Drama Queen |
Charlotte é uma de minhas quatro cachorras. É uma pequena de três quilos e pouco, mistura indefinida de Jack Russel que desafia até os mais pacientes. Passou por dois lares antes de parar na minha casa. Em um deles, perdeu o rabo, porque queriam que ela se parecesse mais com um paulistinha. Aquela moda antiquada de amputar um membro só para ser mais bonito. Imagino que ninguém corta um dedo por ser demasiadamente longo, mas rabo, ah, isso se corrige cirurgicamente. Não poderíamos chamar de procedimento estético, afinal, as pessoas pagam caro para reduzir seus narizes e anseiam por esta modificação.
Enfim, não posso dizer que é por isso que ela é tão agitada. Nem afirmo que seja por conta dos abandonos. Tem cachorro adotado que sabe ser um fiel e calmo companheiro. Charlotte, não. Ela é inteligente demais para obedecer. Gosta de desafiar e, como nós, tem prazer em transgredir. A bichinha assovia quando quer perturbar. É famosa na quadra por seus latidos estridentes, dignos de uma soprano de coloratura.
Há meses venho cultivando o sentimento gregário do serzinho, estimulando que ela se junte à matilha. Vinha entendendo aos poucos e com a insistência. Quando a soltava no parque, não fugia. Brincava com as outras. Adora confirmar que é a mais veloz e criativa corredora entre os caninos.
Na semana retrasada, um cachorro desconhecido se soltou da guia e disparou. O instinto da minha arisca se atiçou e ela zarpou na perseguição. Foi horrível. Tive que catar as outras três e amarrá-las antes de sair pelas ruas chamando feito uma desesperada. Eu, que já estava pronta para o trabalho, montada e maquiada, odiei o cooper forçado. Acabei descabelada, suada e atrasada. E louca de raiva. Já estava voltando quando a vi, mas, mesmo assim, não relaxei. Um estresse.
Liguei para o marido aflita e com ódio determinada a castrar a bichinha. Ele concordou de imediato. Escolhemos um recomendado veterinário que fica na zona sul. Agendamos e concluímos o feito em uma semana. Não sem antes enfrentar o trânsito hediondo que o dia de jogo da copa do mundo proporcionou. O estádio fica bem no meio do caminho entre a minha casa e a clínica. No mínimo, um senhor transtorno.
Quando fui buscar a paciente é que, enfim, entendi. A pobrezinha me contava com os olhos tudo o que passava: medo e dor. Recebeu os cuidados necessários: anestesia, analgesia, antiinflamatórios. Tudo. Menos o preparo psicológico ou o consentimento esclarecido para o que ia acontecer. Estava tão quietinha e sofrida que imediatamente fui tomada por uma onda de ternura sem igual. Eu me apaixonei definitivamente por ela. Nunca senti tanta saudade de sua altivez e peraltice, até suas notas supersônicas me faziam falta. Tive zelo de avó na recuperação: troquei os curativos, não desperdicei uma única gota do remédio pós-operatório.
Não é culpa. É amor. Amar é sentir falta. Diante da fragilidade assumida com coragem, a gente amolece e aprende a cuidar. A doença enfeita. A morte enfeita. Saber que talvez ela não voltasse a ser quem era me alertou para aceitar a diferença. É só uma cadelinha alegre e cheia de energia. Eu que aprenda a me adestrar para merecer ser sua dona.
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