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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Retorno do Recalcado

Allen Suton´s Portfolio at Behance
Allen Sutton, Illustration, Graphic Design, Art, Offkilterart
Check out his amazing blog: http://www.offkilterart.blogspot.com


Minha mãe me chamava de relaxada. Ela sabia que eu odiava o termo. Retruquei que me chamasse de qualquer coisa, menos de relaxada. Havia alguma nota na palavra, um estalido, um insulto implícito. “Relaxada” me magoava mais do que ofendia. Mas ela fazia questão de usar o verbete nos piores momentos e principalmente depois do pedido.

Não tive berço, mas campo de concentração. Para me machucar, precisa muita astúcia, arame farpado, corredor polonês. Crueldade é apenas entretenimento. Retribuo asperezas sem nenhum esforço, uma habilidade que vem da infância.

Cresci com a imagem de pessoa desorganizada. Alguém que não sabe fazer pela casa coisa alguma, uma despreparada do lar. O pai também confirmava a impressão da mãe:

- Essa menina não sabe nem pegar uma vassoura direito!

De fato, não sabia que havia jeito para vassoura. Nunca me apeteceram perfeccionismos domésticos. Não foi coisinha passageira da adolescência. Nem birra de criança. Sempre acreditei que o desleixo fosse minha sombra.

Na faculdade e depois, no trabalho, esbanjava disciplina. Assim soube que o desastre estava resumido às tarefas caseiras.

Não tenho religião, menos ainda preferência por santas. Mas a Ivone, essa sim, é minha imaculada senhora da limpeza. Toda a quinta, como para a missa, preparava as oferendas: pão fresco e café, os produtos que pediu na lista de supermercado e os vale-transportes. Não sei o que seria sem ela, porque gosto de encontrar tudo arrumado.

Dificilmente levava alguém para dormir comigo. Topava motel, camping, motor-home, casa da mãe. Qualquer coisa. Meu apartamento era a porta de incêndio: o último caso. O primeiro namorado a freqüentá-la provocou calafrios. Morria de medo que saísse correndo gritando porca ou qualquer coisa assim. Mas eu não ia fingir. Não sou mulher de fazer de conta dotes de boa-moça. Até porque não saberia nem o suficiente para isso.

Mas é que esse moço vinha do interior. Não tinha saída. Os fins de semana reservados para o encontro. Com o convívio, fui descansando a tensão e o medo iniciais. Mais que isso: fui mudando a posição de observação.

Comecei sentando em um palito de dentes no sofá. Palito de dentes? No sofá? Recolhi. Ele parecia escorregado entre as almofadas. Uma distração.

As toalhas de banho repousavam como bandeiras secando nas portas do armário do quarto. As roupas dele faziam montinhos no canto atrás da porta do banheiro. Eu me bati na maçaneta, o vão era muito estreito. A seguir, enganchei e rasguei a manga da camiseta.

Tive vontade de xingá-lo. Uma força súbita de abrir a garganta em algo como: seu relaxado! Mas segurei o Tsunami. Aquela cólera repousava em mim como uma mola. Oito anos de análise servem para a gente pensar no retorno do recalcado. Removi o montículo travador de passagem e segui com a vida.

Na segunda-feira, reuni os copos, todos os seis copos, cinco xícaras, quatro pires, dois pacotes abertos de bolachas, uma meia sem par, CDs fora da caixa, discos de vinil fora da capa, um cobertor. Almofadas nocauteadas, um quadro encostado na parede, um pano de chão sobre uma poça de coca-cola, uma embalagem de Bib´s vazia. A coleção de gibis do Demolidor, a caixa de fotos da infância, uma peruca de Mortícia. Isso na sala.

Cogitei que a Ivone teria que ser fixa. Desse jeito, não dava. Mas nem a Ivone aceitou. Ela ,que não tem boca para nada, desabafou: uma coisa é trabalhar para uma mulher caprichosa como você; a outra é suportar um ímã de lixo.

Caprichosa?

O que uma mãe tira, só outra, a emprestada, devolve.

Enfim elaborada a questão materna de modo doméstico, voltei a fazer análise: dessa vez para seguir o namoro. Afinal, ele não podia ser tão imundo. Tão porco. Devia estar fantasiando coisas, projetando.

Pensava comigo: retorno do recalcado, retorno do recalcado.

Para expulsar os fantasmas e reaver a paz, comprei lingerie, coloquei som árabe e me espiralei em dança do ventre. Quando fui me deitar para o bote da serpente seguindo a flauta, senti em minha coxa a pérola: um cotonete usado, com a cabeça de açúcar queimado, sobre o lençol limpo. No travesseiro, lascas de unhas cortadas. Já era guerra civil, nem mais problema de higiene.

Gritei muito alto:

- Seu relaxado, vai arrumar tudo antes de trepar.

Não é sempre que alcanço o posto de minha mãe.

3 comentários:

  1. Que beleza!É chique e delícia de ler.Beijo da Eli.

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  2. Cinthya, AMEI!
    Gosto do teu jeito de escrever e fazer strip-tease de alma, me comovo por pura projeção, essas coisas que nos carimbam na testa por uma vida inteira e aceitamos e reforçamos...aiaiai recalques!
    beijo grande
    Nádia

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  3. Eu ri.
    A leitura flui de uma forma natural e simples e a escrita é perfeita.
    Adorei.

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