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segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Fabrício Carpinejar em: 'Sou uma Dona-de-casa no Amor '


"Querida,

Meus sapatos sujos conversaram comigo.

Antes de sair para vê-la, botei o par no meu colo e passei um minucioso pano em suas bordas, lustrei e escovei a lâmina preta de couro. Quando soprei os cadarços, recuperei um pouco da véspera das reuniões dançantes da adolescência. Alegre véspera em que me enamorava desde casa. Colocava uma fita-cassete e, de banho tomado, inspecionava minhas roupas dormindo na cama (as roupas eram irmãos menores que tinha a obrigação de acordar).

Talvez devesse usar mais sapato.

No amor, fiquei sempre entre o adiamento (evitar o encontro) e a antecipação (não pensar em outra coisa). Eu sofro mais na antecipação, mas o adiamento é mais triste.

O que me põe a sofrer, portanto, não é triste. Sofro seu preenchimento ou sua carência ou os dois juntos: uma ausência transbordada de mim.

Exercito a falta de domínio. Aliás, não sei por quem vai se apaixonar se estou me despersonalizando cada vez mais, perigosamente perto da extinção dos meus gostos e do meu estilo.

Engano pensar que o que mais dói é o que nos incomoda. O que mais dói é o que desejamos. O desejo é uma dor sem pouso. Não arrebenta na pele para repetirmos seu trajeto.

Quando amamos não somos suficientes como no dia anterior. Somos terrivelmente dependentes, confusos, mudamos os nossos horários para uma fresta, não queremos nos ocupar para permanecermos livres em caso de uma surpresa. Mexemos o braço de um corpo que já não é nosso. Atendemos ao telefone em reunião, despertamos o interesse pelos ralos e bordas e paredes manchadas.

Somos aquilo que vivíamos criticando em nossos amigos: a espera resignada por alguém. A submissão.

Só posso concluir que o amante não é tapete da sala, é capacho. Estamos mais na porta do que dentro de alguma palavra.

No amor, todos são donas-de-casa. Donas-de-casa limpando a sala, recolhendo os farelos e encerando as janelas pela transparência. Donas-de-casa disponíveis a preparar a comida, arrumar a cama, atender caprichos insanos. Vou hoje preparar biscoitos, eu que nunca ligo o fogão e não gosto deles. Para somente manter a mão funcionando e untar lentamente a fôrma. E esperar algo que não seja você. Ou esperar você de outro modo, quando finjo não esperar.

Amar é a mais grave ausência de democracia. Amar é exploração. Amar é trabalho-escravo. Não recomendo a ninguém, tampouco condeno.

Não me importo de ranger os cotovelos na mesa e de reparar os cantos com obstinação, como se fosse surgir por milagre na esquina de meu quarto. Não inspiro pena, estou agonizando com toda a saúde.

Mas o que me faria realmente sofrer é a falta de sofrimento do adiamento. Prefiro sofrer agora o que nem entendo do que entender meu sofrimento. É melhor, muito melhor.

Dependo de seu retorno para acreditar que a primeira vez - de tão perfeita - não foi minha invenção.

Beijo
F. ”

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