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terça-feira, 8 de julho de 2014

Velhos Desejos

Eu, fora da casinha.



Tive uma casinha de bonecas azul e branca. Ficava no pátio e era grande o bastante para minha família imaginária. Eu usava uma touquinha e um avental combinantes; e gastava as tardes varrendo no aguardo de meu marido Tony, que se parecia com Nuno Leal Maia. Tony regressaria de seu trabalho com fome, esperaria que a janta estivesse pronta. Teríamos um casal de filhos: Cecília e Antônio Carlos. A primeira, homenagem à minha bisavó; o segundo, Antônio, como o pai, e Carlos, como o pai de meu pai. Iríamos à igreja aos domingos e seríamos muito felizes para sempre.

Eu sou uma decepção. Não casei aos 25 anos. Não ganhei a primeira filha aos 31. Aliás, não programo nenhum filho e beiro os trinta e quatro. Tomo anticoncepcionais todos os dias, religiosamente. Minha única oração insidiosa. Anseio chegar em casa para encontrar meu marido que é ator, embora em nada se pareça com o Nuno Leal Maia (Ufa!). Se tivesse filhos, não carregariam o fantasma de meus antepassados em suas carteiras de identidade. Menos ainda, o peso do nome de seu pai. Já bastam os sobrenomes. Eu, se pudesse, pediria desculpas. Diria a mim mesma o que eu odiava escutar naquela época:

 — Filhinha, sinto muito. Você ainda sabe muito pouco sobre a vida e sobre você mesma.

Exemplificaria, para tornar mais claro: eu sei que você odeia andar no banco de trás do carro!, mas, na verdade, com o trânsito atual, ama passear sem compromisso e deseja, de todo o coração, poder pagar um motorista e viajar longe do volante. Você quer zelar pelo seu lar!, mas, na verdade, prefere cuidar das pessoas que atende em seu consultório e continua em colisão com as faxineiras. Tá bem, você ainda se interessa pela vassoura. Mas sonha muito mais com avanços na psiquiatria, principalmente com o ensino de psicoterapia básica nas escolas e com a valorização da primeira infância.

Conheço pessoas que procuram ajuda profissional especializada para decidir o que fazer ao longo da década que se inicia hoje; há quem planeje para depois da aposentadoria. E, tem gente como eu: desistiu do longo prazo.

Mudo de humor com frequência, são quatro estações em um dia. Não sei quem serei depois do almoço. Não significa que não possa me fazer promessas, mas sei que terei a delicadeza de quebrar meus princípios na próxima esquina. Eu vou mudar. Não tenho medo da inconstância. Isso não é transtorno de humor: eu não me transtorno, eu me acompanho.

Devo frustrar meus projetos de hoje em nome do que me tornarei. Vou arrebentar minhas expectativas, preciso mudar de ideia. Verdadeiramente mudar de ideia. Se eu me mantivesse coerente, seria sempre a mesma, antiga, nascida há dez mil anos atrás; moraria com um personagem de novela das oito ao invés do homem múltiplo com quem de fato me casei.

Não sou o que presumiam que eu fosse. Não sou o que eu pretendia me tornar. Deixei a sala de espera para ser uma surpresa. Não sei existir para frente. Cada dia, nasço e morrem desejos que já estão velhos. Apenas tento o que é novo outra vez. Feliz com letra maiúscula, só na ortografia e olhe lá. Para mim, nada passa de ponto e vírgula.

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