porto Alegre (RS)
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3 comentários:

  1. "Bela, bela, mais que bela... mas como era o nome dela? (...) Seu nome, seu nome era." Ferreira Gullar (Poema Sujo)

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  2. Prezada Cinthya.

    Seu texto me fez refletir um bocado. É instigante perceber que no processo de culpa já está instalada, digamos, uma forma doente, deformada, de pensar e sentir, ou seja, criamos uma moral sobre eventos da realidade sobre os quais não temos controle algum. E mais do que isso: criamos uma ética, isto é, um “Bem” e um “Mal” subordinados a tal realidade fictícia ou, em poucas palavras, inventamos uma ideologia, no sentido marxista do termo.
    Talvez esteja aí uma das razões do fracasso do socialismo real: seres, ditos, revolucionários com atitudes, supostamente, revolucionárias mas que, na realidade, com um imaginário extremamente reacionário e conservador. Coisa bem típica de culturas patriarcais.
    Concordo com o Paulo Sérgio Rosa Guedes quando afirma que “o sentimento de culpa nunca é consequência de algo, e sim, causa.”. Vou mais longe, seres com culpa fazem uma história com culpa, uma ética com culpa, uma moral com culpa, uma estética com culpa, uma política com culpa, enfim, uma arte, uma ciência e uma educação com culpa.
    Concordo com o Paulo Sérgio Rosa Guedes quando afirma que “o sentimento de culpa é sempre oposto, antagônico, à vivência de responsabilidade pessoal.”
    Mas aqui surge, a meu ver, uma questão complexa: como gerar uma sociedade em que cada indivíduo tenha a lucidez da sua responsabilidade pessoal (e também social)? Tal questão para mim é complexa, pois não acredito no livre arbítrio: não nascemos e, por enquanto, não morremos livres; a nossa maneira de pensar-sentir foi forjada, lá, no indefeso tempo longínquo da infância.
    Como então adquirir a responsabilidade pessoal (e também social)?
    Concordo com o Paulo Sérgio Rosa Guedes quando afirma “o sentimento de culpa é sempre um delírio de grandeza, uma ilusão de onipotência, uma convicção absoluta de ter poder.” Aqui não há qualquer discussão: a Igreja Católica é a cabal prova histórica de tal afirmação!!!
    Bem, prezada Cinthya, como então acredito que deva ser o futuro (que não está nem aí com o que acho ou deixo de achar…)? No meu modo de pensar-sentir, só há uma saída, porém com muitas estradas até ela: a construção paulatina de uma nova ÉTICA!
    Qual seria o “Bem” dessa nova ética? Tudo que favoreça o processo de evolução da VIDA! Compreender e, principalmente, AMAR tal processo em que somos as primeiras palavras conhecidas (creio, num ato de fé, pois não posso provar, que já há outras palavras, mas que para nós continuam ainda desconhecidas por uma questão do espaço- tempo einsteiniano).
    Acredito, tal qual seu marido, que a ingenuidade na arte e na ciência é uma forma de lucidez que, infelizmente, foi esquecida neste terrível tempo de competição.
    A cooperação é a única maneira sadia de dar continuidade ao processo evolutivo: não só importa o indivíduo, mas principalmente a continuidade de todas as espécies: aqui, não importa religião, gênero, opção sexual ou nação. Creio que “A CARTA DA TERRA” seja um primeiro e primoroso passo a um futuro lúcido.
    Quanto a sua afirmação de que a vida é um eterno retorno, tal questão para mim permanece em aberto…
    A teoria de Nietzsche pode vir a ser uma verdade, porém para tal é necessário provar que o Universo é um sistema fechado. Sobre isso nada se sabe ainda (pois somos artistas e cientistas que tentam se livrar da onipotência da culpa, não é verdade?).


    PS: prezada Cinthya, espero sinceramente que este comentário não cause nenhuma polêmica tal qual aconteceu no Blog do Fabro. Você postou um texto instigante e procurei, dentro do possível, construir uma interlocução. Só isso, e nada mais. Não tenho saco e nem idade para ficar a dizer, quase numa única nota “puxa como você escreve bem…”. Busco e preciso de sinfonias! Finalmente, parabéns pelo texto e, daqui, um abraço ao Fabro!

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