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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Alô, alô, marciano.



Rodrigo era um homem moderno. Moderno, não: pós-contemporâneo. Tinha um telefone mais avançado que o outro, computadores portáteis, carro com comandos vocais, videogames ramificados pela internet — disputava jogos com um turco e um norteamericano. Seu apartamento abria através de leitura digital, seu ar condicionado era acionado por um telefonema. Até mesmo a hidromassagem poderia esperá-lo pronta para às 20h.

Pela manhã, acordava com o despertador que tocava randomicamente seus DJs preferidos de progressive; a escova elétrica e o barbeador wireless aprumavam a higiene. Secava-se com toalhas quentes do aparato caloroso onde as pendurava. O café esperava passado às 7h e 15min, junto com o pãozinho da máquina de pães. No elevador, lia as notícias automáticas do teleprompter na tela plana.

Rodrigo orgulhava-se da própria praticidade e conexão com a velocidade nova do mundo. E, principalmente, satisfazia-se ao dispensar a comunicação direta entre pessoas. Detestava o “pessoal”.

Quando a conta de um dos telefones veio errada (pagava internet ilimitada e, naquele mês, cobraram minutos extras), não se abalou. Antes, sorriu.

Acessou o site apontado pelo Google, catou a área para assistência online, um chat ou assemelhados. Não encontrou mais que um “fale conosco”. Enviou um email simples especificando o assunto.

No outro dia, constatou que seu pedido não recebera nem mesmo uma resposta automática. Decidiu chamar a discagem gratuita para informar a ocorrência:

— Para compras, disque 1; para bloqueio e desbloqueio de aparelhos, disque 2; para informar mudança de dados cadastrais, disque 3; para informações referentes a sua conta telefônica, disque 4... — informou a gravação.

Apressou-se ao último algarismo citado, sorrindo de estar sua situação prevista pelo programador. A transferência da chamada acompanhava o áudio que agradecia a ligação e afirmava:

— Você é muito importante para nós. Sua previsão de atendimento é de — pausa — 40 minutos.

— Ora — pensou — quarenta minutos é demais, agora não dá. Tento mais tarde.

Assim o fez: no almoço, quando informaram uma previsão de 53 minutos; depois, no meio da tarde: 78 minutos; e ao entardecer: 91 minutos; e de dentro da hidromassagem, às 20h: 50 minutos. Uma vez que estivesse na jacuzzi, deixou em viva-voz e aguardou.

A voz gravada repetiu várias vezes a importância dele para a companhia e foi decrescendo a contagem do tempo até que uma moça atendeu. Rodrigo, com os dedos totalmente enrugados, mal conseguiu trazer a chamada de volta ao fone:

— Olá!
— Boa noite, sou Cilene, Informe o número do telefone com DDD.
— Ah, sim, pois não, 5199989675.
— Com quem eu falo, por gentileza?
— Rodrigo Alcenaro.
— Informamos que a ligação está sendo gravada, senhor Rodrigo.
— Ok.
— Em que posso ajudá-lo, senhor?
— Quero informar um erro na cobrança.
— Pois não, senhor. Um minuto que vou estar verificando para o senhor. Por gentileza, confirme o número do seu CPF.
— 00010126077
— Confirmado, senhor. Por gentileza, confirme o endereço de entrega da fatura, senhor?
— Rua do Arvoredo, 77. Apartamento 12. Porto Alegre.
— Confirmado, senhor. Um minuto que estarei verificando no sistema, senhor.

— Obrigado por aguardar, senhor. Desculpe senhor, sua conta é pessoa física, senhor, o senhor apertou cobrança de pessoa jurídica, senhor.
— Não, não, eu apertei o quatro.
— Estranho, senhor, me desculpe, senhor, vou transferir sua ligação. Aguarde na linha,
— Não, não, espera, eu...

Mas o áudio familiar voltou à tona e Rodrigo desligou. Estava murcho e exausto. Ergueu sua carcaça combalida e arrastou os destroços para fora do naufrágio de espuma.

Respirou fundo e foi dormir. Amanhã tentaria outra vez.

Acordou feliz em sua rotina repleta de gadgets. Enquanto zunia a escova na boca, teve a brilhante ideia de pedir para a secretária do escritório resolver esse problema:

— Ótimo! — exclamou feliz para o espelho.

Ao final do dia, a moça de ar triste e exaurido veio informar que, infelizmente, não poderia fazer a reclamação no lugar dele: era exigido que o fizesse o titular da conta.

No trajeto para casa, Rodrigo cogitou a desistência. A soma não era tão significativa para tanto esforço. Mas aí, uma tendência até então oculta à guerrilha, um estado guevarístico injetou-lhe os olhos:

— Não — disse encarando o retrovisor.

Não iria desistir. Não iriam vencê-lo. Chamou em voz alta o comando “mute”e o carro silenciou. Acionou o bluetooth e empunhou o teclado. Discou. Tremeu diante da profética afirmação anasalada:

— Você é muito importante para nós. Sua previsão de atendimento é de — pausa — 60 minutos.

Felizmente, precisava fazer supermercado. Subiu ao apartamento e sentou-se em sua cadeira reclinável em frente ao micro. Entrou no site e encheu o carrinho com os produtos habituais. Ainda aproveitou uma oferta para compradores online e levou três xampús pelo preço de dois.

Arrepiou-se até o fim da espinha quando alguém atendeu:

— Olá, olá!
— Boa noite, sou Rafael, Informe o número do telefone com DDD.
— 5199989675.
— Com quem eu falo, por gentileza?
— Rodrigo Alcenaro.
— Informamos que a ligação está sendo gravada, senhor Rodrigo.
— Ahã.
— Em que posso ajudá-lo, senhor?
— Quero informar um erro na cobrança.
— Pois não, senhor. Um minuto que vou estar verificando para o senhor. Por gentileza, confirme o número do seu CPF.
— 00010126077
— Confirmado, senhor. Por gentileza, confirme o endereço de entrega da fatura, senhor?
— Rua do Arvoredo, se-ten-ta-e-se-te. A-par-ta-men-to-do-ze. Por-to A-le-gre
— Confirmado, senhor. Um minuto que estarei verificando no sistema, senhor.

— Obrigado por aguardar, senhor. Pois não, senhor, qual é o problema?
— Houve um erro de cobrança. Pago internet ilimitada e neste mês vieram cobrados minutos extras.
— Perfeitamente, senhor. Um minuto que vou estar verificando pro senhor.
— ...

— Obrigado por aguardar, senhor. Infelizmente, senhor, o senhor precisa verificar junto com o setor de Conexão com a Internet, senhor. Um minuto que vou transferir a ligação.
— Não, não, espera, eu...

Mas o áudio havia retornado e Rodrigo aguentou no osso. Roeu as unhas, é verdade, mas ficou lá. Eles não iam vencer assim.


Foi atendido. Passava da meia-noite. Não tinha mais nenhum humor. Rodrigo tinha se tornado eletrônico.

— Alô.
— Boa noite, sou Cristóvão, Informe o número do telefone com DDD.
— 5199989675.
— Com quem eu falo, por gentileza?
— Rodrigo Alcenaro.
— Informamos que a ligação está sendo gravada, senhor Rodrigo.
— Ok, gravando.
— Em que posso ajudá-lo, senhor?
— Quero informar um erro na cobrança da internet do meu smartphone.
— Pois não, senhor. Um minuto que vou estar verificando para o senhor. Por gentileza, confirme o número do seu CPF.
— 00010126077
— Confirmado, senhor. Por gentileza, confirme o endereço de entrega da fatura, senhor?
— Rua do Ar-vo-re-do-se-ten-ta-e-se-te. A-par-ta-men-to-do-ze. Por-to A-le-gre.
— Confirmado, senhor. Um minuto que estarei verificando no sistema, senhor.

— Obrigado por aguardar, senhor. Pois não, senhor, qual é o problema?
— Houve um erro de cobrança. Pago internet ilimitada e neste mês vieram cobrados minutos extras.
— Perfeitamente, senhor. Um minuto que vou estar verificando pro senhor.

— Obrigado por ter aguardado, senhor Rodrigo. De fato, verifiquei que houve uma mudança na assinatura de plano. Vou estar atualizando isso para o senhor agora mesmo.
— Puxa! É mesmo?
— Sim, senhor. Um minuto por favor.

— Obrigado por ter aguardado, senhor. Confirmando, o senhor quer internet ilimitada, senhor?
— Sim! Sim! Já era ilimitada, não entendo...
— Perfeitamente, senhor. Estou atualizando sua assinatura. Um minuto mais, por favor.

— Pronto senhor. Vou registrar sua queixa sobre a cobrança indevida, senhor.

— Pronto senhor. Por favor, anote o número do protocolo.
— Pode dizer.
— 1002.120.12.2011
— Certo.
— O senhor pode repetir, por favor?
— 1002.120.12.2011
— Confirmado, senhor. Obrigado por utilizar nossos serviços e por favor, avalie meu atendimento após o sinal.
— Obrigado! Obrigado!
— A companhia agradece, senhor. Uma boa noite.

Rodrigo estava morto, mas achou que Cristóvão merecia a avaliação, afinal, tinha sido o único capaz de ajudar com seu problema. Discou o nove como nota de zero a dez. Descansou em paz.

Acordou com olheiras e preparado para esquecer o ocorrido. Mas a alegria respirou apenas até o final do mês, quando a nova conta chegou com o mesmo defeito da anterior.

Rodrigo encarou a conta dois dias antes de tomar coragem de chamar a central. Adotou a tática de estar em casa e fazer supermercado na internet, tinha dado sorte na última vez. E já era hora de novas compras.

Quando a gravação de abertura iniciou, discou o oito. Foi radical. Direto para um atendente.

— Você é muito importante para nós. Sua previsão de atendimento é de — pausa — 40 minutos.

Uau! Pensou. Só quarenta? Beleza. Encheu o carrinho virtual e pagou no cartão. Foi atendido.

— Olá, olá!
— Boa noite, sou Rafael, Informe o número do telefone com DDD.
— 5199989675.
— Com quem eu falo, por gentileza?
— Rodrigo Alcenaro.
— Informamos que a ligação está sendo gravada, senhor Rodrigo.
— Blá-blá-blá.
— Desculpe, senhor?
— Blá-blá, gravando, ok.
— Em que posso ajudá-lo, senhor?
— Eu quero um endereço, ouviu? Um endereço!
— Desculpe, senhor?
— Eu quero ir até um lugar para falar com vocês. Eu quero um endereço!
— Pois não, senhor. Um minuto que estarei verificando qual é o posto de atendimento mais próximo, senhor.

— Obrigado por aguardar, senhor. Infelizmente o posto de atendimento mais próximo fica em Curitiba, senhor. Ou São Paulo.
— Foda-se! Me dá essa merda de endereço que eu vou até lá!
— Perfeitamente, senhor. Curitiba ou São Paulo, senhor?
— São Paulo! Puta-que-pariu.
— Pois não, senhor, fica no centro, na rua Votuporanga, número 1001. Andar térreo.
— Ah, sim, obrigada.
— Mais alguma coisa, senhor?
— Não.
— Por favor, anote o número do protocolo.
— Vai tomar no cu.

E desligou. Feliz. Soberbo. Babando. Direto ao micro. Site de passagens. Primeiro voo. Que se fodam na empresa. Arranjo atestado, pago horas no banco de horas. Que se foda!

Partiu às 5h da madrugada. Pousou na terra da garoa onde não estava chovendo. Agarrou um táxi tremendo de paixão:

— Votuporanga, 1001.
— Sim, senhor.

E se manteve em silêncio durante todo o trajeto. Desembarcou na frente de um prédio de esquina largo como o riso do coringa. Tinha o logotipo dos desgraçados.

Eles iam ver só.

Marchou pela grande porta de vidro. Então chorou diante de vinte e cinco estações de atendimento. Cada uma com seu telefonezinho vermelho para discagem direta.

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