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sábado, 23 de maio de 2009

DOR DE FILÓSOFO - Caderno de Cultura da Zero Hora - 23/05/09


*CYNTHÍA VERRY (Errata: leia-se CÍNTHYA VERRI)


Link para artigo na Zero Hora

Link para ver no Midiática



texto original (porque saiu com algumas alterações):

A Difícil Autoria do Esquecimento
Anotações póstumas de Roland Barthes são publicadas na França. Diário apresenta caminhos para aceitação do luto.

Cínthya Verri
Médica e Psicoterapeuta

Diário póstumo de Roland Barthes acende novamente a luz de seu escritório. Sob alarde, foi publicado agora na França Journal de Deuil. O livro, ainda inédito no Brasil, retrata dois anos de sofrimento do pensador francês diante da perda da mãe, sua fiel companheira de toda vida.

Henriette morreu em 25 de outubro de 1977. No dia seguinte, Barthes, temendo por sua sanidade, agarrou-se em anotações do seu quadro psicológico como a uma guia. A nota introdutória já pede uma atenção especial ao assunto, tratado culturalmente com laconismo sinistro. Quebra o tabu ao reivindicar que a primeira noite de luto receba a importância equivalente a uma noite de núpcias.

Assim inicia a colagem de confidências registradas em ‘fichas’, cortadas em quatro partes de folhas de ofício. Propõe o contato com os retalhos da colcha antes de ser costurada.

Em pinceladas cáusticas, espirituosas e contraditórias, sem nenhuma censura, o autor percorre os limites da memória e arde entre a remissão e o castigo. Em muitos momentos, assaltado pela angústia, acredita na desistência: “Às vezes eu não posso mais e quebro.”

Barthes persegue a si mesmo e, acima de tudo, procura não enlouquecer no reconhecimento da ausência materna, agora definitiva. Entende-se o calvário: sua mãe foi sua única tutela legítima, encadernadora de livros que o criou sozinha, após a morte de seu pai, oficial naval, quando tinha um ano.

Aprendendo uma orfandade que o atinge na maturidade, assume todos os papéis do tribunal familiar: é testemunha e acusador; vítima e juiz. Essa inquisição pessoal o conduz a queimar suas vaidades e escarnecer de seus limites.

Talvez tenha sido a mais complexa e difícil luta para um canhoto, protestante e homossexual que viveu no front revidando preconceitos e venceu 12 anos de guerra contra a tuberculose.

Diário do Luto não é uma obra para um fim editorial, com a efígie conclusiva de testamento, mas um clarão da transição de seu pensamento. Expõe os bastidores de vários trabalhos do autor.
Durante sua escritura, organizou ‘O Neutro’ (Le Neutre); ‘A Câmara Clara’ (La Chambre Claire); e os dois volumes de ‘A Preparação do Romance’ (La Preparation du Roman).

Atrás das cortinas, o menos previsto acontece – Barthes é mais original naquilo que é rascunho.

Alguns meses antes do falecimento da mãe, na aula inaugural de sua consagrada cadeira de Semiologia Literária, o professor inflamava dizendo que esquecer é a verdadeira força da vida viva. Este é precisamente o desafio que o luto propõe: raro é aquele que assume a autoria do esquecimento.

31 de outubro de 1977
Uma parte de mim é véspera do desespero e, simultaneamente, outra se agita mentalmente armazenando meus assuntos mais frívolos. Eu vejo isso como uma doença.

Muito sensivelmente, Barthes sabia que nada disso era doentio, mas preferiu pensar que sim. A deslealdade cobra filiação. Alegrar-se, depois da perda, produz o efeito de traição à memória da pessoa amada, ao amor e a si mesmo. Toda diversão se torna inoportuna e ilícita. No malestar é que habita a liberdade.

4 novembro de 1977
(...) como se, coisa horrível, eu aprecie o apartamento arrumado “do meu jeito”, mas meu gozo adere ao desespero.

Para que a leveza ocorra, mesmo que brevíssima, é necessário suspender o processo. A alegria vem da força do esquecimento: aponta para o adiante, para o que segue em movimento. Devolve à realidade imperiosa da perda e ao fato de que contra isso nada se pode. É a “náusea do irremediável”.

Barthes mostra que a vivência do luto acontece em salvos. Chamou estas ‘características descontínuas’ de ‘blocos’ comparados à esclerose. Embora os considerasse caóticos e erráticos, os movimentos do luto são peristálticos e, igual que a vida, terminam: têm sentido natural dirigido para o fim.

3 novembro de 1977
“De um lado, ela me demanda tudo, toda a dor, em absoluto (mas então não é ela, sou eu que me invisto de demandar isso). E, de outro lado (sendo realmente ela mesma), ela me recomenda leveza, vida, como se dissesse novamente: ‘mas vá sair, se distrair).

Um jeito criativo de não experimentar a solidão é adotar uma imagem e um comportamento que se acredite esperado. Neste caso, a dor ficará reservada como um segredo. É o encistamento da agonia que confere altivez, quase elegância: empresta a ilusão de controle. O avesso, realmente consentir o sofrimento, é voltar a ficar só, pois quando existe a entrega, nada pode ser mantido e a tristeza fenece.

8 janeiro de 1978
Todo mundo é muito gentil – e, portanto, eu me sinto sozinho (abandonado)

O comportamento bajulador não é ajuda: é amortecimento. Promover um ambiente excessivamente generoso, de calma monástica, enclausura. A solidão aumenta. É preciso que se compartilhe: a verdade é sempre o melhor caminho. Além disso, um outro que peça cuidados provoca o sofrente a acessar a própria saúde para oferecer.

18 de maio de 1978
(...) e eu vejo que a não-neurose não é boa, não está bem.

A travessia do luto exige perseverança, seguimento. Como a fantasia e o sonho, ela acontece autônoma. Precisa de um tipo de espera incomum: a paciência íntima. Toda emoção é um descontrole.

Barthes foi incorruptível porque se deixou corromper pela dor. Observou-se permitindo não saber. Dispensou a apresentação, ficou com a vidência interior. Se existe algum fundamento é receber a experiência como leigo. Se ela é mais ou menos saudável, pouco importa. Despedir-se é permanecer. Lealdade não é submissão. Ao testar e contrariar o amor, ele restou intacto.

2 setembro de 1979
Cochilo.
Sonho: exatamente o sorriso dela.
Sonho: memória integral, bem sucedida.

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