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sábado, 11 de abril de 2009

Eu Acredito em Coelho


Sabe aquela criança irritante de tão doce? Que canta como se estivesse fazendo um favor para o silêncio? Nunca contive a doçura em mim, e enjoava. Mais os outros do que eu.

Quando tinha cinco ou seis anos, infernizava a família antes da Páscoa.

Soprava pela janelinha de meus dentes incisivos a Canção do Coelho - em looping. E não apenas isso: a sequência não interrompida de letra e música tinha um conjugação toda especial.

Eu acreditava que "trazes" era o plural de "traz", combinando com os "três ovos assim".

"Coelhinho das Páscoas ques trazes pras mim? Um ovo, dois ovos, três ovos assim!"

É fácil observar que tudo ganhava um plural, exceto o Coelho e eu, claro. Éramos um para o outro.

A Páscoa que eu vivi significava a coroação da alegria. Esquecia que a coroa vinha armada de espinhos.

A mãe estampava marcas de patinhas com farinha, investia algodõezinhos nas frestas para mostrar que o coelho passava correndo. Deixávamos a cenoura e a água como atenção e reconhecimento por seu imenso trabalho e dever bem cumprido com as crianças.

A euforia incendiava minha garganta que só se acalmava cantando. Um tipo de reza canônica, um ritual para o qual eu vestia grandes orelhas. Que durava o dia inteiro: dentro do carro, dentro do quarto, na hora do almoço, do jantar, do lanche da tarde, na praça, no banho.

Meu irmão Gustavo procurava onde escondia as pilhas.

Às vezes dançava. Na época, não imitava ninguém, talvez eu mesma quando fosse adulta.

Beijava a estátua gosmenta de cristo na igreja; não questionava a sexta-feira santa e o horrendo peixe obrigada a desossar; não protestava o sábado de aleluia ou o interminável sermão do padre Guilherme. Todo sacrifício prometia juros.

Morávamos em Constantina, cidade a 307 km da capital gaúcha. Havia extensas plantações de soja, uma atmosfera interiorana ladeada de estradas curtas e ardidas de terra vermelha. Nosso cachorro Giscard apareceu na véspera do Domingo com um animalzinho entre os dentes, retirado das moitas. O pai ameaçou tirar, confiávamos que fisgou um passarinho alheado. O pastor alemão rosnou, protegia a tigela de suas patas.

Eu não conseguia - por mais pavor que sentisse - desgrudar os olhos da natureza de sua refeição. Juro que identifiquei: a sombra branca de seu pelo, altivez desfigurada.

Fui uma criança que nunca deixou de acreditar no coelho da Páscoa; eu o vi morrer.

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