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sábado, 4 de setembro de 2010

Cinderela só depois de separada.


Cinderela só depois de separada

Pensará que se trata de um livro infantil. De capa dura azul com uma garatuja colorida na capa, o título reforça a confusão: A Cinderela Mudou de Ideia (ed. Planeta). Cuidado no topo à direita, um selo revela: um conto para mulheres modernas.

O conteúdo é adulto. A justificativa das escritoras espanholas Nunila López Salamero, 44 anos, e Myriam Cameros, 32, tem lógica: a infância transmite melhor a emoção. As páginas passam rápido, mas o amadurecimento do leitor é perene. A simplicidade inesperada arrebata, tão direta, com uma honestidade incomum; possível apenas para aqueles que já aprenderam com a própria experiência, para aqueles que estão falando de si próprios.

No enredo, uma paródia da fábula de Cinderela. Com as unhas pintadas de Nunila e Myriam, ela se torna uma heroína vegetariana que se percebe dentro de uma vida que outros escolheram para ela. É um conto de libertação feminina. A Cinderela prefere as pantufas aos sapatinhos de cristal, descobre que o casamento pode ser um péssimo negócio e que amor definitivo é o amor-próprio.

Quem pensa que a batalha das mulheres é caso encerrado talvez perceba que chegou a hora de queimar as calcinhas. Basta acompanhar o sucesso de vendas da obra e sua volta ao mundo pela internet. Todas as gerações ainda precisam desvestir a princesa.

Espera-se da mulher que ela pese determinados quilos, que alcance certa altura; que se vista com elegância, que caminhe sozinha, que cozinhe e que trabalhe, também entenda da casa e seja capaz de gerar e cuidar dos filhos. Espera-se que as meninas sejam bem comportadas, coquetes, polidas, debutem em longos vestidos e sonhem que um príncipe venha resgatá-las de pais conservadores.

Quando um homem é responsável pela salvação, a masmorra vem com a frigidez inclusa.

São raras as que experimentam sua sexualidade com liberdade. Não são estimuladas à masturbação, aos exercícios pélvicos. Depois do parto, a maioria das mães não é orientada a treinar a musculatura vaginal. São tabus que encobrem a verdade de que uma parturiente já completou sua tarefa reprodutiva. Que importância tem o prazer a esta altura do campeonato?

Alguns consideram o feminismo demodê. Entretanto, uma nova corrente toma força.

A primeira onda do feminismo, que se iniciou no final do século 19, buscava essencialmente os direitos civis, de contrato e de voto. Em 1960, se iniciou a segunda onda. Diferente das suffragettes, como eram chamadas as ativistas que lutavam pelo direito ao sufrágio, essas moças uniram-se em busca de igualdade social.

A terceira onda feminista começou em 1990. O movimento é sutil, e vem em boa hora. É mais uma luta cultural, embora tenha corpo político. Ela abraça a causa dos transtornos alimentares, por exemplo. Tanta revolução para a mulher conquistar o seu lugar e agora elas querem ocupar menos espaço com seus físicos cada vez menores, finos, magros, pequenos. A terceira onda quer provocar os paradigmas do que é bom ou mau para as mulheres.

O questionamento é muito mais inteligente porque as formas de subtração são disfarçadas. E, principalmente, geradas pelas próprias mulheres. É corriqueiro mães desistirem de sua identidade e adotarem a do marido ou dos filhos com o propósito de controlar a todos.

Esse impulso é praticamente natural, corre silencioso sob a pele: mal percebe, mas já no primeiro encontro, ela testa o sobrenome do candidato para ver se combina com o seu. Cuida como ele se comporta com os animais, com os garçons, com seus sobrinhos, a ver se antecipa a paternidade. Observa o parceiro no trabalho, contabiliza o futuro promissor. Em troca, não oferece perigo: assume uma postura previsível, espera que ele ligue no dia seguinte. E sexo no primeiro encontro, nem pensar. É o famoso manual.


A Cinderela Mudou de Ideia, de Myriam Cameros e Nunila López.
Editora Planeta, 88 páginas, preço sugerido R$ 24,90.


Pequenos rituais que confirmam a cinderelice atávica. Quer dançar conforme a música? Faça-o ao menos bem informada. Que não seja o bailado coreografado hipnótico, a sina repetida milhares e milhares de vezes, onde acordam infelizes e culpando o marido. Jamais se responsabilizando pelo que vivem.

Não é verdade a proclamada vitimização: coitada domesticada, sem chance de ser o que poderia, presa aos bebês pelos pés.

Com ternura firme, A Cinderela Mudou de Ideia pergunta sobre o desafio que a existência propõe: você deve uma vida para você mesma. Ninguém tem que vir e fazê-la e nem poderia. É uma solidão necessária e que exige vigilância. Quando se distrair, cairá na mesmice do sofrimento, achando normal não gostar do que faz e temendo pela segunda-feira.

Quem detesta segunda-feira pode não saber ainda, mas vai descobrir que também odeia os demais dias.

Tem um preço, evidentemente. Às vezes, a opção é baratear e permanecer presa em ciclos de infelicidade contínua em nome da mentira de se sentir em segurança. A arte de viver bem é um ofício, depende da coragem de assumir a responsabilidade pessoal – que é intransferível. Não é questão de sacrifício, e sim de prazer da escolha, largar o que não agrada, custe o que custar.



Nunila López Salamero e Myriam Cameros já trabalham em um segundo projeto juntas.
“Trataremos um assunto difícil com humor e amor”, fazem mistério

“O que está fora de moda é o machismo”

Após cinco anos visitando editoras e não recebendo nenhuma resposta concreta, Nunila López Salamero e Myriam Cameros decidiram mandar um e-mail aos amigos com a ideia de que investissem pequenas somas em dinheiro em troca de que, uma vez publicado o livro, recebessem uma determinada quantidade de exemplares e seus nomes fossem publicados como colaboradores.

“Para nossa surpresa, de repente começamos a receber dinheiro de pessoas que não conhecíamos. Em menos de um mês, reunimos quase 7 mil euros, isso em tempos de crise na Espanha, para que pudéssemos realizar nosso sonho”, lembra a dupla. A seguir, a entrevista com Myriam Cameros.

Donna – Como chegaram ao formato de livro ilustrado de conteúdo adulto? Configura uma inversão inovadora, assim como existem livros para crianças que interessam aos adultos, não é?

Myriam Cameros – Nunila escreveu o conto anterior por encomenda para uma associação de mulheres que sofriam violência de gênero. Eu tinha ouvido a história, fiquei encantada. Pensava que era universal, que mesmo que a origem do conto fosse a história de uma mulher que sofre violência, era uma história para todos, um conto que ajuda a ser feliz e, sobretudo, a dar um basta no que não faz você feliz. Sentimos que os adultos e as crianças precisam de mitos, histórias, fábulas que os faça acreditar mais em si mesmos e acreditar que podemos fazer algo neste mundo. Qualquer história deve ser acompanhada de um imaginário visual potente em que, como no texto, possamos romper com os papeis definidos e cansativos, com os quais muitos de nós não nos identificamos.

Donna – Sabe-se que vocês fazem apresentações do livro. Como é isso? Vocês têm planos de vir ao Brasil?

Myriam Cameros – Fazemos apresentações em instituições, universidades, grupos que queiram dar palestra de prevenção à violência machista, e em outros tantos locais de cultura livre sobre o fenômeno de edição caseira de um livro com a ajuda de pessoas, antes de sua chegada à internet. As apresentações que mais nos deram prazer aconteceram em presídios, onde também acreditamos que as pessoas gostaram mais, tanto homens quanto mulheres. A última apresentação desta temporada foi no Instituto Cervantes de Oran, na Argélia, que também foi muito emocionante. E quanto ao Brasil, queremos que nos convidem... para pegarmos as malas.

Donna – O que a Cinderela mudou em suas vidas? Esperavam que fosse tão curativo?

Myriam Cameros – Realizar um sonho, como o nosso, de que a Cinderela chegasse nos lares de tantas pessoas diferentes nos deu asas. Os “nãos” já não nos assustam tanto, pois foi pelos “nãos” no começo... que tivemos um grande “sim”. Acho que nós duas paramos de tentar convencer para ser. Em qualquer lugar onde vamos, uma festa, uma praia, as pessoas nos tratam com muito carinho por sermos as criadoras da Cindy.

Donna – Estão trabalhando em algum projeto novo?

Myriam Cameros – Nunila tem um espetáculo, um monólogo em que atua, e se apresenta por toda a Espanha. Eu me realizo muito ilustrando de tudo: Cds, roupas, animações, mas meu ponto fraco e meus próximos projetos são um livro dirigido ao público infantil (o que não quer dizer que não será para adultos) e um comic book só de minha autoria. Em parceria artística, estamos trabalhando nosso segundo projeto. Mais uma vez, trataremos um assunto difícil com humor e muito amor.

Donna – No livro Psicanálise dos Contos de Fadas, Bruno Bettelheim afirma que não se deve mexer nas estruturas dos contos tradicionais. Na sua opinião, está na hora de nos adaptarmos aos desejos e fazer espaço para a confissão nos velhos modelos?

Myriam Cameros – Concordamos, em parte. Muitos contos de fadas têm uma estrutura curativa e preciosa em sua origem, mas as más interpretações geraram papéis muito daninhos que não passam de armas de poder. O beijo final de todos esses contos tradicionais tem mais que ver, em seu início, com a fusão da parte masculina e feminina do que com um príncipe intrépido que salva a princesa incapaz. Branca de Neve e os Sete Anões tem mais a ver com a necessidade de se manter os sete centros energéticos (chakras) limpos do que com a servidão aos homens dentro de casa.

Donna – O feminismo está fora de moda? Vocês acham que existe preconceito, que fingimos ser desnecessária uma luta pela igualdade de gêneros?

Myriam Cameros – O que certamente está fora de moda é o machismo. Acho perigoso falar de feminismo de uma forma pejorativa, pois não deixa de ser uma luta para que o mundo seja melhor, tanto para os homens quanto para as mulheres e os gêneros intermediários. Muitas pessoas confundem feminismo com “femismo” – de fêmea - (as mulheres boas e os homens maus), e isso é um engano. Um mundo onde mulheres são agredidas, menosprezadas, nunca será um mundo bom. Nosso livro teve muita aceitação do público. No entanto, as vozes de setores mais conservadores dizem que é uma obra de mulheres amargas, feministas, quando, na verdade, nosso trabalho foi mostrar que a protagonista não termina enroscada com o príncipe, mas faz muitos amigos e dança com eles até o amanhecer. É necessário viver finais diferentes, e formas diferentes de viver.


05 de setembro de 2010 | N° 16449
Publicado no Caderno Donna
Pág 19 e 20
Jornal Zero Hora

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