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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O vidro é um cristal mais amável.


Ilustration by L. Filipe dos Santos aka Corcoise


Quando cheguei à sala, vi uma cristaleira. Pensei: que tipo de homem mora sozinho e tem uma cristaleira? Não era um armário embutido, nem prateleiras faça-você-mesmo ou qualquer móvel mais consagrado: tratava-se de um universitário, jovem rapaz solteiro que vivia sozinho. Feita em madeira maciça, com vidro e espelho. Lotada de copos e taças elegantes. E não estava sozinha: a peça combinava com o sofá aristocrático francês, com as telas do impressionismo alemão, com a sacada minimalista belga e revistas de montanhismo em inglês espalhadas pela mesa. Clima agradável europeu em um apartamento bem localizado na cidade. E ainda com sacada para sentir saudade de voltar para dentro. Típica cena depois de um crime: não dava para mexer em nada.

Ah, se fosse meu irmão.

Ele cozinhou o jantar; bem temperado, no ponto, molho espesso. E apresentou a sobremesa: papaya com licor de cassis. Enogastronomia, outro dom do moço, o vinho casou com perfeição. Tentei acabar no tapete, ele pediu o quarto. Acabei com o tapete: derramei a taça do encorpado cabernet ao tentar conter sua fuga para a tradicional cama.

Como o caso progredia, tive chance de ver a mancha bordô várias vezes.

Bem que tentei esquecer. Recebi croissants quentes no café da manhã. Emprestou seu jipe importado e foi de bicicleta. Gentilmente, aconselhou que eu desligasse a torneira enquanto escovava os dentes, ensinou a usar detergente biodegradável, a reciclar resíduos. Nunca mais joguei uma pilha em qualquer lixo, seria o equivalente a assassinar um golfinho ou algo assim.
Naquele tempo, eu fumava. Ele nunca soou uma única palavra a respeito. Seu silêncio era pior que um alarme. Eu escovava os dentes neuroticamente, lavava as mãos, passei a carregar cremes na bolsa e álcool gel – o que era bizarro antes da gripe suína. Tomava banho com obsessão. Ele, cavalheiro, comprou mais cinzeiros. Tinha pacotes de meu cigarro junto ao macarrão na despensa.

Ah, se fosse meu pai.

Organizou uma viagem de camping para nós. Fomos no jipe, ele dirigindo suave, um ás no volante, é claro. Não senti uma curva sequer da serra. Tomou a rota romântica, fui bebendo a paisagem. A barraca montada costeando uma corredeira, sacos acolchoadíssimos de dormir, água fresca, jantar silvestre e o companheiro detergente biodegradável. Não movi um palito de fósforo. Tentei ajudar com uns cordeletes, mas para amarrar um, levei o tempo de três. Ele, delicado, afastou-me de toda tarefa potencialmente perigosa, desagradável, perturbadora.

Aliás, de volta à casa, notei que ele me afastava de qualquer tarefa potencialmente qualquer coisa: não precisava guardar a louça; ele mesmo arrumava as colheres do (faqueiro impecável) aconchegadas umas às outras; não precisava ir ao supermercado, ele já tinha pensado em tudo.

Ah, se fosse meu melhor amigo.

Eu não me conformo facilmente. Quis fazer um brigadeiro; impediu argumentando uma receita familiar. E o docinho dele ficou mais divino do que o meu reles pretinho básico poderia sonhar. Quis comprar um presente e, depois de investigação criteriosa, descobri que nada faltava. Prova de minha monumental incompetência: comprei um enfeite.

Sentava na banqueta perto da janela da cozinha. Sentava no banco alto do bar. Sentava no sofá. Passeava até o lavabo. Reparei que aquela ampla área residencial não passava de uma enorme sala de espera. Decorei as revistas de montanhismo. Sentava na varanda e fumava, fumava, fumava. Questionava minha infelicidade: não era isso que tinha sonhado toda a vida? Não era esse o príncipe encantado impossível de irritar? Infalível? Incrível? Indefectível?

Não fiquei entorpecida de tédio. Eu me sentia cada vez mais medíocre. E invisível. Era incapaz de me adiantar ao cara! Não sabia oferecer nada a ele, nunca pude ser necessária. Ele cuidava tanto e tão bem de tudo. Atencioso, independente, carinhoso, genial. Bom companheiro, bom amigo, bom irmão e até bom pai. Não me deu chance, nunca recebi um agradecimento. Acho que ele tinha medo era de ficar devendo.

Quer se engradecer, ajude aos pobres.

Não tinha o dom de namorar comigo. Prefiro o vidro que se quebra ao cristal que se mantém distante.

4 comentários:

  1. O texto ficou ótimo Cínthya! Bom de ler e faz pensar. Um beijo e bom fim de semana!

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  2. Muito bom Cínthya, tbém ando pensando em cristais, ultimamente.

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  3. É incrível como você escreve bem, além de cantar quase que melhor ainda... já te disse isso pessoalmente, mas digo de novo: virei mesmo tua fã... teus textos me inspiram para começar a escrever os meus, de manhã, quando chego... aí leio os do Fabrício tudo se completa... beijos, linda... parabéns, sempre... você pode até preferir ser vidro, mas tem momentos de cristal, tenho certeza, pois atua bem em todas as áreas... bjs

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  4. Meu Deus!! Viajei no tempo! Lindo o texto, tao lindo que senti ser ontem!!
    beijos
    amei a visita de vcs!! quero mais!!!

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