....

terça-feira, 16 de julho de 2013

Biafra



Tenho adoração por carros. Na minha família, o idioma dos automóveis é a igualdade com os homens. Meu pai diz que a gente conhece o motorista pela ré; meu empenho máximo foi para surpreendê-lo andando de costas.

É fato que eu tentasse impressionar o pai, já que com a mãe havia perdido a esperança. Não poderia nunca acusá-la de ausência, por exemplo. Não se trata disso — comparecia a todas as apresentações e às reuniões de pais e mestres na escola; comprava nossas roupas e materiais didáticos; supervisionava as brincadeiras e educava plenamente, inclusive modos para sentar-se à mesa e receber visitas. Minha mãe era completamente presente.

Exceto nas crises de nevralgia.

Minha mãe sofria dores súbitas no nervo trigêmio. O choque percorria metade do rosto e seus dentes. Um curto circuito ardido e latejante que se arrastava por horas. Como qualquer tortura eficaz, não mantinha padrão: os segundos entre cada choque e a intensidade em volts eram irregulares. O tipo de dor que gera suicidas.

Quando ela adoecia, eu pressentia o ataque já na metade do quarteirão — vinha chegando da escola. A rua destilava a dor pelo ar ou talvez fosse simplesmente meu medo funcionando feito antena parabólica. Eu tinha medo de mim. Eu tinha medo de deus.

Vivíamos em torno dessa coisa sem poder dizer sobre ela.

A mãe estaria no escuro total, deitada no quarto como uma pantera. O cilindro de oxigênio montava sentinela ao lado da cama.

Eu administrava o pavor de que ela morresse. Ninguém me explicou que aquilo não matava, só maltratava. E aquela falta de legenda dava tonturas.

De certo modo, às vezes, torcia para que ela não se levantasse. Então eu imaginava que poderia ser uma menina órfã muito delicada e que meu pai poderia arranjar uma mãe mais carinhosa, mais dócil que a minha.

O pai me sentava no colo à tardinha. Pedia que eu jurasse que era meu amor, que estaria sempre atenta para o que outros homens fariam. Depois, pedia que eu repetisse, como em um juramento, que cuidaria dele quando ficasse velho. Que seria sempre dele.

É claro que eu não queria que ela morresse, mas sonhava como seria uma vida sem ela.
______________

Trecho de Biafra, meu romance em andamento, vencedor do Prêmio da Biblioteca Nacional
Foto de um dos trabalhos do caderninho, ilustrações que estou trabalhando para o livro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário