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sábado, 13 de fevereiro de 2010

Os Pedais de Cinderela


Roy Lichtenstein
In the Car, 1963


Verão excêntrico: a mãe e o pai decidiram ir longe procurar os presentes de Natal, na Ciudad Del Este. Chance de receber o que sonhávamos. Eu e meus irmãos tínhamos o pedido em uníssono: um carrinho de controle remoto.

Em 1983, a companhia de brinquedos Estrela fez um comercial que hipnotizava: Pégasus. O estonteante, maravilhoso, milagroso carro que obedecia aos comandos para direção e sentido de uma criança a trinta metros de distância. Luxuosos modelos da Série Prata e Série Ouro, ditadas pela cor da carroceria. Uma imitação do BMW –M1, lançado em 1978. Alcançava 20km/h e disparava luzes de seta na frente e atrás.

Inspirado na picape Chevy da GM que ardia na tela do Duro na Queda, um ano depois, a empresa lançou o Colossus. Ostentava faróis de milha e quebra-mato empunhado sobre o radiador. Rugia com seus pneus de borracha, capota na caçamba, tração 4X2 e 4X4 acionáveis embaixo do veículo. Em seguida, lançaram o Maximus. Aparência semelhante a de um Buggy, com rodas traseiras maiores que as dianteiras. O fenômeno acelerava até 25Km/h.

Imaginávamos as trilhas, os asfaltos, as pistas de corrida, os momentos de glória: eles prometeram cumprir nossas estrelas cadentes.

Tamanha excitação, antecipamos a noite de vinte e quatro de dezembro para o início da tarde.

Entregaram a primeira caixa para meu irmão mais velho. Ela revelou a cópia fiel da Supermaquina. O K.I.T.T. – robô-carro inspirado no Pontiac Firebird. Com o afamado controle remoto. Não era nem Pégasus, nem Colossus, nem Maximus. Mas, bem bacana: uma viatura lustrosa e negra.

Meu irmão do meio ganhou um Toyota Celic prata. Divino, com rodas elegantes, chispantes e aerofólio. O controle, extraordinário, com alavanca, volante e botões.

Saíram pela porta brindando os olhos.

Chegou minha vez. Uma caixa menor. Um carro estrangeiro mais estreito? Uma moto, será?
Uma Barbie. Isso mesmo, uma Barbie. Uma Barbie sobre uma mobilete. Ela encaixava os pezinhos de anjo pornô nos pedais. E seu controle remoto em uma coleira. Um indecente fio preto ligado a uma caixinha cor-de-rosa que continha os comando “para-frente” e “para-trás”. A Barbie atingia 0,5Km/h.

Eles deduziram que pedia o mesmo presente que os meninos porque não conhecia a charmosa Barbie de controle remoto! A frustração com aquele presente, nunca revelei. Fiquei sentada com a boneca móvel.

- É linda, obrigada. Eu adorei. Não podia imaginar.

Meus irmãos cairiam como abutres sobre minha tristeza se soubessem dela.

A paixão por carros vem de sempre. Dirijo desde os dezesseis. Na minha família, o idioma dos automóveis é a igualdade com os homens. Meu pai diz que a gente conhece o motorista pela ré.

Eu me empenhei para refinar o mandamento. Só não esperava namorar um piloto de Fórmula Ford. Giuliano. Desde menino guiava Kart e vinha sendo promovido de categoria.

Exibia uma única covinha no rosto, do lado direito, quando sorria. Giu: seu apelido deslizava gemido. Giu: com seus olhinhos de mini-amêndoas e o corpão de atleta.

Como se não bastasse o design, havia a transmissão elétrica entre a gente.

Giu posava imponente, uma macheza indisfarçável e deliciosa. Eu me sentia a mais feminina princesinha. Para que eu descesse, abria a porta do carro. A seguir, lustrava a lataria onde apoiou a mão. Mas isso não importava, ainda incidia em cavalheirismo.

O zelo com o carro provocava ciúme: observações constantes, revisões, banhos especiais, palavras carinhosas. Um acessório novo por semana, como presentinhos. Eu participava adivinhando como em um jogo de sete erros.

No meu aniversário, Giu partiu para disputar uma prova. Apareceu na porta de casa, no fim da tarde, perfumado e com troféu para mim. Que mais eu poderia querer?

Queria poder compartir a paixão sobre veículos com ele. Começava o colóquio sobre carros; eu mal armava as figurinhas para troca e ele já desconversava. Enfim confessou que não achava atraente debater o tema comigo, parecia que eu me tornava um amigo, um colega.

Achei que daria conta de não dizer uma palavra a respeito de rodas, afinal, existem outras matérias mais. Assunto encerrado.

Giu assumia o volante com toda naturalidade. Como se tivesse seu nome etiquetado. Melhor dizendo: como se o assento levasse uma plaquinha idêntica a do banheiro. O carro era dividido por gênero: condutor, masculino; espelhinho e porta-luvas, feminino. Simples assim. Cada um sabe seu lugar.

Como exemplo de boa caroneira, passeava a seu lado quando estacionou em faixa dupla e saiu. Enquanto esperava, abriu uma vaguinha. Minha gentileza foi automática. Para evitar multas, coloquei o carro. Ao chegar, o cara ficou muito raivoso. Com cólera. Urrava inspecionando o carro nas beiras. E mais: achou marca branca no pneu e me atribuiu o desenho de cal e barbeiragem.

Como iria desfilar na cidade com aquela marca embaraçosa?

O natal de 86 veio à tona, com seu aviso contido no presente. Aquela Barbie era para ele. Tentei encaixar meus pés como a Cinderela. Mas, de fato, eu vim sem fio.

5 comentários:

  1. Ah, Cynthia que bom que viemos sem fio....ahahah, sempre me irritei completamente com os homens pegando a direção!
    beijoo

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  2. Wueeeeeeeeeeeeeaaaaaaaaaaaa, como dizem os chilenos! Tá tri, Cindirila. Quero te apresentar a minha rádio de mentira: www.mandragorafm.blogspot.com . Bisbilhota lá. Tô curtindooooooo.
    Mas que Cinderela redondinha essa, maninha! Adoro. Bjoca

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  3. Sensacional!
    A gente bem que tenta se adequar, mas no fundo, no fundo, a gente não se conforma...

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  4. Na infância tudo é tão imenso, distante... Cynthia, gostei muito do seu blog. Inteligente e cheio de humor. Parabéns!

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  5. João,
    que bem que gostou. Me alegro. Beijos!
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    Thaís,
    adequação nunca foi meu forte.
    Beijo!
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    Eli,
    Mandrágora!!! Que beeem
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    Nádia,
    mulheres dirigindo, chefiando... Ainda estamos buscando nossas vagas. Acredita?
    Beijo!

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