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segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A Praga de Kafka

EPITÁFIO

Sempre quis
um endereço fixo.






Homens são famosos por sua fantástica cegueira seletiva. Tateiam os produtos na despensa e na geladeira como baratas bêbadas de Mortein. Ansiosos, desesperam-se em três segundos e gritam por indicações:

— Amoooor! Cadê a massa?

— Amooor! Cadê a Coca?

— Onde você colocou o salgadinho?

A gente aponta os itens dizendo coisas como: está no armário, está na terceira gaveta, está na prateleira dos frios. E a resposta, invariavelmente, é assim:

— Onde está que não estou vendo?

— Não acho!

— Não está aqui!

— Cadê?

Desligamos o telefone, levantamos e entregamos o troço que, em geral, está na frente deles.

Pois é, homem tem fama de ser distraído. Não apenas quando passa futebol na televisão e ele não escuta. Homem mesmo perde a carteira, esquece a chave, extravia a identidade e nunca sabe o CEP de seu próprio endereço.

Homem mesmo não é o caso do Bitols. Esse é fora da órbita. Ele sabe o mapa da casa muito melhor do que eu. Ao contrário, ele inverte a sabedoria doméstica só para não ficar por baixo: guarda tudo bem rápido que é para eu posar de tonta. E o pior: avança em meus pertences e distribui minhas roupas no armário em um sistema secreto de organização que eu já desisti de decifrar.

Mas, ok: os suprimentos eu aguento, as roupas eu tolero, as pastas de documentos eu suspiro. Afinal, ainda me sobra o corpo dele para me anteceder.

Ninguém conhece o organismo de Bitols como eu. Nem ele. Eu sei quando a barriga está inchada, quando dormiu bem, quando está cansado. Claro que não sou perfeita, mas minha percepção está cada vez melhor e dependo apenas do tempo para ficar mais apurada.

Eu vejo e aviso: está com dor, está irritado, está com rosácea. Aliás, a pele dele é meu guia mais fiel. As irritações, o pandemônio e o estresse: tudo fica registrado nas manchas, nos rushes e nas pápulas.

De vez em quando, uma coisinha ou outra me passa despercebida. Aí, pergunto ao dono:

— Bitols, que roxo é esse no teu braço?

— Ãhn? Que roxo?

— Esse aqui ó. É uma equimose.

— Não vejo... Onde?

— Essa marca redonda no braço.

— Não vi.

— Aqui embaixo, olha: parece uma mordida...

— Ah, esse roxo... Ah... Pois é. Eu bati pegando mala no avião.

Ahan, sei. 

Bateu. 

Pegando mala. 

Nesses horas, o que eu não daria por uma cegueira seletiva.

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